25/12/2012

Descanse em paz, Nicolau


Era um homem de idade avançada, faria setenta e oito em Maio. Mesmo assim, ainda era forte, tinha vontade de viver e trabalhar.

Foi tudo muito rápido. Um meliante reconheceu uma gestante e gritou "É dos ômi!", para alertar aos outros assaltantes de que se tratava de uma policial. A gravidez avançada não comoveu o coração de quem nunca aprendeu a se colocar na dor do outro. Pior, de quem foi incentivado a desdenhar a dor alheia.

Nicolau, que mudança, de um velho rabugento e antissocial, tornou-se um escudo humano. Recusou-se a sair da frente dela, no que outros aproveitaram para se esconder atrás dele também.

Há até cinco anos, era semi analphabeto, grosso e desejoso de morrer só. Fora tratado a patadas desde a infância, a ter seus préstimos subjugados e suas faltas super avaliadas. Afinal, era prestativo, todos tinham certeza de que estaria à disposição, logo em seguida.

Mas um dia, farto e já capaz de se manter sobre suas pernas, saiu sem avisar, sem deixar recado e sem olhar para trás. Continuou a ser mal tratado, mas agora com o bônus de poder ir embora sem ar satisfações. Com o tempo, sequer queria mais fazer vínculos.

Estudou o básico do básico, lhe bastava. Passou a ignorar datas festivas, seus apelos e suas decorações, principalmente o natal. Este, aliás, lhe causava repulsa. Aprendera com a vida que tudo aquilo era mentira, absolutamente mentira.

A compleição física de Nicolau fomentava esse comportamento, pois se acostumara a trabalhar mesmo doente. Era forte, grande, sua figura intimidava os possíveis agressores. A muito custo, foi convencido a ver o médico, de vez em quando. Isso só fomentou seu comportamento, sentia-se mais seguro com a saúde monitorada.

A aposentadoria foi tardia. Só depois de sessenta e cinco anos de trabalho. Ainda assim, não quis ficar parado, atitude aplaudida pelo médico, que se encarregou de arranjar-lhe bicos para ele se manter ocupado. Resultado, manteve-se forte e lúcido até o fim.

Pouco afeito à vaidade, deixou a barba crescer de modo permanente. Como também não passava fins de semana em clubes, tinha pouca pigmentação. O médico passou dois anos a tentar convencê-lo a experimentar um serviço sazonal. O facto de demandar sociabilidade, pesou contra, mas um dia ele aceitou. Estava farto de ser vigia e receber a culpa de tudo o que dava errado na expedição.

Foi treinado à exaustão. Desde meados do ano, freqüentava o curso de formação. Foi devidamente alphabetizado, o que lhe abriu um pouco a cabeça. Mas a transformação veio com os testes práticos, com crianças. Elas se encantavam só de vê-lo no uniforme. Aquilo era fascinação sincera, sorrisos sinceros, abraços sinceros. Seu coração embrutecido pelo mundo, começou a amolecer.

Ainda era um homem rude, mas não mais grosso. Muito resistente, trabalhou o mês inteiro, dia e noite, inclusive ajudando a carregar os presentes, no shopping center. O desconforto daquela roupa estilizada não era maior do que o ao qual se acostumara.

Dia após dia, até altas horas da noite, sem reclamar, com uma paciência que jamais pensou que tivesse. Era a primeira vez em que Nicolau podia dizer que estava feliz. Sem exageros, foram milhares de photographias tiradas com o Papai Noel mais verossímil que já tinham conhecido. Claro, alto, forte, longa e volumosa barba branca, olhar vívido e corpo ágil.

Passou a amar as crianças e, por tabela, as gestantes. Mais de uma vez foi visto carregando uma nos braços, até o carro, por um mal estar súbito. A gerência do Shopping agradecia, era uma propaganda preciosa.

Naquela manhã, Nicolau tinha saído do último turno como Papai Noel. Só fora ver o pagamento devidamente depositado em sua conta, quando ouviu o anúncio de assalto. Protegeu a gestante e, na recusa de dar passagem ao "alvo", precisou distribuir sopapos. Desnecessário dizer da chuva de chumbo e do desespero dos clientes.

Conseguiu concentrar as atenções a ponto de a segurança do banco conseguir se reorganizar, e render os assaltantes. Todos eles desmascarados pelos guardas, na frente das câmeras de segurança.

Morreu antes de o socorro chegar. Não antes, porém, de ver seu último presente, a policial deu à luz lá mesmo, a um menino grande e forte, que chamou de Nicolau.

16/12/2012

País sem nação

Ok, o Corinthinans venceu, é campeão do mundo, e nhe-nhe-nhe. Tenho uma dúzia de amigos corinthianos que, espero, resistiram a várias taquicardias seguidas. Eu, pessoalmente, não dei a importância atribuída, mas o evento suscitou uma pequena linha de pensamento, me fazendo lembrar de factos reincidentes.

Ouço dentro de casa, que aqui se torce para qualquer time que for jogar lá fora, mas se for o Goiás, eles torcem até para a Argentina. Similar ouvi de torcedores de outros times, que entrevistados, torceram para o Chelsea, por causa da rivalidade interna. O facto de ser um time brasileiro trazendo a premiação para o Brasil, não lhes pesou na decisão.

Há algo que muita gente, na verdade creio que a quase totalidade, não sabe sobre o oriente médio e a Escócia, mas que cabe muito bem aqui. A Escócia, antes de ser anexada ao Reino Unido, era formada por clãs. Cada clã utilizava pigmentos específicos para fazer as estampas-padrão da região, foi assim que surgiram as diferentes padronagens de xadrez dos kilts escoceses.

A necessidade de padronizar os kilts, e até as saias femininas, quando fosse o caso, era por esses clãs viverem em pé de guerra, literalmente. Era como no oriente médio até hoje, com aldeias que se estranham tanto, que até o idioma sofre pressões de dialelos locais. Em ambos os casos, eles esqueciam suas rivalidades quando um inimigo comum os ameaçava, no caso da Escócia, os ingleses. Era isso que tornava e ainda torna a Escócia, uma nação, mesmo como país subordinado a Londres.

Em ambos os casos, quando o inimigo comum era repelido, voltavam a se digladiar e perpetuar as juras de vingança pela morte, causada pela vingança jurada pela morte causada por uma vingança, que foi causada por outra morte motivada por vingança, que serviu para responder à morte de outro que fora executado por vingança, et cétera, et cétera, et cétera.

Claro que não quero isto para o Brasil. O banho de sangue pela guerra entre as famílias Alencar e Saraiva, à qual o governo da época concedeu uma vergonhosa conivência, por conveniência política, me dá uma lição local suficiente.

Há ainda a lição dos judeus. Desde que eram cativos o Egito, vamos aqui desconsiderar questões e registros meramente religiosos, eles tinham várias características em comum, além do monoteísmo. Preservaram seu idioma, sua cultura, até mesmo os traços físicos que tantas caricaturas têm rendido, e suas famosas habilidades financeiras. Eles sabiam quem eram desde então.

Mesmo dispersos por incontáveis episódios, em tantas circunstâncias que a história talvez desconheça todas, continuavam a ser hebreus, logo em seguida, judeus. Se um deles viajasse para outro país e lá houvesse judeus, haveria reconhecimento mútuo. Ele seria acolhido pelos seus, como pessoas de outras etnias jamais conseguiriam em terras estrangeiras... Talvez nem nas próprias.

Quando eu falo "estrangeiras", considero que qualquer viagem de duzentos quilômetros, até o século XVIII, era uma grande aventura. A maioria das pessoas morria sem jamais ter saído dos arredores de onde nasceu. Os Estados nacionais são relativamente recentes, assim, mesmo uma região mais distante dentro do mesmo país, para muitos era considerada como terra estrangeira.

Continuando, de modo muito mais acentuado do que os escoceses, os judeus formaram uma nação tão coesa e homogênea, que a ausência de um território não a desfez, pelo contrário. Assim como nos plásticos feitos de polímeros aromáticos, a distância física fortaleceu os laços. Assim, quando o Estado de Israel foi fundado, recebeu um povo disposto a defendê-lo a qualquer custo. Ainda que as diferenças internas sejam famosas... Desculpem, a perfeição não habita este orbe.

Voltemos ao caso do futebol, que causa tantas mazelas quanto os chateus radicais acusam a religião de fazer. Aqui temos um agravante, porque as rivalidades internas não são esquecidas em prol da sobrevivência coletiva. O néscio prefere ver recursos valiosos irem para outros países, a ver o time/gangue/partido/raio-que-o-parta alheio recebê-lo. Eles estão se lixando para o Brasil, querem ver seus adversários de joelhos, pelo prazer fútil de assistir à sua derrota.

Vamos ser francos, se algum país decidir ser realmente um inimigo, e quiser nos invadir, com esta mentalidade tacanha vigente, nós estamos lascados. E temos vários vizinhos com governantes ego-megalomaníacos, que adoptam a máxima de "l'etat c'est moi". A Argentina é um deles.

Me vem a sólida impressão, de que se alguém prometer eliminar o time rival, muita gente facilitaria uma invasão. Não estou exagerando, basta estudar as quadrilhas que se denominam "torcidas organizada", não que todas o sejam, para perceber isso.

Agora pensem bem se, neste contexto mórbido, este país tem como sair do atoleiro terceiromundista. O brasileiro sequer se reconhece como brasileiro! Ele é primeiro flamenguista, depois carioca, depois (do Estado) fluminense, e só por último é brasileiro. Isso se não houver uma facção dentro da torcida, porque então a importância do gentílico cai mais um pouco. O sujeito se endivida, sai do emprego, deixa família e o escambau, para ir ver dois jogos do outro lado do mundo, sem nem saber rir no idioma local. Mas vai chamá-lo para uma campanha de conscientização em benefício coletivo! Ele preferirá ver o próprio filho morto, após atravessar o pára-brisas, do que beneficiar o torcedor do "time rival".

Era para ser uma diversão, não era? Mas só se tornou o exemplo de como o brasileiro pode ser anti-brasileiro, além de ter se revelado um poço de corrupção e desdém para com os serviços públicos. Mas, e daí? O meu grupo está bem, está alegrinho, festejando mesmo na miséria, tripudiando sobre seus inimigos de outros times, enfim.

Se houvesse uma ong com um pingo de vergonha na cara, que realmente quisesse fazer algum bem aos compatriotas, se encarregaria de viabilizar intercâmbios culturais dentro do país, entre regiões, ideologias, etnias, classes sociais, entre imigrantes e nativos, enfim, trataria de fazer o brasileiro se reconhecer como brasileiro, tratando de transformar suas diferenças em base de apoio, não em pólos repelentes.

Claro que há os chacais que se aproveitam, que ganham muito com essa mentalidade inconseqüente. São aqueles caras que "roubam, mas fazem", que já têm 13° e 14° salários aprovados de próprio punho, na surdina, e acabarão tendo salários semanais se continuar assim, livres de impostos. Aqueles que impedem construções de aquedutos para beneficiar a máfia dos caminhões-pipa, que dão costas-quentes à exploração sexual infantil nos rincões da região norte, que loteiam as cidades em prol de especuladores imobiliários que lhes financiaram as campanhas, pondo à venda até quartéis, como o Batalhão Anhangüera, em Goiânia.

Mas, tudo bem, o meu time é campeão, o torcedor do outro está chorando e o filho dele foi morto na última briga de torcidas.

P.S: Os leitores mais assíduos devem estar se perguntando sobre os textos de natal. Me desculpem, o espírito natalino, que costumava me tomar logo em meados de Novembro, desta vez me boicotou.

14/12/2012

Ponto final

Não era uma pessoa feliz, na situação em que estava. Permaneceu nela, por forças maiores do que as suas, mas acabou. Sai do quarto com a decisão de quem sabe que não tem mais tempo a perder. Mas vai devagar, não sabe ainda aonde vai.

Não crescera naquele lugar. Esteve em tantos, que não conseguiria enumerar todos. Sabe apenas que a cada novo, a sensação de esperança e entusiasmo decrescia. E quem se importa? Em todos eles, a história foi a mesma.

Não que não tivesse tido bons momentos no período, os teve. O problema foi eles terem sido tão tênues e efêmeros, que a dor cotidiana os ofuscava facilmente. Sempre repetia para si mesmo, que o melhor estava por vir, na esperança de que realmente viesse.

Não veio. Passa pelas sombras intercaladas com as luzes que vêm das janelas, se lembrando de todas as vezes em que foi traído e teve que se levantar sozinho. As circunstâncias sempre pediam um mínimo de investigação, que nunca veio, então acabava arcando com todo o ônus. E quem se importa?

Com o tempo, o optimismo se esvaiu como água entre os dedos. A quem estava tentando enganar? A si? Porque era só quem acreditava nas esperanças que alimentava. Esperanças, diga-se de passagem, que precisou deixar morrer, para que não fosse antes.

Passa pelos móveis da sala, com as almofadas todas fora de lugar, como quem vê um monte de mentiras empilhadas. Aquilo deveria ter sido um lar, não deveria? Não que fizesse altas expectativas, com toda sorte de fantasias, na realidade tinha se acostumado desde cedo a ser voto vencido, lidar com divergências não seria problema. O silêncio começou a ser a única resposta que tinha, à maioria das interrogações feitas. e quem se importa?

Toda a dignidade e respeito negados, há alguns anos começaram a fazer falta. Com o tempo, até a raiva e os rompantes escassearam. Começou a se acostumar à tristeza, ela passou a ser seu estado normal. Não uma tristeza com causas definidas, mas no estado mais puro, tão puro que rapidamente tornou-se um traço de personalidade.

Teve sonhos. Teve muitos sonhos. A cada tentativa de viabilizar um deles, levava um tombo, com ele as acusações de não ter feito tudo o que podia. Abriu mão de um por um, com o passar dos anos e o peso da idade. A partir de certo momento, não poderia mais considerar todos eles. No esvair da areia na ampulheta, tinha um cemitério cheio deles. E quem se importa?

A porta está destrancada. Abre-a sem rodeios e tem a prudência de trancá-la, na saída. É também um modo simbólico de encerrar aquela fase mórbida, que por tantos anos enganou quem via de fora. Para estes, tudo parecia bem, à exceção daquela pessoa dissonante, que parecia querer chamar atenção com sua excentricidade. Passou a evitar festas, reuniões e similares, porque a cobrança dos sonhos mortos já era mais do que seria salutar.

A solidão passou a ser sua companhia preferida, chegava a se irritar quando lhe impunham uma companhia. Lhe tiravam o que lhe era caro, em troca de algo que rejeitava figadalmente. Como gostavam de dar palpites na sua vida! Se viam como padrão a ser seguido. De sua parte, só via um rebanho indo para o matadouro. Sabem aqueles momentos em que tudo o que se quer é ficar quieto, silente, chorar para si mesmo? Foram muitas as vezes em que precisou disso, quase todas negadas, à revelia de seu arbítrio. Com o tempo até a capacidade de chorar ficou seriamente comprometida. E quem se importa?

De todos os pesos que vergavam sua coluna, até então, viu claramente que o maior era o seu mesmo. Tendo se acostumado ao tolhimento sem critério, passou sem perceber a se tolher por conta própria. Hábito que lhe custou a saúde, que nunca fora lá essas cousas. Mas acabou. A vida inteira passa diante de seus olhos em um instante. A memória até agora pérfida, torna-se sólida e cristalina. Ganha a rua sentindo os ombros leves. Agora não tem mais compromissos, não tem maisa medos, não tem mais travas.

O senho sempre franzido, agora começa a suavizar, lentamente, na mesma lenta velocidade em que uma garoa começa a cair. Na mesma lentidão com que a primeira lágrima começa a sair, em muitos e muitos anos. Os passos pesados e cansativos, passam a ser leves, a voz embargada começa a sair cristalina, e se põe a cantar. Canta uma canção triste, para encerrar aquela vida. Está triste, mas está feliz.

05/12/2012

Diploma pra quê?

Imagem cedida pelo autor Alberto Benett.

Jornalismo brasileiro nunca foi lá essas cousas. A diversificação de recursos de mídia, que hoje permitem a qualquer um montar uma matéria e mandar para o ar, mesmo que esteja preso no trânsito, não significou ganho de qualidade, de ética nem de isenção. Pelo contrário.

Desde que foi abolida a necessidade de diploma para se exercer o jornalismo, não que antes a lei fosse cumprida à risca pelos jornais, as redações se encheram de postadores de notícias. Não que o curso de jornalismo, na maioria absoluta dos casos, ensine muito mais cousas do que se aprende na prática, mas a organização e disciplina mínimas necessárias à conclusão do curso, conseguem formar o básico do básico do básico, que é um procedimento operacional de trabalho, mesmo que seja individual e em nada case com os outros. Pelo menos, é um procedimento pelo qual o editor e o leitor conseguem identificar, pelo estilo e linguajar, o autor da matéria.

Da dispensa do diploma até hoje, coincidência ou não, e eu não acredito em coincidências, a qualidade do jornalismo tem piorado volumetricamente. Eu gostaria de citar casos específicos, mas já são tão comuns e banalizados, que fica desumano querer que eu apresente um só dos idiotas, e qualquer um de vocês pode encontrar o fenômeno do copia-e-cola, em qualquer jornal, virtual ou impresso, fora a repetição atrasadas de matérias que tinham sido dadas dias antes, por outros veículos.

A situação ficou tão grotesca, que no acto de copiar e colar, eles já não se dão ao trabalho de fazer uma alteraçãozinha sequer, às vezes nem apagando os créditos originais, sob os quais o "profisisonal" coloca os seus próprios. Ficam dois autores, sendo o do rodapé, claramente o falso, pela incompetência demonstrada em nem corrigir os erros do original.

Se não tomam cuidado para maquiar o plágio, podem imaginar que o cuidado com a língua também não prima. Não se trata de usar expressões pessoais ou regionais, trata-se de esculhambar com o idioma mesmo. Escrever "O juiz impetrou um mandato junto ao ministério..." já não é mais motivo para estarrecimento, mas ainda me estarrece. Não me incomodo com "A gente pensa diferente" ou até mesmo "Véi, isso não cola!", dependendo do tópico veiculado, o que me incomoda é o achincalhamento escancarado.

N'outras línguas, a cousa não melhora. Existe hoje, e eu utilizo muito, a ferramenta em rede de tradução instantânea, que tem o requinte de traduzir até sites inteiros. Já traduzi um texto em árabe, do alphabeto árabe para o português em caracteres latinos. Uma maravilha que os antigos jornalistas nem sonhavam, era um tormento traduzir uma noca em um idioma desconhecido, às vezes varando noites, com o editor berrando ao pé do ouvido. Hoje é só colar o atalho, mandar traduzir e ler. Os jornalistas de hoje fazem QUASE o mesmo.

Eu coloco para traduzir, leio e filtro, porque a tradução é literal, fica muitas vezes sem sentido, para quem não conhece bem o assunto de que está se tratando. Mas os fulanos simplesmente copiam e colam. Não se dão ao trabalho de fazer uma correção sequer, simplesmente copiam e colam, ainda que saia "O desenho da linha córrego foi bolo de queijo, na época" ou "Lana Del Rey estrelado nova apresentação no caminho amplo".

Eu sei, os prazos são apertados, ganha-se por lauda, paga-se pouco por matéria, o leitor não se importa com caprichos, o mundo é injusto e não existe uma estrada de tijolos de ouro. Os jornalistas d'outras épocas também passavam por isso, mas sabiam que um erro crasso de português poderia ter, como conseqüência, sua substituição por alguém melhor alphabetizado. No mínimo.

Parece que eles interpretaram a liberação do diploma, como uma licença para relaxar. Eu sou parente de jornalistas, já ajudei a trabalhar no ramo, inclusive montando bonecos de jornais para fazer fotolitos e mandar rodar. As dificuldades nunca foram desculpa para fazer serviço porco. Nunca! Quando a matéria saía e víamos a simples ausência de uma conjugação verbal, mesmo que o espaço denotasse uma falha simples de datilographia (não riam!), o mundo caía! Ficávamos nos sentindo incompetentes pelas vinte e quatro horas seguintes. E O LEITOR NOTAVA!

Podíamos esperar placidamente pelas trolhas, porque se ontem éramos parabenizados pela bela matéria, hoje seríamos os fugitivos do mobral. E pagava-se mal, muito mal! Não existia uma entidade, como a agência Comunique-se, para dar um mínimo de representatividade aos jornalistas e profissionais de apoio. Ou alguém aí pensa que o repórter trabalha sozinho? Nem se ganhasse bem, conseguiria!

Mas fazíamos um trabalho aceitável. Fazíamos a diferença. Ganhar pouco era motivo até para dar um pé nos fundilhos do jornal e ir procurar outro, mas nunca para fazer serviço porco. Até porque, quem fazia serviço porco, não conseguia se manter no ramo.

Fica em mim, a impressão de que eles aproveitam a pressa, para fazer tudo de qualquer jeito. Que não se valem sequer de corretores ortográphicos, do próprio editor de textos, para evitar os vexames que amigos meus em outros países, notam de cara. Bem fizeram os lusitanos, que se rebelaram contra a deforma ortográphica e continuam a escrever do MODO CERTO.

Não são erros esporádicos, são rotineiros. Também não são simples trocas, como escrever "decidas" em vez de "cedidas", ou "amis" em vez de "mais". Tampouco são erros de alto nível, são falhas que reteriam qualquer um na antiga quarta série primária. Claro que o relaxamento oficial da língua, contribuiu muito, pois agora podem alegar que "é assim qu'eu falo, é assim qu'eu inscrevo". E nisso perseveram até só eles mesmos entenderem o que está escrito. Às vezes nem eles.

26/11/2012

Everybody hates Nanael

http://rederecord.r7.com/2012/06/28/ela-pega-muito-no-pe-do-chris-conheca-a-senhorita-morello/?pid=3875#ngg-img

Depois que um certo directorzinho chamou de mongos, gente com Q.I um pouco acima da média, com eu, a Record deu um pequeno e temporário refresco para o Pica-Pau, passando a reprisar "Todo Mundo Odeia o Chris". Eu preferia o Pica-Pau ao programa do cidadão em questão, porque gosto da influência de Tex Avery na animação; e como ele faz falta! E, francamente, a série oitentista dá de dez que quase todas as atrações da televisão nacional. Mostra muito mais sobre sociedade e política, de uma forma muito agradável de se encarar o pior da realidade, do que todos os nossos telejornais e periódicos juntos, não bastasse a narrativa indefectível do Chris adulto. Fora que é uma delícia ver os anos oitenta tão bem reproduzidos. Quase um Peanuts com actores de verdade.

Eu não sou exactamente um nerd de televisão, nem me considero um caxias, expressão equivalente do meu tempo. Não vi todos os episódios da série, não memorizei nomes e frases, e sou incapaz de citar, com segurança, um que tenha me chamado mais a atenção, a exceção de um. Foi quando Chris, sabotado por um professor mal amado, como se sua má sorte não fosse suficiente, largou os estudos formais, conseguindo concluir a escola com testes supletivos. Bem, sabemos que o ensino público americano não é a maravilha que os alienados fazem parecer, mesmo assim dá de dez na maioria das nossas escolas particulares. Lá, para passar, ainda tem que saber. E Chris provou que sabia o suficiente, quando mostrou à família, em uma lanchonete, o envelope com o resultado de aprovatório.

Foi então, na desistência, que o branquelo valentão confessou que tinha inveja dele, por isso o agredia. Claro que na vida real, é quase improvável que um mané que só conhece a inteligência muscular, faça isso. Mas como eu disse, a série é uma aula de sociedade e política, não poderia ser fidelíssima à realidade porque, bem... a realidade em que vivemos é mais falsa do que Louis Vuitton de R$ 19,99. Uma série bem feita como essa, mesmo retratando o mundo de trinta anos atrás, é mais fidedigna do que os noticiários. Ei, eu não sou um jovenzinho, eu estava lá para ver, posso dizer como era a época e se uma ficção a retrata bem. "Everybody Hates Chris" é uma das melhores produções retrô-oitentistas que já vi, se não a melhor. Por que? Porque retrata gente comum em suas rotinas comuns, mas de forma ligeiramente caricata, uma parábola novelística para ajudar a compreender melhor, não há pedagogia que supere este método.

A professora bonitona, e depois promovida a directora da escola, Senhorita Morello, era provavelmente a única pessoa que REALMENTE acreditava nele. Era ela que o segurava na escola, que enxergava o seu potencial e, principalmente, que o tratava com o devido respeito... E mesmo assim, acabou acreditando nas evidências circunstanciais de que era vítima. Não dava, ele não era só atrapalhado, ele tinha uma caveira de burro como signo solar!

Bem, como Chris narra sua vida de cão, de quando era um garoto, podemos supor que ele sobreviveu aos percalços que vieram depois. Não pensem que tudo aquilo é só ficção, não de todo, há pessoas que passaram por cousas parecidas, e uma delas é este escriba que vos fala.

Eu também precisei abandonar os estudos formais, por absoluta falta de resultados. Não entrarei em pormenores, não cabe fazer isso aqui, mas posso dizer que amarguei a culpa de ter decepcionado muita gente. De algumas eu carrego ainda os lutos, um deles bem recente. Conclui o antigo segundo grau em provas de suficiência, como Chris.

Não foi uma decisão fácil, agradável e não me deixou mais livre. Contra indico para qualquer um que ainda tenha um fio de esperança de conseguir um diploma. Eu já não tinha nenhuma. Mas quando digo "nenhuma", não é porque odiava alguém, algo, ou estava revoltado e protestando contra tudo isso que aí está. Minhas forças já tinham acabado mesmo, e paguei caro pela minha decisão. Não foi a melhor, foi a menos ruim, algo como desligar os aparelhos e deixar o paciente ter uma morte digna, após anos de coma profundo, nos quais só faltou a recomendação de adubar uma vez ao mês.

Crianças, foi péssimo. Vocês pensam que sabem o que é humilhação? Eu amarguei meia década sendo tratado como um pária, um americano espionando para Hitler. Por muitos anos, todo mundo me apontou o dedo, veladamente ou não. Se alguém aí pensa que sabe o que é bullying, e eu conheci isso durante toda a vida escolar, não faz idéia do que se passa ao tomar uma decisão assim.

Arrependimento? Não. Não porque eu lutei até o fim. Não larguei de repente, porque estava cansado e decidi dar um tempo na vida. Larguei porque não agüentava mais mesmo, e dei sinais inequívocos, por anos, de que isso iria acontecer.

Não vou choramingar pitangas, nem sou apreciador desta fruta, mas sinto falta de uma rotina de estudos. Infelizmente, nas condições, no contexto e com a cabeça sempre à beira da explosão, nem cuidar de meus blogs, o que fazia com os pés nas costas, tenho conseguido a contento.

Estudar formalmente, à sério, demanda mais do que disciplina e força de vontade. Um mínimo de continuidade na leitura e nos exercícios, sob pena de tudo se perder, é imprescindível. Meia hora por dia, basta, em condições adequadas. Estou longe de tê-las.

Como seria minha vida hoje, se eu tivesse insistido? Melhor? Tens certeza? Estavas lá, do meu lado, para poder dizer? Tudo o que se disser será mera especulação. Tudo o que posso,e devo afirmar, é que não tomem isto como exemplo, tomem como lição. Se vocês ainda têm um mínimo de esperanças, e 99,99% de vocês têm, insistam. Vocês não fazem idéia do grau de rebaixamento a que se é submetido, por se largar os estudos, especialmente quando todo mundo "acha" que tu tens um potencial enorme, gigantesco, colossal, cósmico, escalafobético.

Todo mundo me achava inteligente, mas por isso mesmo, todo mundo achava que ia mal porque queria. Não daria pelota, se não fosse gente muito cara para mim. Sei que e o quanto decepcionei todo mundo. Ninguém além de mim, sabe o preço que paguei por isso. Acreditem, garotos, vocês não sabem. Então ponham todas as suas fibras no foco dos estudos, e deixem o lazer para as horas de lazer.

Se voltarei aos bancos, algum, dia, eu não sei. Os tempos de turbulência e impotência não terminaram. O que eu queria ser, não vem ao caso, eu não sou, mas também não vou procurar culpados para isso, não vai retroceder o tempo e não vai resolver meus problemas. Leiam bem o que vou dizer agora, e meditem sempre que pensarem em largar os estudos, seja qual for o motivo: O inferno existe, e eu estou nele.

23/11/2012

Eu não sou gado

Sou "certinho" porque quero.
Reconheço que sou, por vezes, um chato irascível. Especialmente quando se trata de não seguir maus exemplos, o comportamento do efeito manada é um deles.

É muito freqüente eu me lembrar da canção de Zé Ramalho, quando entro em um ambiente público, vendo o comportamento absolutamente irracional dos cidadãos descidadaniados, que o são muitas vezes pelo próprio comodismo.

Hoje, neste pedaço de dia ainda infindado, tive mais um desses maus exemplos... Quer dizer, mais dois. O primeiro foi ter sido o único otário da divisão, saindo quando sou pago para sair, cumprindo o meu horário à risca. O segundo se deu quando fui ao banco, tapar um buraco escarlate na minha conta.

A porta giratória nunca foi amistosa comigo, porque trago chaves, celular, câmera e um guarda-chuva; desta vez acrescentou-se a bateria reserva da câmera. Ok, a chuva ainda não tinha começado, demorei uns segundos mais e consegui entrar. O bisonho estava lá dentro, na, como direi, segunda sala de uma das agências mais tradicionais do Setor Campinas, logo depois da "sala de auto atendimento".

Vi quatro cidadãos descidadaniados na fila, antes da curva marcada no chão. A questão aqui, é que a fila que esses quatro formavam, estava fora da fila. Pela concepção, de quando o Itau ainda não tinha comprado o BEG, a agência foi planejada para um número relativamente pequeno de clientes, por isso a arquitetura de mobília teve que rebolar, para fazer os painéis de vidro fosco dividirem espaço com os assentos.

Bem, em vez de fazerem a curva normalmente, como qualquer pessoa civilizada, os descidadaniados formavam um rabicho de fila na direção do corredor, ao lado dos acentos que separa a fila comum da dos idosos, gestantes e deficientes físicos. Se eu tivesse aderido, os que vieram depois de mim acabariam embolados em frente a uma sala de acesso restrito; potenciais assaltantes adorariam ver essa bagunça.

Well, lá estava o vosso amigo Nanael, de fora do rabicho, dentro da marcação de fila, alonemente sozinho e desamparado. O facto de eu estar usando chapéu de linhagem crua com desenho clássico, um pesado relógio analógico de aço e um guarda-chuva apoiado no chão, como uma bengala, já me faria destoar daquelas figuras que pareciam prestes a desmanchar.

Mas ainda contava o facto de eu me recusar a ir com a boiada, me mantendo impassível aos olhares de estranhamento, parado, até que o último boi da fila entrasse na demarcação. Ok, alguém aí vai dizer que quem fica na demarcação é que é boi. Meia verdade, nada além de uma conclusão simplista de quem não consegue raciocinar sem atrelamentos ideológicos, dogmáticos ou o que valha.

Eu estava na demarcação por livre arbítrio, porque desejava um ambiente organizado, em que ninguém tivesse sua vez desrespeitada. Os outros estavam no rabicho porque lhes foi dito que é assim mesmo, que não adianta nada, que nunca vai mudar e vote em mim. O rebelde lá, era eu.

Aliás, um adendo, este foi um dos pontos que mais gostei em São Paulo. Cada ônibus pára em seu respectivo ponto, e a fila se mantém formada, mesmo com transeuntes a atravessando, por falta de espaço na calçada. Fim do adento.

A minha rebeldia fez efeito, os que vieram depois de mim, ficara atrás de mim, mesmo com o rabicho ainda formado. Dava tristeza ver aquelas pessoas, ainda jovens e fortes, com caras de preguiça, jeito de preguiça e se escorando de modo preguiçoso em tudo o que podiam se escorar.

O efeito manada se repetiu quando eles começaram a se amontoar na frente, como se isso fosse apressar o atendimento. Eu não saí do lugar. Enquanto um deles não ia para o guichê, eu não dava um passo. Adivinhem se alguém esperou menos tempo do que eu, para ser atendido! Decerto que demorou mais do que eu gostaria, mas por causa de gente que pega contas do condomínio inteiro para pagar, ou boys que deixam tudo acumular para só resolver na sexta-feira.

Vou contar uma cousa, que talvez nem todos aí, do outro lado do monitor, saibam: Eu saí ileso do banco. Não faltou um centavo sequer, apenas mil reais a menos, que depositei na boca do caixa para me prevenir contra imprevistos, mas foi só. Saí de chapéu ajeitado e guarda-chuva na mão, pela mesma famigerada porta giratória, sem um arranhão sequer, nem na auto estima.

Não, meus amigos, rebelde não é aquele que faz bagunça. Rebelde é aquele que se rebela, que sai da zona de conforto social, ciente das conseqüências. Muitas vezes, especialmente em uma cidade que estava ascendendo na civilidade e regrediu bruscamente, ser civilizado é um acto de alta rebeldia. Afinal, ter touro como signo solar, não significa que devo me comportar como boi de corte.


Vocês que me olham com desconfiança, como se eu estivesse cantando dentro de uma gaiola de ouro, olhem de novo. Eu não cedo à tentação de falar o que todo mundo fala, não absorvo vícios de linguagem e comportamento dos grupos que integro, não compro uma tranqueira electrônica só porque está baratinha e todo mundo já tem, não pago uma fortuna para fazer propaganda de graça para uma grife que usa mão-de-obra semi-escrava, não voto por protesto nem por simpatia, enfim... Resumindo, quem aqui está em uma gaiola mesmo?

14/11/2012

Os Dragões de Titânia - uma resenha

http://www.dragoesdetitania.com/

Pensei seriamente em deixar o Renato chupando dedo até o terceiro livro, escrever a resenha da obra toda, mas desisti de ser malvado com ele e vou tratar do primeiro livro agora. Até porque é uma resenha muito, mas muito longa, preparem vossos olhos. Se quiserem ler em partes, fiquem à vontade, eu entendo.


Os Dragões de Titânia; A batalha de Argos

A primeira vista, parece ser um livro de ficção fantástica, que veio na esteira tardia de O Senhor dos Anéis, mas só parece. Na realidade, meu debochado amigo já tinha a idéia há algum tempo, maturando até chegar o momento. Apesar do estilo semelhante, trata-se de uma trama muito mais complexa, com altas doses de violência, mas sempre em batalha.

A estória se passa em outra dimensão, em um mundo que lembra muito a nossa idade antiga, mas com particularidades que veremos pelo caminho. Começa na ilha de Argos, protetorado do império de Titânia, e começa logo com porrada. Os protagonistas, liderados pelo ex-agricultor Telus, um anão barbudo e grisalho, e pela feiticeira ciganesca Miranda. A luta é contra o barão Ricardus I, dentro de uma mina ilegal de platina, com nossos heróis levando a pior, porque o barão conta com as Armaduras-Fantasma, que são cascas vazias de aço enfeitiçado, que têm a persistência de uma avalanche, e são quase tão inteligentes quanto.

Logo no início há uma baixa muito cara. Quando a mina começa a desmoronar, por obra do mago anti social Khosta, o barão quebra o lindo pescocinho da elfa Lerandra, que mais tarde se descobre ser o equivalente a uma princesa, em Alfeimr, seu país. Desolado, o grupo se divide, de modo temporário, tendo uma comitiva a tarefa de levar o corpo de Lerandra para sua terra, devidamente preservado pela magia de Miranda. Telus, o anão que nunca deixou seus sentimentos transparecerem, gostava dela.

Eles descobrem ainda no acampamento, com os mineradores que libertaram, que o propósito de se extrair a platina é fazer colares para controlar os dragões. Como souberam? Foram atacados por um deles. Telus, feito um piolho de dragão, escalou o bicho em pleno vôo, e mandou a espada no colar que usava, então o ataque cessou. Ou seja, o objectivo não era financeiro, era bélico. É um pensamento primário, acreditar que metade das ações humanas visa fins econômicos, o que o livro mostra claramente.

Na viagem até um porto, tomando cuidado com as armaduras-fantasma que cobram pedágios mais caros do que os da Rio-São Paulo, em uma estrada toda esburacada, vão Telus, o elfo Cronus, a freira Galiléia, Kostha e o cocheiro, com a esquife de Lerandra à bordo. Durante a viagem, o dragão liberto volta a assediar o grupo, mas está atrás particularmente de Telus, pois soube que o lingua-de-trapo andou contando vantagens da luta. Ainda inexperiente, o anão até consegue se defender, mas o dragão logo lhe dá uma bordoada, após quebrar a espada. Ele só queria tirar satisfações mesmo, para depois ir embora.

Aqui entra uma das atrações do show do Renato. Ainda de cara com o dragão, telus vê um machado de guerra cair entre suas pernas, quase o transformando em uma anã. Trata-se de uma das doze armas mágicas, que chega em boa hora. Do rio, com um "avatar" de lama, surge um ancião que eles tinham conhecido antes de atacarem a mina, e quase os matou Telus e Peter Paul, este que saiu em busca de aperfeiçoamento militar, mandando-os para as garras de um dragão que cuspiu uma espessa borrifada ácida nos dois. Ah, não fosse a santa Galiléia! Pois o machado treme, prende as mãos do anão e investe contra o "Velho da Torre" e as criaturas que ele criou.

A perda do episódio fica para Kostha, que teve incendiado o único bem que sua mãe lhe deixou, o grimório com o selo da família.

Aos trancos e barrancos, chegam à cidade portuária, munidos de uma boa quantia de platina para as despesas. Pagam propina para um capitão que vai levá-los com um cadáver que NÃO SERÁ DECLARADO ÀS AUTORIDADES, e procuram duas cousas, uma hospedaria e um segurança.

Quem já leu sobre magia um pouco à sério, sabe que elementais do ar, como os elfos, são mais curiosos do que o gato morto. E Cronus se mete em confusão por causa dela. Uma caixa estranha, levada por gente esquisita, escoltada por armaduras-fantasma, é guardada em um celeiro e lá trancada. Com uma magia de invisibilidade, que depende de altas doses de calma e serenidade, faz nosso amigo orelhudo ser trancado lá dentro também. Ele tenta ver pela abertura do que perece um sarcófago, vê um livro com inscrições no seu idioma. Ele ENFIA A MÃO, meu Deus, porque ele fez isso??? Ele enfiou o mãozão na abertura, e ela ficou presa. Se desespera com a aproximação dos meliantes e a invisibilidade vai pro saco. O livro se abre sozinho, ele lê o que lhe é mostrado e... volta muitas horas depois, exausto, porque foi teleportado com o livro para quilômetros floresta adentro.

Conseguem um segurança, Silvester, ex-militar que conhece todas as manhas do império, e tem quase dois metros de altura, acredito que também uns 160kg de músculos bem condicionados. Embarcam e o perdedor da luta, o aparentemente jovem e mais misterioso do que bolsa de mulher, Shokozug, dá as caras, matando o cara que queria matá-los. É preso, dá trabalho, mas acaba se tornando um aliado, quando os ajuda a combater piratas. Aliás, ele descobre que os tal barão e Velho da Torre tentaram matá-lo, então passa a integrar o grupo, que também conta com o adolescente Ed Mãos-Leves, que deixou de ser ladrão para continuar vivo, após tentar furtar de Telus e seu enorme machado.

Miranda e Alambique, que justifica de sobra o nome, em outra parte e levando a platina para convencer o César, têm uma relação de tapas e beijos, até o momento em que o ex-centurião encontra outra arma mágica, uma espada que controla seu porre e o encoraja a avançar contra o Velho da Torre, que passa a chamar de Infiél. Os dois vão directo à Titânia, pedir ajuda contra o barão.

O outro grupo segue entre batalhas e momentos de descanso, quando chegam ao continente, aprimorando suas técnicas de luta e desbastando suas arestas, tornando o grupo mais coeso e determinado. Chegam à Alfeimr com um misto de alívio e pesar, especialmente Cronus, que dá uma bronca nos guardas que não queriam deixar o anão entrar, se valendo de sua posição social e da figura obituária de Lerandra.

Após a dor da cremação, eles têm a missão de investigar crimes bárbaros cometidos contra caravanas de elfos, como meio de compensar uma tentativa de homicídio a que três deles (Telus, Silvester e Shokozug) foram induzidos, pela magia do Infiél.  Lutam com um dragão negro, que reclama de traição e afirma que não foi responsável pelos ataques, é quando Cronus cogita a existência dos lendários elfos cinísios. Não demoram a encontrá-los.

Caem prisioneiros quando perseguem os cinísios através de uma passagem mágica, para o mundo subterrâneo deles. Aqui é um divisor de águas na estória, porque Cronus é submetido a um ritual que pretende ver se ele é o escolhido, enquanto os outros estão acorrentados e impotentes, prestes a serem executados, mas são salvos e teleportados pela rainha Arani, que tem ligação com tudo o que está acontecendo, de bom e de ruim. São recebidos com festa em Alfeimr e seguem para Titânia.

Pelo caminho, um ataque mata Galiléia, deixando mais uma ferida nos corações dos amigos que já tinham sido obrigados a deixar o elfo para trás. Especialmente Kostha, que via nela a única pessoa que poderia amar na vida.

Chegam à Titânia e vêem que Silvester não estava sendo fanfarrão. É mais ou menos como um paulista falar de São Paulo para quem nunca saiu de sua cidadezinha de mil e poucos habitantes. É tudo gigantesco. São-paulesco mesmo. Chegam à pensão da Adria, esposa miudinha e delicada do gigante Silvester, que realmente não se importa nem um pouco em fazer uma panela a mais de macarronada.

Vêem alambique liderando uma das muitas legiões que o César mandou para Argos, o reencontro é festivo, mas evitam falar de Galiléia, pelo menos por agora, quando ele sai para combate.

Passam dias em família, algo que entre eles, só Silvester conhecia, com todos os mimos que uma matriarca pode oferecer. Provavelmente foi a primeira vez que Shokozug foi bem tratado, sem que que esperar retribuir. Mas tem mais surpresas! Telus descobre que é pai! Foi levar o cajado de Galiléia ao templo de Odin, onde congregava, e voltou com uma linda noviça nórdica chamada Diane, e uma linda menininha chamada Allene, filha da rainha Arani... Que nunca sequer abraçou o anão...

Bem, deixando Allene sob os cuidados matriarcais de Adria, o grupo volta para Argos, acertar contas. São teleportados por Kostha, mas fazem votação e decidem que voltarão de navio. Descobrem que os elfos cinísios estão atacando e dizimando vilas, inclusive uma em que Kostha foi roubado, após ter limpado a mesa, em um carteado. Reencontram Cronus de uma maneira triste, após conhecerem seu jovem primo Kaliak, ele se tornou o herói que os cinísios esperavam e inimigo dos antigos aliados. Se reencontram nas minas, precariamente reabertas por mineiros cinísios, onde o barão encontra um Telus muito melhor preparado e querendo ver seu elmo rolar.

Uma cena triste, após os amigos, a legião titaniana que foi ajudá-los, e os próprios cinísios descobrirem que o Impuro queria matá-los com a lava quente do vulcão onde estão as minas. Cronus mata JJ, um dos amigos no primeiro confronto, pelas costas, decapitado, para então sumir com sua tropa nos túneis, e para uma passagem mágica. Silvester, típico titaniano com elevado senso de honra, se enfurece e passa a valer por três, contra as armaduras-fantasma.

Diane, que veio de um país frio, mas tem o coração caloroso, fica encantada com o capitão da legião, lorde Wataru, que chega a carregá-la nos braços, quando está ferida.

Ainda há outra batalha. Um lacaio do Impuro prende Telus e Khosta, este que finge trair os amigos pra conseguir libertar a ambos. Engana o lacaio, quando finge que vai ensiná-lo a ler o livro que era de Cronus, e agora é seu e tem o selo de sua família. Kaliak amputa sua mão com uma besta mágica, Kostha ainda fica com o seu anel, ganhando poderes, e vão para a próxima pancadaria. O Impuro descobre onde esconderam a platina que roubaram e manda armaduras buscá-la, dentro de um lago, mas Kostha faz nevar e o congela. É quando todo mundo cai em cima deles, inclusive do barão, que na realidade também é lacaio, quase sem livre arbítrio. Mas ambos fogem por um portal.

Em uma passagem, nesta fase do livro, Telus se encontra com a rainha Arani, que lhe explica um pouco do que está acontecendo, mas deixando mais dúvidas do que ele já tinha. Ele acorda com Diane fazendo invocações de cura. Tinha sido atingido por um dragão-escravizado, que ele teve que matar.

Voltam para Titânia, onde são convidados pelo príncipe herdeiro à tribuna de honra, no coliseu, onde Shokozug vê claramente a atmosphera de conspiração, que demonstra conhecer muito bem. Lá, muito dos amigos é revelado ao leitor, como paixões não correspondidas, frustrações e algumas surpresas. Kostha ainda se mete em uma encrenca, dias depois, enfrentando uma criatura reptiliana, tendo a ajuda dos amigos que pensava não saberem da empreitada. Fora contractado a peso de ouro por um senador, que teve suas terras atacadas bem á moda dos elfos cinísios, não imaginavam que fossem dar de cara com aquela criatura, estranha mesmo para quem se acostumou a ver centauros, elfos voando, dragões falantes, armas mágicas, enfim. Deram cabo do bicho e ganharam uma pequena fortuna.

O livro termina com Khosta indo cobrar o que lhe foi roubado, pelo dono do cassino, agora com o anel de raios eléctricos no dedo. Mas também com a ordenação de Diane, que se torna uma freira-guerreira de Odin. O finzinho tem os amigos aceitando a sugestão do príncipe, e fundando uma ordem militar-mercenária, que chamam de Os Dragões de Titânia. Além de serviços militares, também ministram cursos para candidatos a heróis, magos, tranbiqueiros a serviço do governo e outros, por uma quantia módica.

Vocês notaram que falei muito, resumi a estória, mas não disse tudo. Realmente, não disse sequer um décimo. O que fiz foi adoçar suas bocas para os quitutes que o livro oferece. Vamos a eles.

Não se trata apenas de uma ficção fantástica, que de ficção despropositada o mercado editorial está lotado. Renato Rodrigues, que escreveu assessorado por sua bela e jovem esposa, que é bruxa, coloca de forma lúdica e bem didática, algumas lições de vida que a escola não dá... e infelizmente a maioria das famílias também não. No livro, para o bom entendedor, fica clara a paródia do mundo real.

Bom carioca, Renato não usa do expediente de linguajar rebuscado e formal, que é muto recorrente em livros do gênero. Os personagens falam como cariocas, inclusive palavrões, como quando Cronus diz a Telus "Voando feito uma fadinha, né, filada#@**!!!". Isso por si só já ajuda a digerir uma estória densa e muito carregada das mazelas sócio-políticas, que temos desde o império romano, que serve de inspiração, dega-se de passagem.

O autor mostra claramente como as pessoas são manipuladas, levadas a crêr em um inimigo imaginário, enquanto o verdadeiro danoso à sociedade arquiteta e dirige tudo, só mostrando sua real periculosidade quando está realmente acuado, ou prestes a colocar seus planos em prática. O Casteliano, como o Impuro gosta de ser chamado, pode ser comparado a um político já totalmente corrompido, que não tem mais qualquer escrúpulo e não mede conseqüências para ter o que deseja.

Na transformação de Cronus em cinísio, fica evidente, especialmente quando ele volta de Argos com toneladas de platina, ouro e pedras preciosas, mas sem centenas dos mineiros e soldados que levou, como a mídia consegue mentir falando a verdade, até o ponto em que e do modo como convém aos seus pagadores.

Em várias passagens, também mostra ao leitor o modo como conspirações nascem, e a necessidade de se desprezar até laços familiares de primeiro grau, para levá-las adiante. Tudo sem disfarces. Com a boa maquiagem das parábolas, é claro, mas sem dó de chocar e te levar para o divã. Por que? Porque o mundo é assim. Renato teve o dom de mostrar ao leitor, o caminho do raciocínio lógico, sem traumas desnecessários, mas também sem poupá-lo dos necessários, algo como substituir as aulas de philosophia, que há décadas não temos mais nas grades escolares.

O autor mostra que, e como, é possível rir nas mais duras adversidades. Mostra que o mundo não é uma batalha cercada de um mar de prazeres, é o oposto: A vida tem uma ilhota de prazer cercada pelo oceano das adversidades. Aquela ilhota não vai te sustentar, terás que sair em busca de outras, de tempos em, tempos, para isso será necessário atravessar o mar. Como? Isso é função tua, tens que descobrir.

O livro é também uma iniciação bem suave à magia. Lembrem do que eu disse, Eddie Van Feu é uma bruxa, e como tal não comete as falhas crassas e mercadológicas de Harry Potter. Advertências sérias são feitas o tempo todo, mostrando que fazer uma pedra virar um bolo de chocolate, não sai de graça. Aliás, transformar pedra em chocolate, seja por magia, seja na metáfora da vida, custa muito mais do que quem não entrou na batalha pode imaginar. E muitos ladrões estão à espreita, esperando o bolo terminar de assar para roubá-lo, sem se importar se é só o que tens para comer.

Não é um livro longo, são pouco mais de duzentos e setenta páginas, com dezenas de personagens que, ao contrários do que muito acontece, têm todos a sua importância na saga, nenhum está lá só porque o Renato achou legal e decidiu colocar. Não. Todos fazem diferença e todos acabam mostrando alguma faceta obscura da personalidade humana. Por isso mesmo, é como um chocolate puro, que consegue saciar mesmo em pequenas quantidades.

O livro ainda traz dois belos brindes. Um é o marcador de página, uma fita colorida atada a uma medalha de duas faces, em uma a esfinge da moeda de Titânia, na outra um dos personagens. Muito bem feito e digno de se guardar. O outro é a parte central em papel envernizado, ilustrada com alguns dos personagens. Eles foram pintados pelas mãos de fada da gaúcha Carolina Mylius, que empresta sua enorme beleza aos rostos que criou. A moça segue a escola do lendário Eugênio Colonese, com rostos expressivos, bem proporcionados, com o tipo de beleza que independe dos modismos.

Agora, por que eu recomendo Os Dragões de Titânia, que já está no segundo livro, "A Queda do César"? Porque ele vai te ensinar a pensar por si mesmo, a não ser enganado com tanta facilidade, a não levar seus heróis tão à sério, porque eles também são humanos e podem te enganar, como qualquer outro bocó de quarenta e seis cromossomos. Além do mais, é uma estória gostosa de ler, com um linguajar coloquial, longe da vulgaridade é claro, que te faz não ver as páginas passando, mas te faz lembrar muito bem das lições que meu amigo Renato tem a oferecer.

05/11/2012

Tinteiro-terapia

Fonte da imagem: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-440165268-caneta-tinteiro-bico-de-pena-jinhao-_JM

É de conhecimento dos leitores habituais, que uso caneta-tinteiro no cotidiano. A espherográphica só sai do bolso para rabiscos rápidos, ou para ser emprestada. Ou pensam que vou entregar uma tinteiro estilo art-déco para um estranho?

Pois vou complementar o que eu disse no texto Tinteiro Sim, que fiz há uns quatro anos, no Talicoisa. Lá eu mostrei as vantagens inaparentes de se utilizar uma caneta-tinteiro com  freqüência e trema, bem como os mitos quanto ao preço e à variedade de marcas; Só no Brasil elas são consideradas artigos de luxo, e só aqui se pensa que são dois ou três fabricantes pelo mundo.

O primeiro efeito terapêutico de uma caneta-tinteiro, é ela mesma, sem precisar de uma gota de tinta. Por sua própria natureza, ela precisa ser mais elaborada, o que justifica algum trabalho artístico no desenho, mesmo que seja minimalista. Embora uma Mont Blanc passe facilmente das dezenas de milhares de reais, afinal é uma jóia com uma pena na ponta, uma boa e decorativa Royal Gold ou Crown, pode ser comprada em lojas populares por menos de cem reais, com garantia, desenho bonito e a certeza de ser um belo presente... E ainda dividem no cartão.

Enfim, só de saber admirar, ela já te tira um pouco da tensão. Há mais baratas, há mais caras, na linha popular, mas à amiúde, todas são psicoterapêuticas.

O segundo efeito, para quando e acostuma, é a recarga. Sabe aqueles tubinhos descartáveis? Vou ensinar um macete... dois pontos: Eu uso uma seringa com a ponta da agulha desbastada, para tirar do tinteiro e abastecer a caneta. sai muito mais barato do que comprar tinta picada, e mais seguro do que carregar vários tubinhos, fáceis de perder.

Isso se aprica também à manutenção, que geralmente é simples e só precisa de água limpa, levemente morna, para tirar a tinta seca da pena. Para o corpo, flanela úmida, no máximo com bem pouco sabão neutro, nada mais.

O terceiro efeito, e o que dá sentido à caneta, é o acto de escrever. Para começar, tu poder apertar e bater até quebrar a pena, mas ela não aceita grosserias. Ou escreve direito, ou ela nem tchuns! Embora as mais caras permitam uma variação notável de espessura e velocidade nos traços, elas não se dão com pressa e desajeito. Vais furar o papel e borrar a carta, se não tiveres cuidado.

Não, não estou dando a receita certa para um infarto agudo do miocárdio, nem a caneta vai resolver os teus problemas. Ela vai é te ajudar a colocar as idéias no lugar, ordenar o raciocínio, no decorrer da escrita, porque ela demanda uma escrita mais metódica e ordeira. No frigir dos ovos, a calma necessária ao manuseio da caneta-tinteiro se transfere para o teu emocional, facilitando focar a raiva onde ela deve ser focar, em vez de agir como uma metralhadora giratória.

A caligraphia medonha torna-se aceitável, com a prática, porque sabes como a caneta ceita escrever, e que de modo algum ela vai contrariar a própria natureza. Aliás, isto é também uma boa chance para começar a aceitar as pessoas com os seus defeitos, em vez de esperar que sejam perfeitinhas, do jeito que vemos no espelho... Né?

Sim, eu sei, este é um bom e apropriado tema para o Vintage Way of Life. Será feito, mas o foco será outro, e a galeria de imagens será menos muquirana.

31/10/2012

Oras, vende na licitação!

professorasueli.wordpress.com/2011/10/07/humor/
O cenário era desolador. Para quem olhasse sem muita atenção, parecia estar tudo perfeito, alinhado, enfim, apto ao comércio. Mas nenhum item resistiria a uma análise cuidadosa. Debaixo daqueles laminados em cores vivas e boa textura, uma série de falhas de fabricação indicavam prejuízo certo, nada passou pelo controle de qualidade.

Os dois analisam mais uma vez, para ver se algo pode ser vendido ao menos como se fosse usado, para o prejuízo não ser total. Abrem as gavetas de um armário, ela desliza silente e macia, mas não demoram para verem parafusos muito mal fixados. Fixados não por meio de buchas, mas directamente no compensado. Fora que nem todos os pontos de fixação foram sequer furados, para recebê-los. Em pouco tempo de uso, as gavetas começariam a afrouxar, travar e, pior, se desmantelar, com o risco de ferir alguém com gravidade. Seria processo certo.

Os sócios se olham, imaginam que tenha sido realmente aquele moleque senil, a quem fizeram a besteira de permitir que cumprisse o aviso prévio trabalhando...

- Não reaproveitam os pinéis, poderiam quebrar durante a remontagem. Não reaproveitam os trilhos, que já estão empenados pela sobrecarga. Se muito, aproveitamos os puxadores, mas o trabalho de tirá-los custaria mais do que valem no mercado.

- De quanto é o prejuízo?

- Quase um milhão de reais.

Cai sentado em uma cadeira, que também foi reprovada e se desmonta, jogando-o ao chão. Ferimentos leves, superficiais, mas que doem muito no orgulho. Sobem ao escritório, já pensando em ganhar alguma merreca no ferro-velho, já que algum metal há naqueles móveis. Vão ao computador, ver a cotação do ferro para sucata.

Alguns minutos de desânimo depois, dão de cara com um edital muito mal divulgado, até parecendo que os responsáveis não querem que o povo saiba. Clicam, lêem e mandam um e-mail para o contacto indicado. No dia seguinte, um homem de camiseta bege e calças de ginástica aparece, se identifica,  mostra o crachá e a conversa se inicia.

O visitante analisa os móveis. Se dá o trabalho de ver uma amostragem grande, para ter certeza do que está avaliando. Os empresários afirmam que eles agüentam seis meses sem dar problema, com serviço moderado, sem muita carga. Aquilo é melhor do que ele costuma ver, deduz então que os dois são novatos em licitações...

- Meus amigos, vamos conversar. Cá entre nós, isso não tem a mínima importância. O governo gosta de comprar, de fazer licitações, de movimentar a economia, se é que me entendem. O que vocês têm aqui, é melhor do que costumamos comprar para as autarquias. Móveis de primeira, só em gabinete de figurão, e mesmo assim a gente renova com freqüência. Em escolas, por exemplo, isso aqui está passando de bom. Se quebrar, eles arrumam, são criativos, sabem que não vão receber outros tão cedo e a secretaria fica em cima, cobrando resultados para as estatísticas.

- Mas isso pode machucar alguém.

- Pra isso eles têm planos de saúde. Aliás, funcionário público é muito estressado, vocês tiveram que requerer o alvará, sabem disso. Uma licença médica prolongada faz bem para eles.

Vai passando a conversa e, aos poucos, preparando as presilhas de caudas. Os convence de que, se não forem eles, outros ainda piores vão ganhar a licitação, então é melhor se livrarem do prejuízo e ainda ganhar experiência em vendas para o governo. Combinam um encontro, para selarem a parceria.

Se encontram em um lugar reservado, em um restaurante mediano, já com alguns códigos combinados. Estão os três de camisas pólo listradas, o que significa que as partes se entenderam, agora é negociar a montagem da casa. Combinam o chá de casa nova, os valores das prendas, até mesmo os peões que vão fazer o transporte. Tudo isso é código, inclusive a intenção de fazer uma surpresa à noiva.  Tudo combinado, eles dão um adiantamento em dinheiro e o contacto vai dar doce às crianças.

Três meses depois, como combinado, o prejuízo de quase um milhão se transforma em lucro de um e meio, já descontadas as propinas pagas e a lavagem de dinheiro. Mandam o mais rápido possível os móveis defeituosos para o depósito do Estado. Como lhes foi dito, não há um técnico sequer para supervisionar a entrega, os carregadores sequer têm certeza do que estão guardando. Tudo é colocado de qualquer jeito, com rudeza e descaso.

Vão-se seis meses mais, até a burocracia liberar os primeiros móveis, que guardados sem critério, já apresentam sinais de danos, isentando de responsabilidades o fabricante. Pronto, agora tudo será culpa da secretaria, conforme lhes foi prometido.

Outras licitações são feitas, outras são vencidas e eles desistem de vender para o varejo. De vez em quando até fazem uns móveis bons, para variar, mas já não têm a menor preocupação com a qualidade, que já foi reconhecida pelo público. Houve um aluno que teve a mão esquerda amputada, quando uma gaveta despencou e caiu de quina sobre seu pulso, mas isso é culpa da secretaria de educação, não deles. A televisão cai em cima da secretaria, que precisa pagar uma indenização que nem chegou perto do bomso do secretário, e tudo fica por isso mesmo.

26/10/2012

A Lebre e a Águia

Fonte: http://predadores.wordpress.com/
 A lebre estava muito desconfiada da águia. A ave sabia de tudo o que se passava na floresta, tudo mesmo, mas pouco se sabia do que ela estava fazendo. Um dia, decidida a colocar um controle nessa liberdade, para mostrar que estava sendo vigiada, a lebre decidiu seguir os passos da águia. Não poderia fazê-lo o tempo inteiro, afinal tinha seus afazeres, mas tinha amigos e poderia juntar o que conseguisse, com o queles tinham.

O primeiro dia apresentou um problema sério, o sol. A lebre quase ficou cega, olhando para cima. Precisou se acostumar a só olhar quando a luz estivesse favorável. O problema é que a águia, rápida como era, desaparecia ao menor piscar de olhos, mas era o que tinha.

No segundo dia, já conseguia seguir sem ser ofuscada e sem tropeçar. Tomava nota de tudo o que a água parecia fazer, o que no começo não fazia muito sentido, mas estava ali para aprender sobre o que considerava uma ameaça. O seu temor, é que a águia sabia muito a respeito de seus hábitos e dos de seu grupo, não sabia por que ainda não os atacara, mas não poderia esperar pela sorte.

O facto de aprender, não significava que a lebre se via livre de enrascadas. Uma vez, tentando acompanhar um razante da águia, acabou caindo em um ribeirão, que tinha recebido muita água da chuva e estava bravio. Teria se afogado, não fosse a presteza da própria águia que, noutro razante, a alcançou, mas tendo o cuidado de não perfurar as orelhas com suas garras afiadas. Foi constrangedor, mas precisou agradecer e ouvir "Disponha sempre, mas tenha cuidado, tem chovido muito nas montanhas, os rios ficarão bravios por algum tempo ainda".

O constrangimento e a gratidão não lhe demoveram. Mesmo grata, ainda considerava a águia uma ameaça potencial, e precisava vigiá-la. Aprendeu com o erro e com o aviso da águia, passando a ter uma atenção pouco comum, para quem não é predador natural de ninguém.

Se há algo de que a obstinação teve utilidade, foi ter-lhe tornado uma lebre extremamente astuta e engenhosa. Lebres não sobem em árvores, mas ela aprendeu a subir e descer com segurança, para vigiar seu alvo. Conheceu predadores dos quais nunca tinha ouvido falar, e alertou às outras lebres sobre eles. Mas a águia, ah, a água ainda tinha uma incógnita que a tornava ameaçadora, aos seus olhos.

Ainda ficava confusa, quando a água fazia manobras complicadas, não via motivação nem como isso ajudaria a atacar a presa. Às vezes, por uns segundos, ela parava no ar e dava meia-volta, para depois voltar com tudo e garantir sua refeição. Já a viu carregar um cabrito inteiro para o ninho, com a espinha gelando, imaginando-se no lugar do animal.

Lhe veio uma dúvida cruel. Por que a águia ainda não tinha atacado o seu grupo? E por que se arriscou, salvando-a da correnteza? Havia o risco de ambas se afogarem. Isso só aumentava a desconfiança.

Certo dia, julgando-se expert no comportamento da águia, a lebre foi confiante para o ponto costumeiro de partida. Estranhou não ver a, se assim poderia chamar, amiga no poleiro de sempre. Subiu na árvore, observou, desceu e deu de cara com quem? Com a águia...

- Procurando por mim, lebre?

A imponência, a majestade, toda a beleza e todo o poderio belicoso daquela ave, tão temida, estavam logo à sua frente, sem haver chances de escapar. Engoliu a gagueira, respirou mais fundo do que uma lebre normal conseguiria e respondeu...

- Sim, águia, eu estava observando você.

- Por que?

Deixou, a águia, que a lebre desembuchasse, para se acalmar e poderem conversar como adultas. Mas a pobrezinha estava nitidamente nervosa, acabou soltando seus temores, sua confusão em lidar com desconfiança e gratidão ao mesmo tempo, enfim, arrancou (sem trocadilhos) pena da águia...

- Lebre, lebre, lebre! Oh, lebre! Eu já conversei com as outras, para saber o porquê de você viver seguindo minha sombra!

- Sua sombra?

- Tudo o que você fez, lebre, tolinha, foi tentar seguir minha sombra! Lá do alto, também confusa com isso, eu observada todos os seus passos. Você estava vigiando uma sombra, que sumia a cada vez que as nuvens encobriam o sol! Não era a mim que estava seguindo.

A lebre não sabia o que fazer, estava muito envergonhada, não só por ter sido pêga sem ter notado, mas também pela ingenuidade em acreditar que aquela sombra e a águia, eram a mesma pessoa. Por detrás dos pêlos, viam-se suas bochechas fiarem rubras de vergonha...

- Eu não vou mentir, eu sou uma caçadora. Eu me alimento de animais menores, e às vezes até maiores do que eu. Me alimento inclusive de lebres. Mas não de vocês. Vocês são meus amigos, lebre. Se eu quisesse te atacar, teria tido um mês inteiro vendo você dar bandeira, se expondo a outros predadores, que eu precisei afugentar mais de uma vez.

Agora, ainda mais envergonhada, a lebre compreende aquelas manobras estranhas. A águia a estava protegendo. Estava tão ocupada que não vira os lobos, as raposas, as cobras, enfim, uma série de predadores dos quais foi poupada pela águia...

- Se eu quisesse comer vocês, eu já o teria feito e ninguém poderia me deter. Mas vocês são meus amigos. Eu desculpo, desta vez, a sua desconfiança. Também teria, no seu lugar. Mas lembre-se disso, lebre, eu não confundo amigos com refeição. Aquele beija-flor que mora no galho, logo acima da sua toca, eu já teria bicado, mas ele é meu amigo.

- D... Desculpe...

Começa a chorar. A águia a acolhe, certa de que o episódio se encerra ali. A lebre aprendeu que é absolutamente natural a alguém indefeso, não representar ameaça, não significa que seja amistoso. Um predador poderoso que faça o mesmo, com todas as chances apresentadas de lhe ser nocivo, dá uma prova rara de amizade, porque os outros não perderiam a primeira chance.

19/10/2012

Pobre Renê!


Renê teve problemas com o fórum que freqüentava. Causava muitos problemas, fazia-se de vítima e atacava nos bastidores das mensagens pessoais. Não que não fosse uma pessoa interessante, era um maluco muito interessante, mas era ainda mais inconveniente do que interessante. Chegou a flertar insistentemente com um rapaz, que se apresentava como moça, no fórum. Deu problema, muito problema, muito mais do que ele era capaz de administrar.

Após uma cisão, que causou muitas debandadas, inclusive a sua, Renê abriu um blog, chamando-o de "Renê Alerta!". Finalmente poderia dizer o que quisesse sem ser incomodado por gente com pensamentos pequenos, atidos à realidade e ao ganha-pão cotidiano. Começou apenas com mensagens curtas, como "Eu não deveria estar escrevendo isto, mas é de suma importância que as pessoas saibam o que se passa no mundo real, aquele em que as mesquinharias da imaturidade não conseguem penetrar. Não estamos sozinhos, a sua vida não é segredo para quem manda no mundo, os gatos são criaturas geneticamente programadas para nos vigiar. Não posso falar tudo agora, ou levantarei suspeitas, mas ao longo do tempo vocês saberão da verdade". Colocou uma ilustração de sua autoria e publicou. Desenhava mal, mas se considerava um Bosh incompreendido.

Uma, duas, três, quatro publicações e nada. Nada de comentários. Nos bastidores do blog, via alguns acessos, mas se decepcionava ao ver as origens e as palavras-chave das buscas. Praticamente todos entravam no blog por acaso, por um erro do motor de busca. Bem, se valeu de sua experiência para gerar intrigas, em seu favor. Achou que não faria diferença sonhar um pouquinho, ainda mais que estaria mentindo só para si mesmo.

De uma hora para outra, doze leitores assíduos apareceram do nada, tecendo longos e rasgados elogios à genialidade, à originalidade, à lucidez e ao bom humor de Renê. Claro que não comentavam todos os doze em todos os artigos, mas pelo menos seis comentaristas por texto, ele tinha. Chegou a experimentar trinta e oito comentários, quando escreveu sobre como os gatos foram geneticamente modificados na segunda guerra, pelos nazistas, plano que foi apropriado pelos americanos e hoje está em fase final de dominação do mundo. É por isso que existem sinais ocultos, como o de as bruxas gostarem de gatos, são as sociedades secretas tentando alertar a humanidade.

Material mão falta. Renê se dá ao trabalho de passar todos os fins de semana e folgas, fazendo pesquisas em jornais impressos e pela internet. Devemos reconhecer, esforçado ele é, e muito. Consegue montar uma teoria conspiratória que seria um candidato ao Oscar, se fosse filmada, mas peca quando coloca seus medos e traumas pessoais nas conclusões. E quem disse que os filmes respeitam a integralidade de uma obra?

Já com quase cem leitores, Renê considera conveniente abrir seu próprio fórum. Tece um texto só para avisar aos leitores "Amigos, eu agradeço muito pelo prestígio, pelos elogios, e até pelas críticas assaz constructivas que têm me dirigido. Então, como demonstração desta gratidão, abri um Fórum no blog, para vocês poderem não só tratar das minhas publicações, mas também abrir tópicos e falar de assuntos de seu interesse, até mesmo tratar de asuntos pessoais, que ninguém é de ferro... Exceto, é claro, o verdadeiro Barak Obama mecânico, que manipula o falso Obama e o Romney, rsrsrs...".

A adesão é quase imediada. Basta o leitor se inscrever e dizer por que quer ser forista do "Renê Alerta!". Todos os leitores habituais são aceitos, mas os esporádicos encontram dificuldades, alguns até desistem de entrar, embora possam ler o que os outros escrevem. Os tópicos se proliferam nos quadros, que vão dos textos do blog, passando por política, entretenimento, até assuntos pessoais. Rapidamente as amizades se formam e se consolidam no fórum.

O fórum progrediu, com glórias e problemas. Algumas dissidências, algumas brigas, mas a rigor, progrediu. Uma vez por semana, pelo menos, Renê publicava um artigo, que rendia muitas páginas com centenas, às vezes milhares de comentários e discussões, não raro muito acaloradas. Logo os foristas começaram a se encontrar, publicando as photographias em tópicos dedicados. Renê estava feliz, ou pelo menos era o que demonstrava.

Na realidade, Renê não tinha um só forista. Eram todos falsos, criações de sua imaginação fértil e bem coordenada. Não é para qualquer um, gerir milhares de personagens, sendo uns setenta excepcionalmente activos, mas ele conseguia. As photographias dos encontros, eram tiradas da internet, editadas para modificar rostos, paisagens e número de personagens. Tudo era falso, exceto a sinceridade de Renê em tentar alertar a humanidade para o governo oculto, que estava formando uma realidade artificial e concluindo o domínio do mundo.

E o "Renê Alerta!" não era uma realidade artificial? Ele chegou ao ponto de arrematar seis notebooks em um leilão, para ter seis meios (quase) simultâneos de postagem de comentários, assim podendo dar maior veracidade aos foristas... E à sua própria ilusão. Publicou, certa feita, um texto explicando aos leitores de fora, que os foristas estavam receosos com gente nova, de fora, que essa gente é que tinha causado as brigas homéricas protagonizadas lá dentro, e por isso passaria a pensar duas vezes, antes de aceitar alguém. Nomeou doze de seus personagens como conselheiros e moderadores, para ajudá-lo a gerir seu mundo virtual.

Com dois anos de fórum, Renê passou a acreditar que realmente tinha milhares de foristas, fãs, um conselho moderador e tudo mais. Não se perguntava mais se aquele forista falso diria realmente aquilo, simplesmente incorporava o personagem e escrevia. Ao sexto ano, trabalhando exclusivamente em função de sustentar seu mundo, comprou um servidor usado de grande capacidade, para que funcionasse como robô do fórum. Assim, de então em diante, algumas frases e mensagens simples eram postadas sem a sua intervenção, ficando a seu encargo coordenar as reações às intervenções do robô.

Pobre Renê. Queria brincar com o mundo, agora seu mundo brincava consigo. Não que não tivesse leitores de verdade, até porque as caixas de comentários extra-fórum ainda existiam, e tinham comentários que ele se prontificava em responder. Mas o mundo real já tinha perdido o encanto, seu mundinho virtual, longe de ser um paraíso, estava sob seu relativo controle.

Com o avanço da tecnologia e o barateamento dos hardwares, um servidor maior assumiu a função de robô, e frases curtas, em seu nome, passaram a responder à maioria dos comentários extra-fórum. Funcionou bem, muito bem. Bem o bastante para ele poder se dedicar ao fórum, às suas teorias conspiratórias, a dar sentido para sua vida.

Um dia, Renê morreu. Morte súbita, sem explicações conclusivas dos médicos, sem nem mesmo que sua família, de quem se afastara há muitos anos, soubesse. Os parentes só sabiam dele pelo blog. Prevenido, para o caso de tirar férias, ou ter que se esconder dos espiões das irmandades conspiratórias, tinha mais de mil e trezentos artigos escritos, prontos para serem publicados uma vez por semana. A sofisticação de seus robôs os fazia traçar cálculos complexos, para elaborar os comentários dos foristas, com base no que eles já tinham dito antes em situações semelhantes.

Ah, pobre Renê. Pelos próximos vinte e cinco anos, existe a possibilidade de ninguém dar por sua falta. Os artigos continuam sendo publicados, os comentários continuam sendo respondidos, os foristas continuam se relacionando, seu mundo continua vivo, mesmo seu criador estando morto.