10/06/2015

Raoni diz love


  Findada a abertura, uma dos membros do fã clube vai perguntar a um grupo mais próximo de beatlemaníacos sobre uma canção de que nunca tinha ouvido falar. Bem, nem eles. A estranheza é generalizada. Nenhum deles tinha ouvido falar dessa canção premonitória, assim como todos os outros membros no ambiente. Vão à directoria elucidar o mistério...

  - Como é que é???
  - Uma canção premonitória sobre o cacique Raoni.
  - Sua diarista ouviu essa canção e a rádio confirmou o grupo, é isso?

  Pesquisam o acervo de milhões de páginas, mas nenhuma faz sequer menção à canção. Falam com clubes do mundo inteiro, mas nem os da Inglaterra têm notícias da obra. É sabido que os Beatles fizeram muitas músicas que jamais lançaram, inclusive algumas na esperança remota de a banda se reunir, então a dúvida procede. Decidem falar com a diarista, para evitar desprendimento de esforço desnecessário.

  Na terça-feira, um grupo visita a sócia e aguarda a diarista desocupar...

  - Uai! Cês que é fã não sabe? Eu que não sô ovo quase todo dia! Eles previro que o cacique Raoni ia existir e ia precisar de moral, então fez a música pra ele. Eles era só talentoso não, era também preventivo.

  Pane! Não só pelos maus tratos ao idioma, mas também porque alguém afirma que os garotos de Liverpool eram videntes. Agora doeu-lhes nos brios. Aquilo é quase como chamá-los de analphabetos e incompetentes. Pedem que cante um trecho, já que ela não sabe inglês, mal sabe português, mas afirma se lembrar direitinho da música...

  - É assim, ó: Num sei lá o quê, num sei lá o quê... Tra lá lá... Tra lá lá... Raoni diz love, pa pararara...

  Lhe providenciam um cursinho de inglês e português básico e encerram o caso.

04/06/2015

A gangue da Femme Fatale


  O cidadão vai com a família para o centro, tentar alguma diversão grátis para seus filhos pequenos, enquanto tenta vender o velho Dodge Dart Sumatra, já caindo aos pedaços e bebendo mais óleo do que gasolina. Para poupar gasolina e lubrificante, está fazendo um quilômetro e meio por litro com um e trinta com o outro, pega um atalho que seria totalmente contraindicado quando a tarde cai. Não vê problema em ir com a manhã tão clara e com as ruas próximas tão movimentadas.

  Engano fatal. Assim que fazem a curva e são ocultados pelo bambuzal, uma Sprinter 815 preta ainda com os plásticos nos bancos os fecha, atrás deles para um gigantesco e tão novo quanto Axor preto de três eixos com um baú de quatro. Da van descem elementos uniformizados, mascarados e fortemente armados. Uma femme fatale de fartos cabelos negros e apenas uma máscara ao redor dos olhos se aproxima, é a chefe da gangue que o governo tenta a todo custo deter, mas está ocupado demais destacando força policial para acompanhar prefeitos e vereadores em seus passeios com seus cãezinhos.

  O olhar dela não é frio, é jocoso. Ela zomba, faz ironias com a situação precária da família e dos restos mortais daquele outrora glorioso esportivo. Rosto perfeito, lábios em um vermelho vinho aveludado, decote largo e profundo, corpo escultural e uma cintura que não sabem como consegue, com uma das pernas totalmente exposta pela abertura do justo vestido extremamente negro. Após fazer troça dos pedidos de clemência do casal, que a todo momento se dizia pobre e coitadinho, vão os quatro e o cachorro para a Sprinter, enquanto o baú do Axor recebe o Dart. O caminhão nem sai e já ouvem o carro ser desmontado.

  O que se segue é estarrecedor. São os cinco submetidos a um rigoroso, emergencial e necessário tratamento dentário intensivo, têm suas arcadas praticamente restauradas. O seqüestro continua com uma reconstrução estética completa, são mergulhados nus, em uma banheira com loção de limpeza profunda; pai, mãe, irmãos e cachorrinho em sucessivos banhos que restauram peles e pelos, dando brilho e toque aveludado aos corpos maltratados pela pobreza, mas também pelos maus hábitos.

  São levados em cadeiras de rodas para um depósito imenso, lotado de roupas caras, de corte e acabamento perfeitos. A crueldade chega ao ponto de o desempregado sair do lugar vestido como um rei, em nada lembrando o mulambo decrepito e cambaleante que saiu da cama nesta manhã. O trauma do rapto, de ver sua esposa ser completamente reconstruída, seu casal de gêmeos receber cuidados dignos de bilionários, seu vira-latas ficar com aspecto de cão de exposição, tudo em poucas horas. Mas onde está não tem noção de tempo, para ele parece ter sido uma eternidade, enquanto ouvia dos seqüestradores um português perfeito, falado com dicção tão limpa, que aprendeu rapidamente a pronúncia correcta das palavras, e elas não saem mais de suas cabeças.

  São levados de volta ao lugar do rapto, onde o velho Dart os espera completamente reconstruído e com placas pretas. Meu Deus, que temerosidade! Que tipo de criatura faz isso com uma família humilde? Por quê? Estavam de mãos vazias, com dez reais enrolados em um saquinho de padaria, agora pai e mãe têm carteiras de couro com quinze mil reais em notas de cem, cada um. Tudo o que queriam era chegar ao lugar, de cabeças baixas e perguntar se poderiam entrar com a família, mas agora podem pagar diversões caras em lugares luxuosos e ainda dar gordas gorjetas. Levam malas caríssimas, com sensores e aparelhagens que nem sabiam que existiam, cheias de roupas que seus vencimentos não comprariam nem com um ano de economia total.

  E o carro? Seu pobre Dodge Dart com pintura Sumatra, comprado e remendado com tanto sacrifício, usando um pneu de cada medida, que esperavam vender por mil reais, hoje não sai da garagem por menos de setenta mil. Pobre Sumatra, deve estar rendendo mais do que quando novo. Abrem o porta-malas, para colocar a bagagem e, bem posicionada em um canto do imenso espaço, há uma grande e luxuosa cesta de piquenique. A crueldade não tem limites! Os bandidos investigaram a genealogia da família e colocaram os brasões de suas descendências na cesta. Dentro dela há vinhos caros, sucos da mais pura procedência, cristais, porcelanas, prataria, acepipes finos e toalhas finamente bordadas.

  Entram no carro e estranham tudo, pois absolutamente nada faz barulho. O ranger das portas, que precisavam de três ou quatro batidas para fechar, mas agora se fecham com um toque. A suspensão emudecida e disciplinada, que não balança mais quando alguém entra. O cheiro de estofado novo, sem riscos de alguém se ferir gravemente em um arame exposto. Luzes funcionando, vidros descendo sem o menor esforço, cintos de segurança limpos e funcionais. No porta-luvas a mulher encontra mais vestígios do sadismo; chaves electrônicas de um sobrado no alto do Jardins, reservas e programa de férias em um resort na Califórnia, carteiras de sociedade perpétua para toda a família em clubes e programas de fidelidade de empresas idôneas, e o contracto social de uma loja de artigos finos em um shopping de alto padrão.

  Estão desolados. Seguem para a delegacia, certos de que não vão conseguir fazer nada, mas precisam denunciar a ação dessa quadrilha, para pelo menos as pessoas se prevenirem. Antes passam no banco, para verem se ainda há alguns reais na conta. Para seu completo desespero, agora são clientes Noble Class, e o que vêem tem tantos zeros à direita, que não sabem dizer que número é aquele. Correm para a delegacia e são tratados como párias, como os verdadeiros criminosos. O delegado avisa que só não vão presos agora, porque agora são bilionários. Cometeram o crime mais hediondo do país, estão bem e felizes sem terem pedido favores ao governo, sem terem se humilhado ao "dotô político", sem terem se feitos de coitados e vítimas para militantes, sem terem molhado mãos de funcionários corruptos e lesado o erário. Não há perdão para este crime, mas como sempre criminalizam as vítimas.

  São achincalhados, tratados como traidores da pátria, dos valores mais arraigados e tradicionais, das causas populares, de terem mandado matar o Piscina, de tudo o que imaginam. Mas não vão atrás do bando, ele é poderoso demais para ser punido, já recuperou o caráter até de traficantes presos, que em momentos de fraqueza se renderam aos argumentos de que a melhor vingança contra um sistema corrompido, é derrubar a corrupção e pisar nela. Foi por isso que transferiram os coitadinhos dos chefes de tráfico para prisões exclusivas, para haver menos chances de esses dignos colaboradores do Estado serem "honestificados" pela gangue da femme fatale.

  O que mais resta àquela pobre e bilionária família? Tentar seguir a vida nova, porque a gangue invadiu seus perfis no facebook e todo mundo está sabendo de tudo, foram completamente reconstruídos e restaurados, como o Dart. Não são mais as mesmas pessoas, não têm mais os mesmos interesses, não vão mais furar fila porque todo mundo fura, jogar garrafa vazia pela janela do ônibus, compartilhar vídeos de cãezinhos sendo queimados vivos, xingar e ameaçar adeptos de uma ideologia enquanto fazem vistas grossas para as mazelas da sua, já não riem mais daquelas piadas, não gostam mais daqueles programas, não suportam mais aqueles cantores e não conseguem mais nem ver as capas daquelas revistas. Sua vida, que foi ruminada com carinho e de boca aberta por tantos anos, está destruída.

  Em outro ponto da cidade, em outro lugar obscuro, a femme fatale e sua gangue esperam pela próxima vítima, qualquer um que tenha um lampejo de dignidade e esqueça, por um segundo que seja, de ruminar a miséria e a mediocridade. E a próxima vítima, tome cuidado, pode ser você!