30/06/2011

Lição coreana

Às vezes fico sem gancho para tratar de um assunto, quando isso acontece recorro a métodos similares às parábolas, então usarei como pano de fundo a última onda imigratória coreana ao Brasil.
Yun organiza metodicamente sua mesa para o começo da aula. Ela ajeita os cabelos bem penteados enquanto seu colega tenta organizar seu material, quer dizer, tenta encontrar alguma coisa naquela bagunça...
 - Marcelo, o que está procurando?
 - O lápis 6B.
 - É este na sua orelha?
 - Heim?
Não é a primeira vez que ela lhe salva de um apuro, tem sido inútil ensiná-lo a organizar sua maleta. Aprendeu português razoavelmente bem em pouco tempo, com sua disciplina e seu interesse em construir uma vida nova no Brasil. A professora percebeu o interesse e sempre tem uns minutos de conversa com ela, após a aula, como agora...
 - Tem tempo pra mais uma conversa?
 - Tenho. A professora é muito interessada nas minhas histórias.
 - Você fala coreano bem como fala português?
 -  Não compreendi a pergunta. Eu sou adulta, tenho o dever de falar, ler e escrever correctamente.
 - É que muita gente aprende outros idiomas muito melhor do que o nativo.
Yun puxa pela memória uma ou duas reportagens de brasileiros que aprendem a contento línguas de países onde vão trabalhar, mas esculhambam sem dó a língua-mãe. lembra-se também de a jovem professora reclamar do sistema educacional do Brasil...
 - Sim, agora compreendo. Na Coréia do Sul existe uma espécie de acordo informal do cidadão com o país. Há diferenças de sotaques e gírias de região para região, mas existe um idioma que une a nação. Se não for aprendido e praticado a contento, corre-se o risco de pessoas dos extremos da nação não se entenderem.
 - Li muito a respeito do investimento de vocês em educação de base. No começo deve ter sido difícil!
 -  O começo é sempre difícil. Gasta-se mais energia para quebrar a inércia do que para manter o movimento. Éramos um país inexpressivo, quase arruinado pela guerra e pela divisão. Tínhamos que optar entre esperar pela ajuda financeira para começar a andar, ou nos preparar para quando ela chegasse, que é bem mais cansativo.
 - Vocês não deram colher de chá para quem estava atrasado?
 - É costume tomar chá, no oriente, mas não sei como isto pode ajudar no aprendizado.
A brasileira ri, se desculpa e explica o que significa a expressão, então a aluna, seis anos mais velha, também ri e explica em tom mais severo...
 - Diga-me uma coisa, quando você quer fortalecer seus músculos, o que você faz?
 - Malho. Quer dizer, me exercito.
 - Se tem dificuldade com os pesos, você usa um mais leve, certo? Você fica eternamente com esses mais leves ou passa para os pesados assim que puder?
 - Passo para os pesados assim que meu treinador pessoal ver que tenho condições, senão não ganho massa muscular nunca!
 - Com o cérebro é a mesma coisa. É bom usar de técnicas para facilitar a compreensão de um tópico, quando ele é compreendido, o nível de dificuldades deve voltar a crescer, ou a mente fica preguiçosa. A qualidade da formação de um aluno não está no diploma que ele porta, está no conteúdo que traz e na sua capacidade em lidar com ele. Há vinte anos, ninguém compraria um carro coreano, e com toda razão! Hoje fabricamos até a tela sensível ao toque que ele leva no painel.
 - Tem gente que defende a progressão continuada a todo custo, para efeito de inclusão...
 - Inclusão onde? Se você recebe tudo de graça, é como se seu treinador levantasse os pesos no seu lugar. Ninguém fica forte vendo os outros se exercitarem. Ninguém fica forte apenas por entrar e sair do prédio de uma academia, ainda que memorize todos os procedimentos, nomes e técnicas. Você pode se enganar e até produzir suor, a mente é capaz disso, mas na hora de empurrar os móveis, levar sacolas de compras, subir escadas, correr, carregar uma criança, seu corpo vai reclamar os exercícios mal feitos ou não feitos. Eu estou a par do modelo de educação que vocês têm e vou alertar-lhe: Você pode se enganar na hora de receber um diploma e ostentar um título, mas não pode enganar uma máquina, seu cliente, seu chefe. Se você chegar a uma empresa portando um diploma de engenharia, mas só tiver nível para ser varredor, varredor é o emprego que vão lhe oferecer. Como vocês dizem, papel aceita qualquer coisa, você desenha e escreve o que quiser, mas na hora de talhar a pedra, ela vai lhe exigir o conhecimento e o talento de um escultor. Quanto mais dura e bonita for a pedra, mais conhecimento, talento e experiência o escultor precisará ter.
 - Aqui a gente pena pra convencer um aluno a esculpir no gesso, imagine uma pedra! O que você acha dos sistemas de cotas?
 - Se essas cotas fossem para capacitar o aluno a competir em pé de igualdade, seria perfeito. Levaria mais tempo, custaria mais recursos, mas os efeitos seriam perenes. Eu não gosto de interferir em assuntos alheios.
 - Você mora no Brasil, Yun, os assuntos são seus também. Ou pretende voltar à Seul?
 - Não. Só de férias. eu aceitei esta missão e a levarei até o fim.
 - "Missão"...
 - Eu me comprometi a fazer tudo o que estiver ao meu alcance para unir as duas culturas, na medida do possível, e sei que isto é trabalho para uma vida inteira. Bem, aqui meu grupo e eu estamos representando as duas Coréias, é por nós que vocês terão sua impressão de nosso país, então temos que fazer as coisas certas.
 - Vocês está alimentando o estereótipo das mulheres-dragão. Está falando como uma embaixadora! Relaxa, aqui as coisas são mais suaves!
 - Eu sei - sorri. Estou tentando relaxar, como vocês falam, mas há coisas as quais não posso negligenciar. Eu ensino português ao meu grupo, e também sou professora de línguas orientais. Tenho uma responsabilidade muito grande, não posso falar "nóis vai" na frente deles. É um modo relaxado de se falar, mais confortável, mas para quem está aprendendo não é bom.
 - Erros de pronúncia são normais em qualquer idioma.
 - Sim, são. Mas é necessário deixar claro que um erro é um deslize, ou uma momentânea dificuldade em executar a tarefa a contento. Imagine duas cidades fictícias e vizinhas, dentro de um mesmo país. Há um idioma que permite que seus cidadãos se comuniquem, ainda que haja diferenças de denominações por conta das particularidades de cada população, a língua oficial permite que seus cidadãos possam ir de uma cidade para a outra sem dificuldades de comunicação. Está compreendendo?
 - Sim, estou.
 - Pois bem. A partir do momento em que for tolerado que os habitantes de uma cidade modifiquem as palavras ao seu bel prazer, a comunicação passa a ser dificultada. A outra cidade não tem obrigação de aprender palavras que não estejam nas regras claras de sua gramática, e eu sei que o português tem regras bastante detalhadas.
 - Detalhadas demais para o gosto de muita gente.
 - Sim, o coreano também, mas isto nunca foi entrave para o aprendizado das crianças. De volta ao exemplo, os habitantes da cidade terão dificuldades em se comunicar com os de outras. Dentro de uma cidade há grupos e estes também podem se sentir no direito de ignorar até mesmo as normas relaxadas adoptadas pela comunidade em que vivem. É louvável compreender as dificuldades de uma pessoa, mas quem quer ajudar deve ajudá-la a superar suas limitações, não rebaixar o nível do aprendizado e fazer de conta que isto não a influenciará negativamente. Ela sempre dependerá de facilitadores para subsistir.
 - Vá dizer isto aos demagogos de Brasília. Vocês gostam muito de cantar, não é?
 - Não fabricamos Elvis em série, mas gostamos muito de cantar. As línguas do extremo oriente são muito musicais, o tom modifica o significado da palavra, então precisamos estar atentos à musicalidade da língua. Aqui também há um pouco disso, o tom de voz pode tornar um "seu idiota" uma ofensa grave ou uma reprimenda carinhosa. Vocês deveriam voltar a lecionar música nas escolas primárias, aprender música facilita com a matemática. Às vezes é chato, cansa, mas todo exercício bem feito cansa. Depois dele, toma-se uma ducha, um lanche e faz-se um repouso, não é preciso haver tirania no ensino para que ele seja eficaz.
 - Não basta ser eficiente, tem que ser eficaz, resolver os problemas do aluno.
 - Não. Deve-se tornar o aluno capaz de resolver seus próprios problemas, Eddie.
 - Pior!... E vocês estão deitando e rolando com a nossa deficiência... Cara, quê que eu tô fazendo no seu carro???
 - Ah, não tem problema. Você não disse para eu relaxar? Relaxe! Deixe seu marido entretido com o trabalho dele, eu te levo até a sua casa.
 - Só se aceitar um bolo.
 - Eu aceito, muito honradamente. Quer ouvir música coreana? Então ouça...

27/06/2011

A volta triunfal do chapéu

Chapéu é chique pra dedéu!

Ele entrou em decadência nos anos setenta, cujo último quinto o viu praticamente extinto dos armários. Quase que só a boa gente do campo o tinha para uso civil nestas últimas três décadas. Fora isso, só em versões extravagentes de eventos fechados para gente muito endinheirada. Andar com um nas ruas passou a ser motivo de chacota.

Mas ele voltou. Pelo menos em Goiânia seus usuários estão proliferando, encorajados pelos populares modelos de tela, que imitam os clássicos de feltro. Ninguém estranhou, ao menos não como se estranhava até há dois ou três anos. Hoje mesmo vi três usando, no mesmo ônibus que tomei para voltar do trabalho.

Mais do que acessório, nesta época de sol inclemente e buracos na camada de ozônio eles são uma proteção a mais, especialmente para cabelos e olhos, oferecendo uma sombra providencial que atenua o ofuscamento e permite andar de cabeça erguida, em lugares onde a luz diurna faz os outros andarem cabisbaixos para não serem cegados pelos reflexos. Como eu já disse aqui, o sol que hoje nos queima, não é o mesmo que aquecia nossos pais.

Se eu gostei? Claro que gostei. Tenho uma boina xadrez cinza e já estou procurando um chapéu que me sirva bem, mas com calma. Não quero comprar algo que precise trocar rapidamente.

Houve época em que andar sem chapéu era quase como andar sem camisa, chamava muita atenção. Os jovens gostavam de sair com a cabeça ao vento, sem um peso a mais sobre os ombros e com um jeito mais descontraído. Nos anos cinqüenta houve uma democratização e um homem sem chapéu era apenas um homem de cabeça mais fria, mas geralmente todos tinham ao menos um para uso particular.

Por que voltou? Bem, as calças de cós alto voltaram, discretamente, quando nos demos conta já tinham invadido telinhas e telões, além de capas de revistas e passarelas. Eu gostei. Meus padrões estéticos são gêmeos univitelinos de meus padrões de elegância, estes estão solidamente atrelados à anatomia humana, e a cintura humana é alta, muito alta em relação à maioria dos outros animais. Motivo pelo qual é tão fácil uma pessoa levar um tombo. Não, eu não estou tentando te convencer a passar para o lado Nanael da força, nem a andar por aí de saia rodada e chapéu decorativo, só explicando os meus critérios para decidir o que me parece belo e elegante. São meus conceitos embasados nos meus padrões, quem quiser outros que se vire com os seus.

Também tem havido uma cultura muito sólida do modo vintage de viver, com o ressurgimento das pin-ups e revalorização de seus mestres, inclusive no Brasil, onde o Paraná se tornou o maior celeiro do estilo. Sites como The Pin-up Files e Pinup-Art Bilder Museum estouraram nas paradas internauticas de sucesso.
Aqueles que gostariam de voltar a dançar de rostinhos colados, mas com um smartphone no bolso, passaram a deixar de comprar revistas de photoshop-girls para gastar seu rico dinheirinho com o que remete ao glamour de uma época de vida muito mais dura, mas na qual a diversão era muito mais autêntica, por isso mesmo satisfazia sem precisar de exageros.  Até lanchonetes temáticas (como esta) apareceram. Descobri hoje e, pelo menos do site, gostei assaz e recomendo uma visita.
Confesso que eu não esperava que o chapéu se repopularizasse tão cedo e tão depressa, especialmente entre a garotada, mas foi uma grata surpresa.

Até mais do que a roupa, que ficou muito padronizada com a alardeada "democratização" da moda, um chapéu escolhido com o devido cuidado fala muito de quem o utiliza. Quem mora em região agroindustrial como eu sabe bem o que digo. Compare o chapéu com a roupa e a postura de seu usuário e terás uma análise psicológica bastante precisa. Não espero que avance muito mais do que isso, o que vier agora é bônus, pois chapéu nunca foi moda, suas variações sim, mas ele mesmo sempre foi um meio mudo de comunicação social e profissional. Ele jamais desapareceu, hibernou por mais de trinta anos, agora retoma seu lugar ao sol com uma utilidade extra, proteger-nos dele. Para quem quer esconder um corte mal sucedido, uma tintura mal feita ou mesmo os efeitos de um xampú mal aplicado, é a solução mais rápida e eficaz, te permite sair normalmente às ruas até que o problema seja resolvido. Um bom chapéu preserva a auto estima.

Como escolher um chapéu? Da mesma forma como se escolhem óculos, pelo modo como valorizam o rosto ou disfarçam allguma característima que não lhe agrade. Bons óculos de sol, com registro na Anvisa, e um bom chapéu aristocratizam qualquer rosto.

17/06/2011

A sugestão de Adão


Adão Iturrusgarai é um cartunista brasileiro que vive há anos na Argentina, porque casou-se com uma porteña e achou que ela valia o sacrifício. Laura é o nome da felizarda. Ela acabou por pegar o vírus do  marido e também começou a desenhar e publicar em seu blog. Às vezes eles desenham a quatro mãos, ou três, sabe-se lá se uma está ocupada com a proximidade do cônjuge, e publicam em ambos os blogs.

Adão tem um personagem patologicamente tímido, chamado Timóteo. Mas a timidez não tira uma grande virtude deste, ele tem um Citröen 2CV provavelmente dos anos noventa. Comentei que adoraria ter um desses, mas além de precisar ser filiado a um clube de antigomobilistas, ele me custaria o triplo da ninharia que custa na Argentina em taxas aduaneiras e sopa de letrinhas do fisco. É que o 2Cv não é mais fabricado, só poderia trazer um com trinta anos ou mais, para o acervo de um associado.

A sugestão do cartunista foi que eu me mudasse para lá, eis o comentário: "pois é nanael. por isso sugiro q vc mude p argentina. além de tudo ser mais barato, voce chuta uma moita e salta uns 30 citroen 2cv. e tá cheio de mecanicos especializados no modelo." (sic)

Isto me fez lembrar da quantidade de modelos que importamos de lá. Desde Ford Ranger, Mercedes-Benz Sprinter até a Space Fox. Provavelmente aquele chato que odeia argentinos, anda em um carro argentino e o adora.
Em seus delírios digitais, entre um desenho e outro, ele deixa transparecer o quanto é bem tratado, mesmo os argentinos sabendo que é brasileiro. Pela descrição do cotidiano, dá a entender claramente o quanto um passeio noturno é mais seguro do que em qualquer metrópole brasileira. Adão jamais mencionou um incidente grave em Buenos Aires, por seu gentílico.

A Argentina tem mais encantos do que os Kirshner conseguem demolir, e do que nossa visão estreita de mundo nos permite perceber. Uma página interessante é esta aqui, "Brasileiros na Argentina". Um dos pontos que eles destacam é a qualidade da educação, onde não há empurrismos, ninguém é estimulado a distorcer a gramática portenha, como resultado têm o reconhecimento internacional. Aliás, os brasileiros que estudam lá não têm do que reclamar, se tu és estudante e queres fazer um curso fora do Brasil, esta postagem interessa-lhe. Há também um portal muito útil para quem quer visitar ou fazer negócios lá: Argentina.ar.

O argentino, quando não está tomado pela febre tifóide do futebol, é um cidadão educado e com boa conduta em público. A fama de arrogante só aparece quando os brios nacionalistas são postos em xeque, como quando alguém toca no assunto das Malvinas. Pois é, a derrota que derrubou a ditadura ainda dói en nuestros hermanos. Em sã consciência ele pode ser até divertido. E um real vale $ 2,40!

Agora algo que eles têm e nos matam de vergonha do que temos aqui: Infra estrutura. Há dezessete rodovias nacionais administradas por empresas privadas, mas ao contrário do que ocorre em São Paulo, a distância entre os postos é maior que um quilômetro.

São trinta e quatro mil e quinhentos quilômetros de ferrovias em pleno uso, com três bitolas diferentes. E estão em vias de reactivar linhas antigas, para passageiros.

O transporte público é eficiente e barato, quase todas as linhas de metrô e ônibus de Buenos Aires funcinam vinte e quatro horas por dia. Aliás, 69km de linhas de metrô, e a previsão é duplicar a extensão até 2017. Preço da brincadeira: R$8,5 bilhões para ampliar as linhas, comprar novos vagões e modernizar o que já existe. E eles estimulam os trólebus, ao contrário do que acontece entre nós. O ônibus, com frota majoritariamente brasileira, custa entre $ 1,10 e $ 1,25 para se andar em veículos novos e bem conservados.

Uma tradição vivíssima na capital argentina é o tango (aqui e aqui). Ninguém te chama de maluco se começas a dançar com teu par em uma praça, desde que dance direito. Experimente dançar catira em via pública por acá, ou mesmo um sambinha. Ao anoitecer os dançarinos se proliferam para aproveitar a noite da cidade, que tem ares europeus bem mais acentuados do que o dia.

Uma novidade em Buenos Aires, que nem sonho em ver por aqui, é das bicicletas públicas, chamadas de "amarelinhas", do programa "Mejor Bici", com site próprio, que já tem mais de quinze mil cadastrados. O residente cadastrado pode se valer das bicicletas por até duas horas, em um dos doze pontos espalhados pela cidade, proporcionando economia de tempo e dinheiro para o cidadão; e desafogando o trânsito. A primeira etapa, vejam o que digo, só a primeira etapa, prevê construir cem quilômetros de ciclovias na cidade.

As estradas são boas, cem mil quilômetros de asfalto que não precisam de suspensão reforçada para serem transpostos em boa velocidade. Além de elas terem o que receber, pois a importação de veículos não tem os trâmites que enfrentamos aqui, os carros são lançados antes e mais baratos para os argentinos. Carros feitos aqui são vendidos lá pela metade do preço.

Apesar da crise econômica que assola o país, a infra estrutura está em boas condições, os investimentos continuam sendo feitos e tudo mais. O que nossos jornais chamam de "argentinos lutam contra a miséria" não se compara ao que nós consideramos normal desde o Brasil-Império., onde nossa mentalidade parece ter estacionado, com as manias de qualquer bacharéu querer ser chamado de "doutor". A mentalidade européia, tão amaldiçoada por acadêmicos que mendigam recursos europeus para suas ongs, coloca o argentino em um patamar de civilidade muito acima do nosso.

Por tudo isso lamento que o Mercosul, como a onu, nunca tenha realmente saído do papel. Todos os quatro integrantes agem como se fossem nações sob tensão, adoptando medidas unilaterais sem consultar os demais, como o acordo automotivo entre Brasil e México. No que depender de nossos dirigentes, nada muda. Então cabe a nós, o povo, agirmos. Cabe principalmente a nós, brasileiros, aproveitarmos a pechincha que é viajar para a Argentina e preparar nuestros hermanos para um dia formarmos um bloco coeso.

Aproveitando que o ensino de lá é muito superior ao nosso, sendo difícil algum ser pior, intercâmbios estudantis são uma excelente actividade a ser estimulada, para evitar que os laços frouxos se desfaçam. Em vez de abrir fábricas com condições de trabalho sub-humanas na China, aproveitar que a Argentina tem dois litorais para empregar gente nossa e deles, pois ainda existe um acordo de facilidades tarifárias que beneficiam os quatro países.

Não, não me mudarei para Buenos Aires, no máximo uma viagem recreativa. A sugestão do Adão apenas serviu para esta reflexão.

15/06/2011

O novo $ecretário


Obra do amigo cartunista Benett.
Chegam a um acordo favorável a ambos, embora oneroso ao erário público e nocivo aos funcionários públicos concursados. Acertam os detalhes sórdidos para finalizar. Apesar da demora, foi a indicação mais fácil e rentável que o partido já fez...

- E então? Escolheram?
- Escolhemos. É um iminente membro do nosso partido.
- Tem experiência?
- Precisa?
- Não, só pra saber o que vamos colocar nas mãos dele.
- Bem, vou confessar que, experiência, ele tem pouca.
- Quanta?
- Zero.
- Ok. Formação?
- Ele tem diploma de medicina, direito com especialização em direito tributário, entre outros cursos relevantes.
- São boas credenciais, vão calar a boca da oposição. Ele tem nota fiscal dos diplomas?
- Claro que não! Ele não é besta! Além de se denunciar, iria pagar icms?
- Aha, é dos nossos. O português dele, como está?
- Ele fica calado a maior parte do tempo, quando tem que falar, um assessor sopra algo inteligente no ouvido.
- Mas fica grudado nele?
- Microphone sem fio.
- Óptimo, óptimo! Então estamos acertados. Seu correligionário é nosso novo $ecretário de Finança$. Hoje mesmo faço o decreto e chamo a imprensa.
- Combinado. Pode mandar o que quiser pro plenário que a gente aprova. Faz um drama pra não dar nas vistas, mas aprova com garantia.
- Certo. Dona Marta, venha aqui, por favor. Além de gostosa é uma secretária executiva muito discreta. Não conta nada nem pra mãe.
- Ô! Gente assim é difícil de se encontrar! Ninguém mais quer calar a boca por menos de dez mil reais, nem com coação!
- Corrupção está ficando cada vez mais difícil! Maldita internet... Dona Marta, redija uma normativa para as autarquias públicas. Nosso novo $ecretário de Finança$ tem algumas dificuldades (plena incompetência e fuga precoce do Mobral) e teremos que evitar constrangimentos. A Senhora sabe o que fazer?
- Decerto que sim, senhor prefeito. Hoje mesmo mando uma circular avisando que os ofícios deverão ser precedidos de memorandos externos. Em um mês os memorandos externos deverão ser precedidos de minutas de memorando. No mês seguinte um rascunho de minuta deverá ser enviado para aprovação e só então os outros poderão ser emitidos. Tudo em quatro vias timbradas, com fonte courier 12 e apresentação negritada.
- Melhor que a encomenda! Isso dará tempo para nossos negócios e avisos aos nossos amigos.
- E dará tempo pros assessores fazerem o serviço público, afinal ele tem que preparar para a câmara federal!
- Justo! Obrigado, Dona Marta, aguardo os papéis para assinar.

Ela sai e os dois ficam a observar seu rebolado natural, fruto da miscigenação de um descendente de carajás com uma alemã de Boon. Ficam calados para não dar processo por assédio, quando ela fecha a porta eles começam a fazer comentários machistas e de baixo calão, enquanto comemoram a maracutaia.

Marta redige tudo como lhe foi confiado. Tudo sendo automaticamente copiado para seu pen-drive, inclusive a escuta de seu brinco com microphone e camafeu com câmera. Qualquer problema, tem amigos na Polícia Federal.

11/06/2011

Paródia de um hoax


Recebi hoje, pela enésima vez, um e-mail que parodiei assim:

Oi, você que não me conhece e nunca viu meu nome em lugar nenhum! Provavelmente eu nem exista, mas vamos lá. Os vírus pegaram meu e-mail pela lista de contactos de um (agora ex) amigo e estão disparando besteiras usando o meu nome para todos os contactos que tenho. Meu MSN também já está rubro de vergonha!!! Leia a mensagem abaixo:
 
Olá, nós somos Andy e Panda, somos os picaretas que viciaram vocês no Messenger.
Lamentamos informar que a partir do verão de 2011, ou 2010, ou 2009, ou 2008, depende da actualização do robô que manda essa porcaria, o Messenger será pago, igual faremos com o Skype, mas pagaremos pouco porque ele trabalha muito mal.

O problema é que temos muitas pessoas com várias contas, e agora temos só 171 nomes livres, ignorando na maior cara-de-pau que o mundo está cheio de nomes próprios e apelidos ridículos, que computador nenhum conseguiria enumerar. E por que cobraremos em vez de simplesmente fazer uma triagem, já que seus nomes verdadeiros constam em nossos arquivos? Não sei, vamos pensar nisto no próximo hoax que inventarmos, um dia alguém se toca e coloca isso num blog.

Então,  para que você continue usando grátis o Messenger, envie esta mensagem cheia de vírus e cavalos-de-tróia para, no mínimo, dezoito amigos seus, e o seu Messenger ficará rubro, de vergonha. Por que dezoito? Sei lá, a gente tentou bolar um número que não parecesse amadorístico. Então envie para seus amigos, para que eles também caiam na conversa. Assim que você clicar em "enviar", os arquivos maliciosos serão instalados no seu computador.

Se precisa de provas clique no link: WMW.MSN.PQP:COM e veja a veracidade desta mensagem.
Agora, vocês devem estar se perguntando por que a Microsoft não me mandou um e-mail de próprio punho como sempre faz, cada vez que tem uma novidade? Bem, se você se fez esta pergunta, apenas clique lá e cale o bico, pro-haz!


Agora é sério, crianças. Eis aqui e aqui dois sites que ajudam a identificar hoaxes, eles têm listas crescentes e já imensas. As pessoas se aproveitam da boa fé alheia para espalhar arquivos maliciosos, ou simplesmente rachar de rir da sua cara ao ver as bobagens sendo divulgadas.

Mesmo que o hoax, em princípio, não tenha qualquer intenção de prejuízo, um esperto que não cair na conversa poderá facilmente inserir cavalos-de-tróia e mandar adiante, aproveitando os contactos recebidos na própria mensagem.

Assim como o seu banco não manda mensagem por e-mail, o seu provedor de e-mail não manda mensagens por terceiros. Bill Gates costuma ajudar pessoas sem que seus clientes precisem eternizar correntes e hoaxes.

O Google Earth não é em tempo real e o governo americano não censura imagens por isso, na verdade ele se vale delas. As instalações secretas são suficientemente bem guardadas para justificarem o nome, então só países que fazem tudo a céu aberto teriam o que temer... E por isso também vocês não me matem de vergonha, combinando com um primo de dar tchauzinho para o céu, para o outro ver pelo computador!

O site da ong Câncer de Mama não sairá do ar. Eles dependem muito de doações por confirmação de acesso, clicando no botão rosa à esquerda, mas os patrocinadores não deixarão de ajudar por causa disso.
Lembrem-se: EU nunca iniciei campanha de um centavo por e-mail para ajudar a trocar a coluna cervical de uma criancinha pobre. Se algum "nanaelsoubaim" aparecer na tua caixa falando a respeito, apaga que é vírus!

10/06/2011

Realidade e compreensão

Sonhar faz bem, viver no sonho é doença.

Amigos de vez em quando reclamam bastante de algumas características minhas. Tenho uma (em parte justa) fama de pessimista, por causa do modo cru como encaro a realidade. Na verdade às vezes até irrito, fico parecendo escorregadio... eu sou meio escorregadio, desculpem pois não é de propósito, faz parte da minha natureza.

A velha pergunta "um como pela metade está meio cheio ou meio vazio?" para mim não faz sentido, ao meu ver está pela metade e ponto final, não discuto impressões pessoais, ideologias ou especulações de que o copo "não conseguiu sair daquele nível" ou "só falta metade para encher". Um recipiente com capacidade para um litro de água, que estiver pela metade, estará suportando meio quilograma e ponto final. Divagações sobre cheio ou vazio não vão alterar a resistência do recipiente, sua cor ou mesmo as leis da física. É mais ou menos assim que eu raciocínio.

Parece simples? Para mim é, mas para quem conversa comigo complica, porque a maioria das pessoas (senão quase todas) está acostumada a fazer um juízo e mantê-lo mesmo depois que uma investigação frustra suas expectativas. Muitas vezes gente leiga disseminando suas opiniões a respeito de assuntos especializados, como se fossem de origem técnica.

A realidade como a enxergo é dura, sem amenidades, mas a prefiro assim. Não, não sou catastrofista, detesto filmes de terror e de pancadaria, não partilho de idéias de revolução armada e não me visto como pit-boy. Digo que a realidade que vejo é dura, porque ela não acompanha o conforto de especular sobre culpados, nem o de buscar um álibi para me livrar da minha parcela de responsabilidade. Não culpo o sujeito em um Mercedes-Benz por eu ter que usar um dos piores transportes públicos do país, também não posso dizer que ele fez por merecer o carro porque não o conheço. Não sou um coitadinho vítima da sociedade, mas sei que não tenho um por cento do que faço por merecer como a maioria dos compatriotas.

Não culpo os nordestinos pelo aumento da criminalidade em Goiânia, isto vem de um processo muito mais longo e emaranhado do que os acusadores tentam fazer parecer. Desde os anos oitenta eu vejo gerações nascendo, crescendo e morrendo nas ruas, sem jamais terem tido um teto. Com o tempo, muitas dessas pessoas não conseguiram mais se adaptar a um lar fixo, pois perderam completamente os vínculos sociais, a não ser os de suas turmas de rua. Se isto não lhes  parece ser tanto um problema, digo que é pelo facto de desde então a criminalidade ter crescido muito, bem como diminuído os limites na educação das crianças que nascem em lares constituídos. A população de rua acaba cercada de um lado por marginais que não têm vínculo algum com nada, de outro por jovens violentos que não tiveram qualquer limite em sua educação, nem em seus cartões de crédito. Daí a sobreviventes jurarem vingança sem saber direito a quem, se juntarem a grupos criminosos, et cetera. Os jovens que estão nas ruas hoje, em grande parte, saíram de casa para poderem usar drogas sem serem incomodados pela família. Hoje não há mais inocentes nas ruas de Goiânia, está nelas quem quer permanecer nelas. É comum eu ver garotões muito bem arrumados pedindo esmolas nos cruzamentos.

Se eu tivesse procurado um bode expiatório, como certos idiotas fazem, não teria percebido essas nuances ao longo dessas três décadas de observação. A política tem culpa sim, e como tem! Mas grande parte das mazelas que acometem Goiânia começou aqui dentro, coma aquiescência da população, nos lares, desde bebês até os adoelscentes que saíram do controle. A maior responsabilidade, pelas minhas conclusões, é da própria população goianiense, que não soube dar atenção e limites aos filhos, não soube eleger gente nova quando ela apareceu e ainda estava descontaminada, não soube aposentar as piores múmias do Brasil quando já davam sinais de caduquice e abandonou hábitos salutares que tinha, deixando bibliotecas e escolas serem abandonadas pelo poder público.
Nordestinos continuam chegando, assim como gaúchos, cariocas, matogrossences, americanos, coreanos, japoneses, argentinos e toda uma patota que tem renovado a cara do goianiense. A esperança mínima que tenho de ver mudanças está quase toda neles.

Um dos meios mais comuns de se tentar fugir da realidade, na verdade maquiá-la temporariamente, é buscar prazeres fáceis. Quaisquer prazeres. Sexo casual, drogas (inclui álcool e cigarros), jogos, programação televisiva ruim, som no último volume, diversões perigosas e por aí vai. É comum um vir acompanhado de dois ou mais. Anestesiar momentaneamente a percepção da realidade é o que ajuda muita gente a se manter viva, muitos trabalham arduamente apenas para sustentar esses prazeres. O problema vem quando a pessoa passa a viver em função dessa anestesia, é sinal que de não suporta a realidade, ou não está disposta a suportá-la ainda que consiga. O segundo caso é típico de filhos mimados, o que infelizmente não se restringe às famílias abastadas. Em ambos os casos o indivíduo acaba se viciando.

Justo por saber da gravidade do mundo que me contém, prefiro manter a vigília. É escolha minha. Com o tempo ficou mais fácil abandonar certos prazeres, como café e refrigerante. No começo sentia falta, mas hoje o cheiro de café me enjoa e o gosto do refrigerante é grosseiro demais para o meu paladar. Da mesma forma eu não sou contaminado pelo efeito manada, eu sou muito eu para me permitir ser diluído em um grupo. Posso fazer parte dele, mas sempre serei uma peça, nunca uma área de um monobloco. Há  vinte e poucos anos eu tive um estalo, em vez de sair com um pão pela casa, comendo e sujando o chão pelo caminho, sentei-me à mesa, coloquei no prato com mais alguns acepipes, pouca cousa, e comecei a comer com a devida calma. Eu me vi sendo tiozão e naturalmente me deixei moldar pelos novos hábitos. Não me senti melhor ou pior, me senti eu mesmo daquele momento em diante. Tenho problemas de sociabilidade com isso, mas é porque o meu caso é agudo, acabo não compartilhando do modo como as pessoas vêem com circunflexo o que me mostram. Às vezes constrange, mas eu consigo compensar de algum modo. Não sei como, ainda, mas acabo conseguindo.

Mas reconheço que a falta de um filtro torna as cousas mais difíceis para mim. Esse filtro, que permite à pessoa selecionar (inconscientemente) os aspectos da realidade que consegue digerir, em mim é quase inexistente. Mesmo o que não chega até aqui fica claramente à minha vista. É como se uma penca de bichos invadisse o meu quarto e só os elefantes ficassem de fora, com as trombas bisbilhotando a minha mesa. A realidade bate na minha cara o tempo todo.
Para quem tem o filtro de realidade (chamemos assim) são, só poucos tipos de bichos entram, aqueles que o indivíduo consegue controlar, seja colocando rédeas, seja se escondendo de medo, seja pedindo ajuda ao vizinho. As outras espécies não conseguem passar, seja por serem grandes ou fracas demais para atravessar a trama. Assim é uma "pessoa normal"... De perto as diferenças aparecem.

Ligar o som alto é um meio de as pessoas se desligarem da realidade, seja por entorpecimento dos sentidos, seja se colocando como parte da sociedade que faz a cousa certa, porque isto também distorce o modo como elas se vêem. Um grupo acaba se enxergando como integrante de um grupo que consertaria tudo se tivesse poder para isso, o outro não dá a mínima e prefere nem se enxergar para não chorar de tristeza, outro ainda usa factos históricos para acreditar que nada vai adiantar e nada jamais mudará, isentando-se de qualquer responsabilidade pelos rumos da coletividade. Se o som ficasse dentro dos limites de suas residências, seria tão bom!

Eu uso a música para me acalmar, estimular, concentrar, às vezes para ter minha introspecção sagrada de cada dia. Não quero perder contacto comigo nem com o mundo, por isso o volume me permite ouvir o que se passa lá fora. Infelizmente o barulho de fora nem sempre me permite ouvir o que toca aqui dentro. Eu sei que me faria bem fugir da realidade, de vez em quando, mas já estou plantado nela. Tudo o que começa como entretenimento, termina como trabalho, provocando reflexões e outros bichos do gênero. Questão de adaptação. Eu estou adaptado ao meu modo de ver o mundo e nenhum outro me serve mais.

Ver pessoas capazes se refugiando em distrações e vícios me deprime. Aquilo é uma parcela da sociedade que poderá fazer falta, porque cedo ou tarde a negação da realidade vai fazer essas peças falharem. Minha visão das pessoas não é monopolar, eu vejo o indivíduo em sua função social e sei da importância de cada um no funcionamento da sociedade. Uma pessoa que tem falência antes da hora gera uma lacuna, porque seu substituto ainda não está pronto e seu antecessor, certamente não está mais em condições de reassumir o papel. Ultimamente minha depressão tem feito hora extra, porque tornou-se raro encontrar pessoas que não tentam fazer de suas vidas uma sensação de prazer. A vida não é feita de prazeres, tem prazeres, mas eles são apenas parte dela. As obrigações mesmo de quem acredita viver isolado, incluem aparar as arestas que encontram no decorrer dos dias, é assim que viabilizam sua subsistência. Mesmo quem tem tudo de mãos beijadas, precisa se ajustar ao meio para ser bem sucedido em viver. Mas as pessoas estão querendo se poupar de todo e qualquer sofrimento, mesmo os mais elementais e insignificantes. Jogar uma cadeira na garota que recusou a cantada já tornou-se normal.

Costumo comparar os prazeres com cavalos. Quando estão sob arreios, a carruagem não tem obstáculos intransponíveis. Quando estão no coche, o cocheiro é que acaba sob arreios. Nossos cocheiros nem percebem que estão sendo açoitados pelos próprios cavalos. Quando percebem, não raro atribuem os açoites à traição de alguém, não admitindo que se deixaram dominar pelo animal.

Assim, enxergar a realidade como a enxergo não se torna apenas um jeito de ser, torna-se um alarme para não ser pego de surpresa, quando o barco começa a fazer água. Compreendo meu papel  e procuro desempenha-lo a contento.

04/06/2011

De Cher com amor


Um casamento dá certo não necessáriamente pela sua durabilidade, pois sabe-se lá que amarras podem obrigar duas pessoas a se tolerarem, como regras hipócritas e coação social. Há casamentos, porém, que resistem ao divórcio. Casais que continuam se amando mesmo quando não dividem mais a cama e o sobrenome.

A amizade muitas vezes é o que sustenta um casamento, depois de alguns anos. A amizade entre Cher e Sonny sustentou seu matrimônio quando o casamento acabou.  Durou dez anos e as pessoas acreditavam que fosse piada de mau gosto, quando os jornais anunciaram o fim. O que acontece no íntimo de um casal, só o casal conhece. Eles começaram a carreira em dupla com "I got you babe", que chegou ao topo das paradas em 1965, gerando uma carreira profícua e sólida, com canções que fizeram a diferença na época, e fazem ainda hoje. Se separaram maritalmente em 1974. Aos que se perguntam porque um casal que se ama tanto se separa, digo que o casamento é uma instituição utilitária, nem todos precisam dele pelo resto da vida. Como com Elizabeth Montgomery, o casamento deles cumpriu bem seu papel e saiu de cena quando já era desnecessário. Mas o matrimônio continuava mais forte a cada dia. Cher continuou crescendo como diva, em sua carreira ainda vigorosa, com um repertório bem vasto.

Duas pessoas podem se amar sem que isto signifique compartilhar orgasmos. Na verdade contam-se nos dedos as pessoas que saem de uma relação sexual felizes, em vez de simplesmente aliviadas pela satisfação de um instinto, ou pressão de "amigos" para ser o garanhão da cidade. Sonny e Cher se amavam tanto que não precisavam trocar fluidos para comprovar isso. Se amavam tanto que não precisavam provar isso a ninguém. Se amavam tanto que, mesmo sem dar a menor pelota para a opinião alheia, seus fãs enxergavam claramente o amor entre os dois, sabiam que estavam felizes assim e, como fãs de verdade, também ficavam felizes com eles.

Cher, muito mais regateira do que Sonny, encampou a luta em defesa dos homossexuais e passou a se vestir em eventos como o show de mulher que ela é, pois "gay" em inglês significa "alegre". Embora escandalizasse grupos desnecessários, transmitia no tranco a alegria que seus pupilos queriam mostrar sem serem molestados por isso. Com o tempo o mote sexual caiu no lugar comum, ela continuou se vestindo como se fosse dormir, em eventos de estrelas, e quem sabe ler entrelinhas percebeu que ela não queria escandalizar cousa nenhuma. Seu comportamento acabou abrindo brechas para a tolerância.

A alegria explícita, porém, recebeu um trauma duro e pesado em 1998. Sonny morreu. Ele já se casara mais duas vezes e deixava uma viúva inconsolada... Uma? Não, duas viúvas inconsoladas. Mas uma delas não é uma mulher normal, uma reles adição às estatísticas populacionais. Cher chorou cantando "Believe" em 1999, falando do casal. Mesmo lançada no último ano, resumiu todo o pouco que valeu à pena nos anos noventa, tornando-se um marco e um advogado da década. O luto de duas famílias era grande o suficiente, queria que o restante do mundo se alegrasse.

Eu conheço casais que foram extremamente felizes e se enquadraram com perfeição no molde clássico. Conheço um casal que mesmo com a partida da mulher, continua casado e ele não tem a mínima vontade de outra relação. Sim eles existem, mas como o casamento gay, o casamento hetero clássico e sem hipocrisias tornou-se crime para a sociedade de extremistas que temos hoje. Cher soube ser amiga de casais clássicos também. Se há algo que aprendeu com Sonny, é que o matrimônio não precisa de um casamento, mas também não é antônimo dele. A tolerância sem hipocrisia tem um peso e uma medida. Cher tem a medida das deusas e o peso dos anjos.

Toda festeira é encrenqueira, eu sei disso muito bem. Mas pessoas de nível moral superior só encrencam por motivos justos, quase sempre em prol de outros. Então vamos deixar para blogueiros invejosos a listagem de defeitos e malfeitos que ela tenha nas costas, eles são mestres em esconder seus males detrás dos alheios. Me reservo o direito de falar e dizer o que há de bom nessa gente que a imprensa faz questão de detratar, apenas para vender notícia. Cher lembra muito minha amiga e sacerdotisa da verdade suprema do Corcel Azul-calcinha, a amiga Luna, que se difere da outra diva por meio metro e alguns milhões de dólares a menos na conta bancária. Não houvesse outro, este seria um motivo para simpatizar com a actriz e cantora.

Não sei dizer a lição que cada um tira daquilo que vive. Eu aprendi a aprender até mesmo lendo gibi do Zé Carioca. Com os cantores dos bons tempos, e eu posso dizer isto porque conheço a diferença abissal, aprendi tanto com seus acertos quanto com seus erros, mas também com o que queriam passar com suas obras. O casamento entre Sonny e Cher é um aprendizado para a vida inteira, porque dura até hoje, quando só um deles ainda suporta as dores e desgostos da vida terrena. Ela ainda tenta ensinar, enfiar nas cabeças duras das crianças enrugadas, que só o amor vale à pena. Não o amor animal, cujos hormônios sustentam e consigo levam embora quando acabam. Não o amor de maionese, onde muitos padres e pastores viajam legal para convencer os casais que "Deus manda pro inferno, há, há, há, há, há" para fazer laços duradouros, mas também sufocantes.

O amor entre Sonny e Cher, este sim vale à pena porque ainda dura e não deu a mínima para a morte de um corpo. Eles ainda se amam e ele quer que ela aproveite o máximo que puder, antes de se reencontrarem. Ela sabe disso e não quer decepcioná-lo. Não vai provocar uma besteira para antecipar e, ironicamente, inviabilizar o reencontro. Quer estar pronta para quanto puder subir aos orbes mais altos e reencontrar seu amor. Porque amor por si ela sabe que seus fãs de verdade também têm, não pode ser egoísta e dar cabo de uma missão que se tornou coletiva quando começou a cantar, em uma roupa que mais parecia um pijama, típico da loucura dos anos sessenta.

Para quem nunca viu, é cantando que os deuses choram.