Ele
entrou no grupo chamando ao ânimo, à esperança e à união. Disse
que todos ali eram dignos de vida melhor, que todos eram donos de
seus destinos e ninguém deveria baixar a cabeça para outrem. Eram
chamados Zaweens e em um passado não muito distante, por um longo
período, seus ancestrais foram maltratados e sujeitados pelos
Bandows. Ainda havia uma certa animosidade entre os grupos, embora
houvesse uma relativa convivência a desconfiança e a preterência
de um pelos membros do outro era clara, não de todos e nem sempre
assumida em público. Em verdade não era mais raro haver matrimônio
entre Zaweens e Bandows, que infelizmente ainda gerava desgosto em
muitos membros de ambos os lados, e eles sempre fizeram questão de
se declarar “lados”, apesar dos discursos de longa data por união
e tolerância; esta apenas protocolar. Encontros animosos ainda
aconteciam.
Ele
sabia disso e disso se fez valer, se infiltrando no grupo que em
vários aspectos ainda era o mais fraco, inclusive economicamente. Um
dos discursos preferidos era o abandono dos ancestrais de seu modo de
vida para se adequarem à exploração então vigente, dada de forma
traumática. A tática era falar dos ancestrais como se falasse dos
próprios presentes. Ele estimulou os Zaweens a cultivarem sua
própria cultura e se assumirem Zaweens. De início, apesar de uns
poucos olhares tortos, os Bandows também aceitaram bem e alguns até
aplaudiram essa iniciativa, pois parecia ser um recomeço digno e uma
proposta sólida de um futuro promissor. De resto, eles seguiam suas
vidas como se nada estivesse acontecendo, mas alguns Bandows ainda
não queriam ver Zaweens dentro de suas casas… e vice-versa.
Ele
destacava cada luta e cada conquista, exaltando o modo de vida
Zaween, embora ninguém ali quisesse abrir mão das coisas boas que
os Bandows trouxeram ao mundo. E nem seria racional, segundo ele
mesmo. Era facto que alguns Zaweens se tornavam presas fáceis da
sedução do crime, bem como nem todos conseguiam defesa com a
facilidade, ou menor dificuldade, com que os Bandows conseguiam. Ele
se aproveitou também dessa disparidade e se prontificou na defesa
dos membros corrompidos do grupo, inicialmente gritando que eles não
eram mais criminosos do que os do outro. Prolixia, retóricas e
narrativas bem construídas eram empregadas fartamente, encantando
ambos os grupos pela estética e por citações cuidadosamente
incrustadas nos discursos.
Tornou-se
célebre e requisitado em ambos os grupos, que ele fazia questão de
manter separados, como se as características de um fossem uma linha
fronteiriça que o outro não deveria ultrapassar. Claro que de modo
velado, com os explícitos ditos apenas em pequenos subgrupos que
espalhavam esse viés de boca em boca, sem registros oficiais e sem
qualquer comprometimento para com ele, como se tudo tivesse nascido
naturalmente no seio dos Zaweens. Dizer que jamais deveria haver
namoro e muito menos matrimônio com membros do outro grupo, que só
os infratores do outro grupo eram criminosos e os deste apenas
vítimas da sedução facilidade pelas circunstâncias desfavoráveis,
que os membros do outro grupo deveriam arcar com os actos de seus
ancestrais, entre outras coisas.
A
aceitação embasada em discursos de paz e união, cuja complexidade
disfarçava a incitação subliminar ao separatismo litigioso. Um de
seus passatempos preferido era arrotar erudição, enumerar todas as
obras que já leu, as que estava lendo e tirar citações de memória,
com formidável capacidade para encaixar qualquer uma no contexto
vigente, ainda que combinando por contraste o prato estava feito com
a indissociabilidade de todos os ingredientes. Afinal a maioria doz
Zaweens e muitos Bandows só ouviam a ele, e o tinham como referência
de intelectualidade e justiça. Se ele dizia, então era verdade e
ponto final. Com o tempo isso ele evoluiu para “se ele diz é para
acatar e ponto final”.
Por
vezes, e sempre ricamente documentado, ele mediava relações entre
os grupos, sempre com o semblante sóbrio e misericordioso, unindo
apertos de mãos, comandando as celebrações posteriores e
discursando fartamente; inclusive porque algumas vezes isso era
pedido. Após os folguedos, entretanto, cada grupo ia para seu canto
e a única marca enfatizada era a de ele como promotor da paz e da
justiça. Ele estava não só poderoso, por controlar o grosso da
massa de Zaweens e alguns subgrupos de Bandows com complexo de culpa,
mas também materialmente mais rico a cada dia. Nada era grátis,
embora ele fizesse parecer que algumas coisas fossem. Seus livros
custavam para ser impressos e postos à venda, e sua parte nos
dividendos não era pequena. Entrevistas fora de hora ou agendadas
nem sempre eram de sua cortesia, especialmente em caso de
deslocamentos mais longos e prolongados.
Muitos
Bandows e alguns Zaweens, dia após dia, desconfiavam das reais
intenções de tanto empenho para, quando investigavam a fundo, bem
pouco ou nenhum resultado útil à comunidade, que ele insistia em
manter como grupos opostos e até imiscíveis. Mas a inércia Bandow,
que mantinha o grupo como mero expectador, ele explorava como
indiferença ou mesmo conformismo com a situação de privilégio
histórico. Eles apenas queriam ver até onde tudo aquilo iria,
imersos em seus mundos particulares e seus dramas pessoais; o mesmo
que fazia o Zaween médio, muito preocupado em sobreviver e resolver
seus problemas, o que indirectamente delegava a ele poderes de Estado
para tratar de assuntos coletivos ou, com ele fazia questão de
ilustrar, da causa Zaween. Um dos métodos para preservar a tal causa
era amenizar, ignorar ou até mesmo ocultar, lançando mão de todo e
qualquer expediente que julgasse necessário, qualquer notícia de
conflitos internos, mesmo os que resultassem em óbito. A violência
não demorou a ser um desses expedientes, e só era bem conhecida
entre os Zaweens, que se dividia, entre os que apoiavam e os que
temiam essa repressão; ou validação social de informação, como
ele preferia chamar. Os eufemismos eram profícuos.
Um
dia vazou. Ele sabia que vazaria, mas também sabia que já tinha
controle muito amplo e profundo da situação para ser detido. Sabia
que tudo o que dissessem a seu respeito passaria pelo filtro
doutrinário que impôs ao seu grupo, e quem ousasse discordar em
público seria hostilizado pela comunidade. Até mesmo quem
suspeitassem acreditar em outras fontes o era, não raro uma conversa
inicialmente amistosa se tornava um interrogatório, e sua vítima
era exposta com sua face marcada como estigma. Todas as atenções
deveriam ser focadas nas agressões dos Bandows e exploradas ao
extremo, sempre citadas em todas as discussões futuras, as agressões
em contrário deveriam ser alardeadas como resgate histórico, pois
um Zaween talvez não soubesse o motivo da agressão, mas o Bandow
sabia o motivo de ter sido agredido.
Os
poucos Bandows que ainda acreditavam no direito de subjugar os
Zaweens se valeram disso para legitimar seus discursos, enquanto os
radicais mais próximos dele utilizavam esses Bandows como exemplo de
generalização. Ele subiu o tom pregando que qualquer um que não
acreditasse na perversidade Bandow, estaria na verdade negando o
passado e todo o sofrimento dos antepassados Zaweens; não
explicitamente, mas à sua maneira, com discursos que duravam horas,
textos de muitas páginas, centenas de citações devidamente
encaixadas, memórias de mártires e eufemismos a rodo. Seus
seguidores mais próximos passaram a culpar explicitamente os Bandows
de então pelo que seus tataravós fizeram, mesmo que não tenham
feito, e já falavam abertamente em justiça histórica com “Bandow
nasce culpado e todo bebê Bandow deve ser exterminado”.
Decerto
que muitos Zaweens se levantaram contra esse discurso, mas sabendo
que viriam represálias, e elas vieram em graus e formas de acordo
com o autor da afronta. Desde “alienado” a até “traidor da
causa”, as acusações definiam a punição interna, sempre sem o
conhecimento de outros grupos. Quando vazava, era devidamente banhado
nas águas dos longos discursos repletos de citações, eufemismos,
neologismos e com o tempero da emotividade muitas vezes
contraditória, mas que geralmente funcionava. Tentar reescrever a
história, difamar personagens Bandows, mesmos os que beneficiaram
Zaweens em suas épocas, e tentar proibir literaturas que não
corroborassem com sua narrativa, tornou-se prática comum.
Para
o acirramento de ânimos e eriçamento de pêlos foi uma fagulha,
bastou uma agressão de Bandow a um Zaween para os reais teores dos
discursos virem à tona. Ele entretanto já tinha tantos seguidores
em tantas espheras da sociedade, que estes faziam parecer que tudo o
que ele dizia e seus seguidores próximos praticavam era justo e
necessário. Os radicais do outro lado, indignados com a placidez de
seu grupo diante de tudo isso, adoptaram as mesmas máximas e
práticas. Do jeito que ele previa, queria e no fundo fomentava. Ser
odiado pelo grupo inimigo, para seus partidários, era prova de que
ele estava certo e que o que tudo o que fora feito ainda era pouco. O
caos subliminar estava instalado e ele prosperou enquanto estava
vivo, aliando-se inclusive a tiranias e inimigos de seu próprio país
para se consolidar e enriquecer mais.
Décadas
se passaram até tudo o que ele realmente fez ser comprovado, mas o
estrago e o atraso já estavam feitos, e ainda então havia quem
concordasse com o que fez.