19/06/2020

Matem os filhos dos Bandows!


        Ele entrou no grupo chamando ao ânimo, à esperança e à união. Disse que todos ali eram dignos de vida melhor, que todos eram donos de seus destinos e ninguém deveria baixar a cabeça para outrem. Eram chamados Zaweens e em um passado não muito distante, por um longo período, seus ancestrais foram maltratados e sujeitados pelos Bandows. Ainda havia uma certa animosidade entre os grupos, embora houvesse uma relativa convivência a desconfiança e a preterência de um pelos membros do outro era clara, não de todos e nem sempre assumida em público. Em verdade não era mais raro haver matrimônio entre Zaweens e Bandows, que infelizmente ainda gerava desgosto em muitos membros de ambos os lados, e eles sempre fizeram questão de se declarar “lados”, apesar dos discursos de longa data por união e tolerância; esta apenas protocolar. Encontros animosos ainda aconteciam.

        Ele sabia disso e disso se fez valer, se infiltrando no grupo que em vários aspectos ainda era o mais fraco, inclusive economicamente. Um dos discursos preferidos era o abandono dos ancestrais de seu modo de vida para se adequarem à exploração então vigente, dada de forma traumática. A tática era falar dos ancestrais como se falasse dos próprios presentes. Ele estimulou os Zaweens a cultivarem sua própria cultura e se assumirem Zaweens. De início, apesar de uns poucos olhares tortos, os Bandows também aceitaram bem e alguns até aplaudiram essa iniciativa, pois parecia ser um recomeço digno e uma proposta sólida de um futuro promissor. De resto, eles seguiam suas vidas como se nada estivesse acontecendo, mas alguns Bandows ainda não queriam ver Zaweens dentro de suas casas… e vice-versa.

        Ele destacava cada luta e cada conquista, exaltando o modo de vida Zaween, embora ninguém ali quisesse abrir mão das coisas boas que os Bandows trouxeram ao mundo. E nem seria racional, segundo ele mesmo. Era facto que alguns Zaweens se tornavam presas fáceis da sedução do crime, bem como nem todos conseguiam defesa com a facilidade, ou menor dificuldade, com que os Bandows conseguiam. Ele se aproveitou também dessa disparidade e se prontificou na defesa dos membros corrompidos do grupo, inicialmente gritando que eles não eram mais criminosos do que os do outro. Prolixia, retóricas e narrativas bem construídas eram empregadas fartamente, encantando ambos os grupos pela estética e por citações cuidadosamente incrustadas nos discursos.

        Tornou-se célebre e requisitado em ambos os grupos, que ele fazia questão de manter separados, como se as características de um fossem uma linha fronteiriça que o outro não deveria ultrapassar. Claro que de modo velado, com os explícitos ditos apenas em pequenos subgrupos que espalhavam esse viés de boca em boca, sem registros oficiais e sem qualquer comprometimento para com ele, como se tudo tivesse nascido naturalmente no seio dos Zaweens. Dizer que jamais deveria haver namoro e muito menos matrimônio com membros do outro grupo, que só os infratores do outro grupo eram criminosos e os deste apenas vítimas da sedução facilidade pelas circunstâncias desfavoráveis, que os membros do outro grupo deveriam arcar com os actos de seus ancestrais, entre outras coisas.

        A aceitação embasada em discursos de paz e união, cuja complexidade disfarçava a incitação subliminar ao separatismo litigioso. Um de seus passatempos preferido era arrotar erudição, enumerar todas as obras que já leu, as que estava lendo e tirar citações de memória, com formidável capacidade para encaixar qualquer uma no contexto vigente, ainda que combinando por contraste o prato estava feito com a indissociabilidade de todos os ingredientes. Afinal a maioria doz Zaweens e muitos Bandows só ouviam a ele, e o tinham como referência de intelectualidade e justiça. Se ele dizia, então era verdade e ponto final. Com o tempo isso ele evoluiu para “se ele diz é para acatar e ponto final”.

        Por vezes, e sempre ricamente documentado, ele mediava relações entre os grupos, sempre com o semblante sóbrio e misericordioso, unindo apertos de mãos, comandando as celebrações posteriores e discursando fartamente; inclusive porque algumas vezes isso era pedido. Após os folguedos, entretanto, cada grupo ia para seu canto e a única marca enfatizada era a de ele como promotor da paz e da justiça. Ele estava não só poderoso, por controlar o grosso da massa de Zaweens e alguns subgrupos de Bandows com complexo de culpa, mas também materialmente mais rico a cada dia. Nada era grátis, embora ele fizesse parecer que algumas coisas fossem. Seus livros custavam para ser impressos e postos à venda, e sua parte nos dividendos não era pequena. Entrevistas fora de hora ou agendadas nem sempre eram de sua cortesia, especialmente em caso de deslocamentos mais longos e prolongados.

        Muitos Bandows e alguns Zaweens, dia após dia, desconfiavam das reais intenções de tanto empenho para, quando investigavam a fundo, bem pouco ou nenhum resultado útil à comunidade, que ele insistia em manter como grupos opostos e até imiscíveis. Mas a inércia Bandow, que mantinha o grupo como mero expectador, ele explorava como indiferença ou mesmo conformismo com a situação de privilégio histórico. Eles apenas queriam ver até onde tudo aquilo iria, imersos em seus mundos particulares e seus dramas pessoais; o mesmo que fazia o Zaween médio, muito preocupado em sobreviver e resolver seus problemas, o que indirectamente delegava a ele poderes de Estado para tratar de assuntos coletivos ou, com ele fazia questão de ilustrar, da causa Zaween. Um dos métodos para preservar a tal causa era amenizar, ignorar ou até mesmo ocultar, lançando mão de todo e qualquer expediente que julgasse necessário, qualquer notícia de conflitos internos, mesmo os que resultassem em óbito. A violência não demorou a ser um desses expedientes, e só era bem conhecida entre os Zaweens, que se dividia, entre os que apoiavam e os que temiam essa repressão; ou validação social de informação, como ele preferia chamar. Os eufemismos eram profícuos.

        Um dia vazou. Ele sabia que vazaria, mas também sabia que já tinha controle muito amplo e profundo da situação para ser detido. Sabia que tudo o que dissessem a seu respeito passaria pelo filtro doutrinário que impôs ao seu grupo, e quem ousasse discordar em público seria hostilizado pela comunidade. Até mesmo quem suspeitassem acreditar em outras fontes o era, não raro uma conversa inicialmente amistosa se tornava um interrogatório, e sua vítima era exposta com sua face marcada como estigma. Todas as atenções deveriam ser focadas nas agressões dos Bandows e exploradas ao extremo, sempre citadas em todas as discussões futuras, as agressões em contrário deveriam ser alardeadas como resgate histórico, pois um Zaween talvez não soubesse o motivo da agressão, mas o Bandow sabia o motivo de ter sido agredido.

        Os poucos Bandows que ainda acreditavam no direito de subjugar os Zaweens se valeram disso para legitimar seus discursos, enquanto os radicais mais próximos dele utilizavam esses Bandows como exemplo de generalização. Ele subiu o tom pregando que qualquer um que não acreditasse na perversidade Bandow, estaria na verdade negando o passado e todo o sofrimento dos antepassados Zaweens; não explicitamente, mas à sua maneira, com discursos que duravam horas, textos de muitas páginas, centenas de citações devidamente encaixadas, memórias de mártires e eufemismos a rodo. Seus seguidores mais próximos passaram a culpar explicitamente os Bandows de então pelo que seus tataravós fizeram, mesmo que não tenham feito, e já falavam abertamente em justiça histórica com “Bandow nasce culpado e todo bebê Bandow deve ser exterminado”.

        Decerto que muitos Zaweens se levantaram contra esse discurso, mas sabendo que viriam represálias, e elas vieram em graus e formas de acordo com o autor da afronta. Desde “alienado” a até “traidor da causa”, as acusações definiam a punição interna, sempre sem o conhecimento de outros grupos. Quando vazava, era devidamente banhado nas águas dos longos discursos repletos de citações, eufemismos, neologismos e com o tempero da emotividade muitas vezes contraditória, mas que geralmente funcionava. Tentar reescrever a história, difamar personagens Bandows, mesmos os que beneficiaram Zaweens em suas épocas, e tentar proibir literaturas que não corroborassem com sua narrativa, tornou-se prática comum.

        Para o acirramento de ânimos e eriçamento de pêlos foi uma fagulha, bastou uma agressão de Bandow a um Zaween para os reais teores dos discursos virem à tona. Ele entretanto já tinha tantos seguidores em tantas espheras da sociedade, que estes faziam parecer que tudo o que ele dizia e seus seguidores próximos praticavam era justo e necessário. Os radicais do outro lado, indignados com a placidez de seu grupo diante de tudo isso, adoptaram as mesmas máximas e práticas. Do jeito que ele previa, queria e no fundo fomentava. Ser odiado pelo grupo inimigo, para seus partidários, era prova de que ele estava certo e que o que tudo o que fora feito ainda era pouco. O caos subliminar estava instalado e ele prosperou enquanto estava vivo, aliando-se inclusive a tiranias e inimigos de seu próprio país para se consolidar e enriquecer mais.

        Décadas se passaram até tudo o que ele realmente fez ser comprovado, mas o estrago e o atraso já estavam feitos, e ainda então havia quem concordasse com o que fez.