29/09/2018

Esther; ritual de desaceleração


    Esther conclui o que lhe cabe na limpeza da casa. Certifica-se de que está tudo dentro de seus rígidos padrões de qualidade. Tira o avental branco de babado e o pendura com o avesso ao sol. Vai ver o que o mastim Israel está fazendo, ele já é adulto, mas seria pedir demais que fosse também um exemplo de civilização; se nem a humanidade o é.

    Atravessa o canteiro de dedaleiras, que cercam as cenouras e abobrinhas. Há outras dessas combinações no amplo quintal. Lá está ele, brincando com o gatinho malhado Hebron. Ajeita o longo vestido chemisier de estampa mineral em tons de verde escuro, afaga os dois e então sim, volta para dentro e vai usufruir de seu descanso. Há uma diarista que a ajuda duas vezes por semana, após longa insistência da família, mas ela não baixa a guarda por isso. Desloca sua esbelta massa até a biblioteca, pega um livro de psicologia no meio milhar de títulos disponíveis, então começa o ritual de desaceleração.

    Passa pelo laptop desligado sobre a mesa e vai ao toca discos. Ganhou de Joseph um long play de Adele. Examina a capa, confere as músicas, tira o disco da embalagem e abre o aparelho. Tudo em gestos suaves e delicados, a parte pesada do dia já terminou e seus filhos já não são mais crianças para se preocupar com pequenas demoras; eles têm suas próprias vidas e ela sempre recebe mensagens dos dois.

    Abre as cortinas como se estivesse em um movimento de balé clássico; elegante, delicada e perfeitamente sincronizada. Admira seu jardim e então sim, põe o disco no pick-up, liga, regula o volume, põe a agulha com cuidado e senta-se na poltrona à mesinha do telephone de baquelite rosa. Para quem vê, se parece com uma fada austera, para quem a conhece é a ama e senhora de tudo e todos entre os muros do lote.

    O disco gira e a agulha finalmente inicia a primeira faixa, coincidindo com o início da leitura. Ela balança a perna sobreposta, acompanhando a música, começando a se esquecer das vezes em que tentaram convertê-la no decorrer da semana. Ficou muito irritada com a petulância, mas agora quer dissipar tudo. Lê pacientemente cada página, às vezes fazendo anotações, em hebraico, no bloquinho que tem junto ao telephone, com sua clássica Parker 51.

    Cada parágrafo é uma pausa para meditar sobre o que foi lido, revisar as anotações e voltar a meditar. Evita pensar em problemas, pensa em planos. Volta à leitura com o mesmo cuidado, que já é seu modo natural de ler. Não está alheia ao ambiente, só está concentrada no que está fazendo.

    O lado A do disco termina. Levanta-se em movimentos femininos até o toca discos, levanta a agulha, vira o disco e recomeça tudo. Volta à poltrona e retoma sua leitura. mas é leitura mesmo, não apenas uma passada de olhos para memorizar algumas partes. Lê palavra por palavra, ouvindo-se mentalmente a narrar a leitura, para assegurar-se de que está lendo o que está impresso, não o que uma mente distraída e impaciente inventaria.

    O lado B termina e ela conclui a leitura por hoje, põe um marcador na página e vai em passos semicirculares à estante de onde o tirou. Guarda também o disco e vai à cozinha, fazer o chá da tarde. Escolhe a xícara, com pintura de rosas cor de rosa e bordas douradas, e a colher que usará. Faz sua alquimia com as ervas para ter o que deseja, então inicia outro ritual, de aquecimento, fervuras controladas e filtragem. O que resta vai virar adubo para seu jardim. Adiciona mel, mistura e começa a tomar, agora sentada na cadeira de balanço da varanda. Nesse ínterim chega Sarah, ela está visivelmente aborrecida. Esther diz para que faça um chá e a acompanhe, enquanto conversam a respeito.

    Faz tal qual a mãe lhe ensinou, repetindo os procedimentos que ela executou há pouco, e com o controle que se acostumou a ter nesse processo, boa parte da irritação se dissipa, a ponto de ela conseguir conversar a respeito sem alterar a voz. Não é nada de extraordinário, ela está acostumada como a mãe a se envolver no que está fazendo, assumir a responsabilidade e arcar com todos os ônus...

    - Mas as pessoas lá fora nem sempre são assim, Sarah. Você não pode exigir de uma pessoa mais do que ela pode oferecer e nem o que ela não estiver disposta a oferecer. Eu sei o quanto isso é irritante, foi para isso que lhe ensinei a desacelerar. Uma cabeça acelerada pensa rápido, mas não raciocina direito e é virtualmente incapaz de meditar sobre qualquer coisa. Você não pode esperar muito de quem não se compromete com a própria vida, que dirá com os colegas! Respire e tome seu chá.

    A moça acata. Embora os problemas não se dissipem, e nem é esse o objectivo, os resultados daninhos do que passou hoje sim. Aos poucos o cheiro de estresse e fuligem se desvanece de sua memória. Respira fundo, olha para aquela dama sorridente à sua frente e não tem como não sorrir também. Ama aquela mulher de forma quase devocional, ama aquela casa como se não houvesse no mundo outro lugar habitável. Logo não tem mais do que reclamar, estaria apenas repetindo a ladainha alheia de como o mundo é mau e injusto.

    Retoma com a mãe a conversa de ontem, sobre seus planos e a firme intenção de dar-lhe netos.