29/01/2023

A Maldição do Poeta

Da historinha "Rolo em: Saída Criativa", de propriedade de Mauricio de Sousa

             Em princípio o poeta tem boas intenções, mas sabemos que delas o inferno está cheio. Ele é demasiadamente apaixonado pelo que faz para admitir que possa haver algum mal em seu ofício. Ao contrário daqueles que apenas aprendem a técnica, ele tem uma sensibilidade rara para expor e reconhecer sentimentos, além de um modo só seu de fazê-lo sem com isso se fazer incompreensível, embora às vezes lhe convenha ser. Tudo o que o poeta honesto almeja é viver de suas trovas, encantando as pessoas com sua habilidade de dar encanto às formas rudes do cotidiano, nisso alguns cumprem com extremo êxito a sua missão e deixam de ser pessoas para serem vultos históricos. Antes de tudo, o poeta é um sedutor que acredita em tudo o que diz, e demonstra isso com tamanha sinceridade, que acaba seduzindo seu público.


            Um ponto fraco do poeta é sua recusa em sair de seu mundo, em alguns casos de sua bolha. Ele vende palavras, às vezes nem mesmo se dando o trabalho de escrevê-las, então não tem qualquer intimidade com a produção, ele encontra os productos prontos sempre que se digna a sair ao mundo real para buscar provisões. Está tudo lá, em formas e tamanhos para uso imediato, no máximo ele se informa por alto do modo como tudo aquilo foi feito, geralmente não compreendendo os motivos de se trabalhar tanto, já que árvores frutíferas nascem espontaneamente na floresta. Testemunhos e a palavra de quem trabalha no campo não contam para ele, não há argumentos que o demovam, se não couberem em sua narrativa, quase sempre com ar argumentação de que vultos intelectuais da história endossam sua posição, não até ele se ver com fome e frio, o que os que o cercam raramente permitem que aconteça.


            Por tudo isso tem facilidade em angariar simpatia e reunir grandes públicos em um só lugar, o que é particularmente interessante para comerciantes, que passam a protegê-lo de uma forma ou de outra, então o poeta novamente se convence de que poesia é tudo e que um poeta não precisa das coisas mundanas. Para a soberba lhe subir à cabeça, é um passo, que muitos deles dão. Por ser conveniente aos negócios, comerciantes toleram até certo ponto o que ele apregoa e a sua sensação de independência cresce, pode começar a acreditar que os outros é precisam de seus poemas e por isso o resto do mundo é obrigado a sustentá-lo; não de qualquer jeito, é claro, sempre com muito conforto, abundância e prazeres. Um hábito arraigado é tolerar e minimizar qualquer erro que alguém de sua turma tenha cometido, mas amplificar qualquer mínimo deslize que um desafeto ou discordante cometa nas mesmas circunstâncias, sob as mesmas alegações e com as mesmas conseqüências.


            Por isso, por vezes ele pode ser inconveniente, tentando convencer as pessoas a aderirem ao seu modo de vida, pois se todos vivessem de poesia, todos seriam felizes como ele. Sem preocupações materiais com as coisas que precisam ser pagas para serem obtidas, afinal se a poesia vinha de graça, tudo mais também o deveria. Por isso sua simpatia particular é pelos vultos antissistema, que em sua cabeça lutaram justo para que todos fossem poetas. O conteúdo não lhe é tão importante, porque a forma é com que trabalha. Se a forma não lhe for agradável, ele se vale de sua imensa facilidade para criar textos e discursa longamente com rebuscamentos capazes de seduzir a população, especialmente a outros poetas que engrossam rapidamente seu coro e fazem os divergentes parecerem a parte ruim da discussão. Fazer muito barulho, para o poeta é o mesmo que agir, ele é capaz de repetir "pam-pam pam pam-pam" diante do interlocutor sem se preocupar se está faltando com o respeito, para depois se vangloriar que ganhou a discussão. Ele ama e odeia com a mesma facilidade e intensidade, não há meio-termo.


            Também por isso ele é uma presa fácil de populistas, que têm maestria em falar o que o poeta quer ouvir enquanto dizem o que lhes convém, fazendo ele acreditar que está concordando com uma coisa, sendo que o conteúdo é outra. Isso torna o poeta um disseminador de idéias que ele pensa que conhece e o seduziram pelas formas que camuflaram o conteúdo, divulgando assim algo que ele estudou, mas efetivamente não conhece. Sua habilidade em rebater argumentos é bem explorada pelo populista, que o defende com unhas e dentes e faz tudo para que ele não conheça os meandros das idéias defendidas, ao menos não até que esteja tão envolvido e apaixonado por elas, que atrocidades decorrentes de sua prática não façam mais diferença em seu julgamento. Os seguidores do poeta então também adoptam o que ele propaga e tornam-se, mesmo que indirectamente, executores dos ditames do populista. A propaganda passa a ser a notícia.


            Com a argumentação legítima de que a cultura é essencial, o poeta ataca com fervor quem prefira investir em outros assuntos, especialmente a defesa, ignorando que deixar o outro em paz não é garantia de ser deixado em paz, para ele poesia é vida e defesa é morte, ponto final, absolutamente nada além de estar na mira do fuzil do invasor vai demovê-lo. Até lá, ele vai se negar a reconhecer que possa estar errado, pois isso poderia abrir mão de uma série de crenças sobre as quais ele erigiu seus sonhos mais nobres, seria abrir mão da narrativa que norteia seu horizonte e dá sentido à sua vida; e é claro que ele faz questão de cantar e declamar isso com o máximo possível de emoção, seu público vai sair por aí cantando e declamando a mesma coisa, tomando suas dores e apontando o dedo para os narizes dos desafetos. Não é maldade, não deles, é como se fossem fiéis de uma seita tentando defender sua divindade daqueles que acreditam ser uma ameaça à sua fé. Então o poeta se torna uma mistura de flautista de Hamelin com Don Quixote de La Mancha, cercado de Sancho Panças infantes fascinados por sua loucura. Meias-verdades, para ele, podem ser arredondadas para verdades ou mentiras absolutas, sem remorsos.


            O maior problema é que esses seguidores podem acreditar que precisam se tornar uma milícia, e é muito fácil eles acreditarem nisso. Nada oficial, nada comprometendo o poeta, mas basta ele fazer cara feia para alguém e este se tornar alvo de agressões, mesmo que só em redes sociais. Para todos os efeitos, seria uma defesa, não ataque, e o poeta lisonjeado não vai contrariar seu público, ele achará lindo cada atrocidade cometida em seu favor. Ainda que a ação em si lhe pareça reprovável, ela terá sido cometida em nome daquilo em que ele acredita, dificilmente vai ao menos tentar corrigir os autores, ele depende deles e tudo o que não quer é ver seu público se virando contra si. Aqui temos uma das armadilhas a que está exposto, ele torna-se cativo das próprias palavras, tanto para o público quanto para o narcisista populista. Ele até pode encerrar sua carreira de forma desagradável e por um ponto final, mas sua paixão pelo que faz o impede. Em alguns casos o poeta nem pensa nisso, nem mesmo enxerga contradições, nem dois pesos e duas medidas, não importa o que tenha sido dito ou feito; se partiu de seus asseclas, é justificável, o que tiver saído do outro é condenável não importam as motivações.


            Não é grande a parcela de poetas que se corrompe e cai nessa armadilha, mas os que caem nela se esmeram em obter notoriedade para facilidade a disseminação de suas idéias, ou das que pensam que são suas. Assim como ele é extremamente hábil em manipular palavras, é também facilmente manipulável por qualquer um que demonstre de forma convincente compartilhar delas. Quando se dá conta de estar sendo manipulado, isso quando se dá ou se importa em, já está até o pescoço em tudo o que o manipulador tiver feito ou dito. Ainda que tente suavizar suas palavras de então em diante, já está totalmente comprometido com o que já foi dito. Desaparecer repentinamente pode até ser um alívio para ele, mas não vai frear o que estiver acontecendo, pelo contrário, ele pode ser considerado um mártir da causa a ser exaustivamente explorado pelo manipulador. O poeta que se importa só pode frear isso se rebelando contra os acontecimentos, mas então ele será tratado como traidor e pode não sobreviver a isso.


            A morte até pode ser um alívio, mas o poeta morreria ciente de que seu trabalho será usado para tudo aquilo contra o que ele dizia ser.