29/08/2013

A valsa triste

Não pensava que fosse passar por isso. Já fora hostilizada pelas patricinhas acomodadas, que só querem
arranjar um marido rico que as sustente, com luxos e mimos, em troca de não precisar lhes das satisfações com o que faz noutras camas. Sabem aquelas aprendizes de dondocas, cheias de não-me-toques, que publicam as coisas mais fofas do mundo nas redes sociais, mas humilham sem dó o garçom que trouxe o prato errado? Estas já a tinham execrado, a chamavam de comunista, de cubanista, adoradora de petralhas, feminazista abortadeira e um monte de outros adjetivos que não lhe serviam. Ela não era e não assumia absolutamente nenhum rótulo, muito menos os "istas".

Não queria ser guerrilheira de coisa nenhuma, conhecia muito bem a história, que estuda com gosto, e sabe das mazelas de ambas as polaridades ideológicas. Por isso mesmo também é olhada torta pelas turmas às quais pensam que pertence, acham-na muito bem adaptada ao sistema, muito mulherzinha, muito romântica, com gostos muito burgueses. Sabem aquelas marxistas de boutique, que clamam por direitos e morrem de amores por ditaduras sangrentas? Estas ainda a toleram porque ela é engajada e contraria interesses de multinacionais, embora por motivos totalmente adversos. Uma vez ela soltou "Salário não é um tipo de lucro?" e quase foi linchada. Teria sido, não fosse praticante de kung-fu.

No cotidiano, porém, o verniz social se juntava ao medo de levar uma surra, e todos a tratavam com alguma civilidade. Às vezes até riam sinceramente das mesmas situações. Os professores, no entanto, não tinham a mesma simpatia, não os ideologicamente definidos. Eles podiam puní-la, então não tinham tanto medo de levar uma surra.

A gota d'água, porém, veio quando ela apareceu na sexta-feira, dia de traje livre no colégio, em um vestidinho trapézio com estampas geométricas, um vintage sessentista que comprara em uma feira de pulgas.

No fim de semana anterior, viajara com a família para São Paulo, onde havia um evento de antigomobilismo e memorabilia. Ficou encantada com aquelas peças e pediu aos pais que seu debute fosse temático. Não dispensaria a valsa, mas queria todo mundo com roupas retrô, se possível também a decoração. Nisso, trataram de comprar as primeiras peças dos anos cinqüenta e sessenta, o que incluía revistas, para se orientarem, e dois jogos de roupas.

Aquela visão era o pretexto que tanto sonhavam para enquadrá-la em seus padrões de difamação. De ambos os lados, incluindo professores "engajados e politizados", aquela indumentária suscitou os adjetivos "fútil", "reacionária", "prostituta", "alienada", "americanóide" e "nonsense". Ninguém falou uma palavra, não na frente dela.

Um dia, no mural do pavilhão, um convite estilizado com a imagem de um drive-in de época, convidava os amigos a aparecerem para seu debute. Foi a gota d'água. Para um grupo, ela estava ultrajando uma tradição sagrada, para o outro estava se entregando à subserviência patriarcal que tanto combatiam. Perseguição? Imaginem! Para um grupo, perseguição é desculpa de quem quer ser o coitadinho. Para o outro, só minorias historicamente oprimidas podiam ser perseguidas.

Chegou o dia. Não havia pompa, mas tudo estava um brinco! O bar temático montado, um velho frigobar transformado em juke box ao lado, mesas pequenas e bem distribuídas por todo o salão, exceto o bom espaço para dança. Os parentes quase todos foram, mas todos mandaram presentes. Alugaram câmeras de segurança para filmar de vários pontos do forro, e dar um diferencial ao evento. Lá fora, duas Vespas e três Lambrettas faziam companhia a um DKW 1963, um Fusca 1968, uma Rural 1960 e um Mustang 1967.

Arrematando, a discoteca era de época, com discos de vinil. Dezenas de títulos, com artistas das quais a debutante nunca tinha ouvido falar, antes de pegar o vírus vintage. Para se diferenciar, copiou um modelito dos anos trinta, com xale e chapéu ornamental.

Com o passar das horas, chegaram três professoras. Só elas e ninguém mais. a noite avançava e quase metade dos lugares estava vaga. O pai da moça, vestido de motoqueiro rebelde, foi ver com elas qual seria o motivo da ausência massiva, não agüentava ver a filha ansiosa e tristonha. Pediram para chamar também a mãe da moça, vestida da personagem Sabrina, de Audrey Hepburn, e contaram em voz baixa o que colegas e professores realmente pensavam dela.

O homem, indignado, quase pegou uma Lambretta para ir tirar satisfações, mas foi detido pela esposa. Conversaram e acharam melhor dizer-lhe que todos os seus veerdadeiros amigos, estavam naquela festa, mesmo sabendo que iria chorar. E chorou. Precisou retocar a maquiagem. Agora ela precisa prolongar a infância por alguns minutos, nos braços da mãe, depois retoma a alvorada da vida adulta.

Choro passa e ela volta ao salão. Manda tocarem Mireille Mathieu, porque agora será uma moça, não mais uma menina. É para isso que serve o debute, para avisar formalmente que não serão mais toleradas reações infantís da moça. Ela agora está a poucos passos de ser uma adulta. Será uma valsa triste, mas será a sua valsa e não abrirá mão dela por quem não merece.


22/08/2013

Fórmula Vee

Fonte: Race Brazil

Existe uma categoria no automobilismo, que uma boa empresa de médio porte pode bancar sem problemas.Não estou falando do kart, que já é arroz-com-feijão da mídia especializada. Falo de uma categoria que quase não recebe espaço eu mesmo jamais vi uma reportagem a respeito.

Me refiro a uma categoria que é levada à sério em todos os outros países, por suas federações e confederações, por permitir que adultos ingressem no automobilismo sem serem milionários. O Brasil, como sempre negligencia esta potencial fonte de circulação de recursos.

Trata-se da Fórmula Vee. O princípio é simples, um carro monoposto com a tradicional e acessível mecânica Volkswagen a ar, usando o máximo possível de peças já existentes no mercado, prontas para utilizar, inclusive as usadas na preparação do motor. Com esta receitinha básica, o médio empresário pode usar o dinheiro de uma caminhonete nova para iniciar uma equipe.

Sim, eu sei, automobilismo e "barato" são antônimos. A vantagem econômica da F-Vee, é que ela não tem custos astronômicos. Qualquer categoria excede fácil um milhão de reais, para fazer uma temporada, fora a compra do carro. Sem contar que a Stok Car brasileira não é mais aquela carismática, que utilizava carros de rua de verdade em suas provas. Carisma é o que não falta à Fórmula Vee.

Para começar, eles têm em média, apenas 75cv @, que empurram um veículo muito leve, com uma suspensão que exige braço da ou do piloto. Essa potência de carro popular seria inviável em qualquer outra categoria adulta, mas na Vee ela faz a festa, tanto do piloto, quanto da equipe e do público.

Mesmo pouca, a potência permite uma aceleração bruta dos carrinhos, que se passam fácil por aquelas réplicas motorizadas para crianças. Com o entre eixos, a distância ente as rodas da frente e as de trás, curto, as derrapagens obrigam a alguns malabares em curvas rápidas, oferecendo ao público o que toda competição deveria oferecer, muita diversão. E diversão sadia.

Há, claro, os detratores. A maioria por motivações políticas e pessoais. São eles, infelizmente, que detém a administração das entidades que dão tanto espaço físico quanto midiático, às categorias. A Fórmula Vee é muito equilibrada, o amigo Zullino trabalhou muito arduamente para fazer um projecto que agradasse a federação, com pés no chão e olhos no horizonte. Não há muitas chances de aparecer um super herói nacional que estampe matérias torpes em telejornais.

Sim, meus queridos, infelizmente a doença crônica da adulação invadiu todos os espaços. As pessoas que se esmeram em ter carisma para ganhar poder político em entidades que poderiam salvar o automobilismo nacional, só se preocupam em abrilhantar suas imagens e alçar vôos mais altos.

Ah, sim, a maioria de vocês não soube. Pois bem, muitos autódromos estão sendo vendidos à especulação imobiliária, no Brasil. O de Jacarepaguá foi só o mais famoso e escandaloso caso. O de Goiânia só não o foi ainda, porque o dono apenas concedeu a área, e só para uso automobilístico. Se pensarem em construir qualquer coisa diferente no lugar, ele toma de volta. Sorte que os outros não tiveram.

Infelizmente, um dos grandes trunfos do automobilismo é uma das causas de sua desgraça, em um país onde ser analphabeto funcional dá status. Precisa usar a cabeça. Não é só pegar um carro e sair dando cavalos de pau na pista. É preciso ter raciocínio rápido, conhecimentos mínimos de matemática, saber interpretar as decisões das reuniões com a equipe e, se for o caso, ter altos graus de conhecimento técnico, que inevitavelmente são precedidos de conhecimento acadêmico.

Well... Enquanto o brasileiro se encanta com polêmicas fúteis e baba por causa de "ídolos" que se esmeram em dar péssimos exemplos, esportes que desenvolvem o intelecto e a sociabilidade, como o automobilismo, vão ficando para escanteio, nas mãos de quem pode sustentá-los sem precisar de uma massa midiática apoiando. Quando aparece uma categoria séria e acessível, é o que estamos vendo.

Aliás, os pilantras que estão vendendo os autódromos, patrimônio público, para incorporadoras que não têm mais onde construir espigões, e não querem pagar o preço justo de um terreno no centro, fazem questão de que o povo continue a pensar que "corrida de carro é besteira pra rico torrar dinheiro".

Uma pequena metalúrgica que patrocinasse a Vee, e fornecesse alguns componentes de sua fabricação, teria um laboratório rápido e barato para aprimorar seus productos, se capacitando a crescer e enfrentar as gigantes do mercado. É só um exemplo, um de muitos que poderiam fazer a economia girar mais rapidamente.

Aliás, aqui deixo um adendo. Ao contrário da crença popular, o volume de dinheiro vale, em um sistema econômico, bem menos do que a rapidez com que circula. Um real que circule mil vezes, faz o trabalho de dez notas de cem. Assim uma categoria relativamente barata, conseguiria alavancar fácil a economia de uma região, se lhe fosse dado o apoio de que necessita, porque até agora eles têm trabalhado no peito e na raça.

Dãã... "O Brasil é país de futebol, quem não gosta de futebol não é brasileiro"... "Corrida é só Fórmula 1, o resto a televisão não mostra"... "Corrida de carro não faz copa do mundo"... "Inteligência é frescura de gringo"... Tudo isso é coisa que já cansei de ler e ouvir. Infelizmente este país se transformou em uma nação de umbigos que só raciocinam daí para baixo. Para a parcela que quer evoluir além do que apregoam as estatísticas do governo, acaba taxada de "burguesa reacionária", fútil, elitista, traidora da nação e mais um monte de abobrinhas. Ou seja, gostar ou concordar com outras coisas, é passaporte para a personificação non grata. Os malandros sabem disso e se aproveitam.

Infelizmente não há atalhos, o caminho é íngreme e os sabotadores vivem a molhar a grama da rampa, mesmo quando já está encharcada. Ajudaria se um artista da moda aderisse? Ajudaria, mas ainda assim é difícil, porque seria necessário manter o público mesmo depois do oba-oba que as publicações "especializadas" deflagrassem. Ainda assim, o gigantismo do estrago não deteve os teimosos que mantém o automobilismo honesto vivo.

Pode até acontecer de os campeonatos monomarcas, usados só para fidelizar a clientela, acabem expulsando as categorias acessíveis dos autódromos restantes. Eu já vi coisa pior acontecer por bem menos e em áreas essenciais. O que não vai acontecer, é essa gente deixar um laboratório eficaz e divertido ser extinto pela falta de caráter e compromisso de dirigentes, como fizeram com o Museu Alfredo Nasser, em Brasília... Ah, desculpem, o jornal não deu destaque nenhum, né...

Bem, caríssimos, pois os convido a pararem de colocar culpas em conspirações internacionais, acima de todos os poderes e de toda paranormalidade, e assumirem o quinhão que lhes cabe. Se há culpa de gente de fora, ela não nos exime da nossa, que é deixar nas mãos dos outros a decisão de nossos destinos, do que devemos ver, vestir, ouvir, assistir, comer e até do que devemos gostar. Tênis, como o automobilismo, não é esporte de burguês, é esporte de quem quer jogar tênis. Metam isto em suas cabecinhas, quem deve decidir o que vocês querem, são vocês, e eu sei que uma parcela gigantesca da população é automobilista enrustida. Não se assume com medo de perder suas turmas costumeiras. Pois paguem o preço, quem realmente for seu amigo, não vai se afastar por causa disso. A diversão, como tudo mais o que o automobilismo traz de bom, é garantida.


14/08/2013

A mais elegante

O anúncio segue o suspense comum a qualquer concurso feminino, com uma grande parcela das concorrentes se considerando a vencedora. Nenhuma gastou pouco, até porque é muito difícil conseguir modos refinados e aparência impecável, em um mundo extremamente apressado e poluído.

O mestre de cerimônias tira o resultado em papel rústico do envelope com relevos art noveau, dá uma balançada nas sobrancelhas e anuncia a vitória da "Senhora Grace Müller". Ela sinceramente não esperava, não depois do que passou para chegar em cima da hora ao pavilhão do concurso.

As outras também não esperavam, mas não podem reagir sem parecerem galinhas choronas. Elas não, mas mães, pais e agentes não só podem como o fazem, da forma mais deselegante possível! Sobem ao palco e cercam o mestre de cerimônias que, já esperando por isso, providenciou algumas apostilas e assentos para todos. Só se pronuncia quando estão todos sentados e de apostilas nas mãos, então explica os parágrafos marcados com fundo amarelo, no regulamento:
  1. Este é um concurso de cunho artístico e cultural. Não serão considerados o nome da família, as posses, a tradição nem o histórico precedente da candidata, a não ser que contribua positivamente para a sua boa apresentação.
  2. Os recursos movidos pela candidata e/ou sua equipe de apoio e/ou consulta, NÃO serão levados em consideração, a não ser que sejam considerados pelo júri, muito pequenos em comparação com os resultados obtidos.
  3. O aspecto estético conta dez pontos válidos, na escala de duzentos e cinqüenta, podendo ser majorado se houver nota máxima concedida por todo o corpo de cinqüenta jurados.
  4. A bagagem cultural conta de quinze a vinte pontos válidos na escala já citada neste regulamento. Não serão considerados "bagagem cultural" os seguintes ítens: novidades de revistas de celebridades, de reality shows, de artistas específicos que não tenham contribuído para o engrandecimento da arte e/ou da humanidade, viagens que não tenham agregado cultura útil.
  5. O vocabulário conta de dez a doze pontos, podendo ser majorado a critério do corpo de jurados, se houver unanimidade na nota máxima. Erros de português incompatíveis com a escolaridade, serão eliminatórios. Gírias e neologismos devem ser ditos somente na entrevista individual, devidamente acompanhados pelo sinal com os dedos de "aspas". O tom de voz acrescenta ou subtrai até três pontos, de acordo com a deliberação do corpo de jurados.
  6. A prova escrita conta de dez a quinze pontos, podendo ser majorado a critério do jurado, se houver unanimidade na nota máxima. A prova escrita terá duas etapas, a coloquial, em que é permitida a "reforma ortográphica", e a clássica, em que ela eliminará a candidata. Erros de português incompatíveis com a formação da candidata, serão eliminatórios.
  7. A prova de canto leva em consideração a afinação, a dicção e a sensação causada pelo timbre; este ítem fica a critério de cada jurado, com participação do público inscrito. Cada candidata cantará seis canções, três de sua escolha e três determinadas pela organização do concurso. Caso queira, a candidata poderá incluir uma canção à sua escolha, sem prejuízos ou acréscimos à pontuação.
  8. A prova de simpatia será avaliada por um júri extra, composto por três psicólogos, uma professora de boas maneiras e a vencedora do último concurso. Neste ítem, será avaliado o modo como a candidata trata cada pessoa, desde que entra até o momento em que si dos portões do local do concurso. Conforme aceito no acto da inscrição, todos os passos das candidatas serão vigiados de perto, e serão utilizados os serviços de actores para testes simulados.Espontaneidade conta pontos.
  9. A prova de relevância levará em conta a utilidade da candidata para a sua família e a sociedade. A promoção de festas, eventos e viagens para seus pares, sem finalidades altruístas, será desconsiderada. Trabalhar regularmente conta dez pontos, assistir entidades filantrópicas regularmente conta dez pontos, actividades socialmente úteis na internet contam até cinco pontos.
  10. A prova de solidez da elegância pode dobrar a pontuação da candidata, de acordo com o critério do corpo de jurados, se houver unanimidade na pontuação máxima. Serão levados em consideração o grau de dificuldades enfrentado pela candidata, os elementos potencialmente sabotadores, os danos sofridos e a apresentação da candidata após ter enfrentado todas as adversidades.
  11. Talentos. A criatividade e a capacidade de fazer mais com menos recursos, serão avaliados neste ítem. Não será necessário à candidata, apresentar artefatos complexos ou muito refinados. O bom gosto, o conteúdo e o conhecimento de causa, serão avaliados pelo corpo de jurados. Custos vultuosos não serão levados em consideração.
  12. Discrição. A candidata deverá ser comedida  em suas palavras, seus gestos e nos comentários a respeito de terceiros. Demonstrações de alegria e gestos particulares da candidata, poderão ser relevados, ou mesmo somar pontos na escala final. O corpo de jurados novamente contará com o auxílio do corpo auxiliar.
  13. Indumentária. Não será julgado o gosto pessoal da candidata. Serão avaliados três sub ítens: Estética, com consenso dentro do corpo de jurados e do público inscrito; Respeito à anatomia, com ênfase nas proporções e arranjos, bem como truques de conhecimento pessoal; Adequação dos trajes ao ambiente; Conhecimento sobre moda e costura. As categorias avaliadas são: Casual, Esporte, Esporte fino, Passeio, Gala, Vintage, Praia e outro à escolha da candidata.

Bem, vamos "desenhar", para evitar equívocos de interpretação. A Senhora Grace Müller usa uma Kombi 1974 da família para se deslocar. Eu andei de Kombi a infância inteira, quando meus pais eram feirantes, sei do que vou falar agora. Nossa vencedora, com louvor, mora em um bairro afastado, enfrenta o trânsito caótico de nossa metrópole em horário de rush, sem ar condicionado, sem bancos confortáveis e sem uma suspensão macia para ajudar.

Se não leram direito, isto é um concurso de elegância e bons modos, não de ostentação. Suas fortunas não contam pontos e não nos ameaçam.

A Senhora Grace Müller saiu da escola pública onde trabalha, se apressando para estar pronta para o andamento do concurso, saindo bem cedo de casa com não mais do que seu dedicado marido, enfrentando ruas com péssima pavimentação e sinalização deficiente, até conseguir chegar à ilha de civilização que é a região onde estamos agora.

Com tudo isso, a Senhora Grace Müller sempre tratou a todos com polidez, solicitude, sem medo de suar um pouco para ajudar nossos actores abusados, mesmo quando se vestiam de mendigos. No momento de suas avaliações, embora cansada, manteve o sorriso em seu belo rosto, se saindo bem em todas as provas, sempre agradecendo às pessoas que a ajudaram a chegar à etapa em que se encontrava.

Não citarei nomes, mas cada uma saberá de quem estou falando. Todas vocês, que agora reclamam, vieram de bairros próximos, quando não da vizinhança do evento. Mesmo tão de perto e vindo em carros de luxo, inclusive Rolls Royces, algumas candidatas não hesitaram em destratar e ofender nossos actores, mesmo já dentro da área externa do centro de convenções.

Antes das entrevistas individuais, absolutamente todas, à exceção da vencedora, foram flagradas disseminando intrigas contra as concorrentes, inclusive contra a Senhora Grace Müller, por ser de origem humilde. Reclamações de atitudes racistas chegaram aos nossos ouvidos, mesmo de candidatas claramente miscigenadas. Embora pequenos atrasos, devidamente justificados, fossem tolerados, algumas usaram de argumentação fútil, como facebook ou a chegada da nova coleção de inverno, outras simplesmente ignoraram a ficha de justificativa.

Com triste freqüência,  flagramos candidatas vindas de famílias abastadas, com formação acadêmica invejável, em atitudes vulgarescas, dignas do estereótipo das meretrizes de beira de estrada. A modéstia passou longe destas.

O objectivo do concurso é incentivar a civilidade, os bons modos e a humanidade nas pessoas, se valendo das vencedoras do concurso para dar o bom exemplo. E acreditem, há muitas pessoas que ainda prezam essas qualidades, inclusive os financiadores do concurso. Caso os reclamantes queriam contestar judicialmente, nossos advogados estão à disposição, conforme consta no contracto de inscrição. A Senhora Grace Müller agiu como uma princesa o tempo inteiro.

À vencedora e seu adorável marido, além da premiação divulgada, a premiação surpresa: Uma viagem de um mês à Europa, com o bônus de hóspedes por três dias, de sua Majestade a Rainha Elizabeth II da Inglaterra, uma de nossas apoiadoras, no Palácio de Buckingham. Sem mais, vamos à cerimônia de premiação! Maestro, patrocinadores e apoiadores, a homenagem à nova Senhora Elegância!

13/08/2013

A Dancing Nun




Patrícia é uma mulher bonita, de olhos penetrantes, com voz solene e envolvente, solteira, livre e desimpedida, mas com um elevado ponto de corte. Ela trabalha para sobreviver, pagar suas contas e sustentar seu gato, em um apartamento que não é muito maior do que uma Renault Master. Poderia passar facilmente despercebida na multidão carioca, e passa, já que conteúdo não aparece na testa.



Patrícia tem alguns problemas com o meio em que vive. Primeiro porque ela tem um bom gosto incompatível com sua condição econômica, ou será uma condição econômica muito aquém de seu bom gosto?



Segundo porque, novamente, tem um bom gosto incompatível com a cafonice do meio em que vive, ela é desenhista profissional e tem noção de proporções, sabe da lástima estética que é alguém usar calças seis números abaixo do seu e com a vagina quase à mostra, de tão baixo o cós. Fora outras bizarrices fashionistas.



Terceiro porque é freira anglicana. O voto que ela fez, é o de caridade, por isso precisa trabalhar para sobreviver, sustentar seu gato e seu apartamento, pegar ônibus lotados que levam quatro horas para fazer uma viagem que duraria meia de carro, enfim... Patrícia tem tudo para se desanimar com a vida... E andava meio desanimada mesmo.



Um dia, porém, não mais que derrepente, um lampejo taurino lhe invadiu a mente cansada e os brios de quem viveu a década perdida como se fosse a última; porque havia o risco de que realmente fosse, quem não viveu então, não sabe o que foi. Se determinou a livrar-se de seu pior inimigo, aquele cafajeste safado que tantas alegrias já tinha lhe tirado, que lhe incutia culpa por qualquer tabletinho de chocolate que comesse, que a torturava com as saudades de quando era uma garota dançante.



Levou a mão às costas, para pegar a espada e gritar “Pela honra de Grayskull, mas não tinha espada nenhuma, então gritou “VAI PRO INFERNO, SEDENTARISMOOOOOOOOOOO!!!!!” e começou a dançar.



Mas vocês sabem o quanto um cafajeste resiste em perder sua vítima. A tentou com os confortos do sofá, com a cama quentinha e aconchegante, com os mimos de seu próprio gatinho, vejam que canalha! Sem resultados, decidiu agredi-la! Começou a castigar-lhe os joelhos, que clamavam pelo retorno do sedentarismo charmoso e sedutor. VAI PRO INFERNO, DOR NO JOELHOOOOOO!!!!



Mesmo dolorida, continuou dançando, rebolando e fazendo o serviço pesado que Flash Dance faz parecer tão fácil! Fácil o cacete! Alguém aí já tentou virar um motor que ficou parado por anos, sem lubrificação? É a mesma coisa! O óleo novo demora a entrar, a ferrugem teima em gerar atrito e dificultar o giro do motor!



Depois de tantos protestos de apoio, inclusive de uma bailarina talentosa, a coragem cresceu e a teimosia tomou o lugar do ânimo, que pode variar, a teimosia nunca! A teimosia foi maior do que a dor, o cansaço, a chantagem, a manha do gato, a falta de espaço do imóvel e até da indolência que há muito assumira... VAI PRO INFERNO VOCÊ TAMBÉM, INDOLÊNCIAAAAAAAA!!!!!



A estrada é longa, com rampa íngreme, acidentada e escorregadia. Mas não dá mais. Já mandou o maldito sedentarismo ir procurar uma coitada qualquer. Não terá mais seu antigo parceiro de volta. E se ele voltar, o joga pela janela.



Não, mané! Ela não dança até o chão-chão-chão! Olha o respeito! Ela dança danças dançantes! Cousas que activam muito mais do que o baixo ventre, que geram coordenação motora, que atiçam os reflexos musculares, que afinam o raciocínio reflexo, que a tornam ainda mais maravilhosa! A freirinha tem bom gosto, eu já disse! Ela tem senso e tino. É uma freira rebelde, não se acomoda com massificações pseudo-populares! Não se acomodou nem com sua antiga paixão, vai se acomodar com esse pateta?



Patrícia dança ao som de gente talentosa, que fez a mídia ao seu redor, em vez de ter sido feita por ela. Patrícia dança o que lhe faz a diferença para a melhor, ela dança para ser o sol de seu sistema, não um satélite de sistemas alheios!



Não tem volta. Agora terá que subir o morro até o cume, até o planalto dançante que a espera. Patrícia dança pop, rock, tango, samba, dança rumba, dança cha-cha-cha porque nasceu, nasceu para bailar!



Após chutar o pau da própria barraca, está determinada não a recuperar as curvas da adolescência, mas a saúde e a disposição a que tem direito, são dela, só dela e ninguém tasca! Ela aprendeu de uma vez por todas que quem não dança, dança!



Aviso aos descrentes, céticos e línguas quilométricas: vocês vão se engasgar com seus próprios venenos.

02/08/2013

Rebeca e seus phones




A empregada chegou à nova casa sem muitas expectativas. Rose era seu nome. Tinham lhe dito que era boa família, sem achaques de classe média esnobe, que seria bem tratada, enfim, que teria alguma tranqüiliade. E foi o que teve. Mas também teve uma lição.

Rebeca era a filha do meio, de três beldades que o casal conseguiu trazer ao mundo. Mocinhas comuns, até certo ponto. Rose logo notou que Rebeca andava sempre com phones de ouvido bem grandes, como os profissionais. Às vezes passava horas com ele na cabeça, alheia ao mundo.

Quando voltava do colégio com as irmãs, elas ligavam o som e Rebeca colocava seus phones. Interessante como era a única que gostava de músicas diferentes. O mais interessante, porém, era ela manter o acessório mesmo após os exercícios prontos, cadernos guardados e com a tarde livre. Livre para os livros, diga-se de passagem. Que leitora voraz! Já amiga, Rose pegou dela o gosto pela literatura.

Estudava música e praticava muito, mas os phones a acompanhavam mesmo longe de seu teclado Yamaha. Às vezes levantava um pouco, um dos lados, para ouvir direito alguém por perto, mas geralmente não se preocupava em saber o que acontecia à sua volta, quanto os usava.

Não havia nada mais de diferente, aparentemente, entre Rebeca e as outras meninas da mesma idade. Nada além dos grandes phones de ouvido. Menina bonita, corpinho bem formado, voz agradável, gentil, mas era bem menos popular do que suas irmãs. Fossem quais fossem as músicas que ouvia, lhe deixavam alheia ao mundo e mais ainda às banalidades das conversas adolescentes.

Fora isso, tinha o bônus de ser uma menina calma, relaxada, que raramente perdia a paciência. Ainda assim era raro saber de um namoro, sempre superficial, sempre efêmero, porque o garoto não sabia aceitar o jeito introspectivo dela, mesmo a tendo conhecido assim.

O passar dos anos mudou muita coisa, exceto a amizade de Rose e Rebeca, e o amor desta pelos seus phones, que agora carregava de forma mais discreta, destro de uma bolsa. Vira e mexe, ela os tirava da bolsa e voltava ao seu mundo particular.

Rose, às vezes, acompanhava as irmãs ao clube. Diziam que era uma amiga, para ela se sentir mais à vontade. Elas tinham os pés bem firmes no chão, sabiam que ela sofreria muito mais preconceitos se dissessem que era sua empregada; ainda há gente que pensa que empregada de uma casa, é empregada de todo mundo.

Rebeca, quase mulher feita, demonstrava uma leve tendência retrô, com seu maiô Jantzen. Se divertia, mergulhava, mas depois da farra e do barulho, voltava aos seus phones, em uma espreguiçadeira, e sacava um livro novo da bolsa. Já estava madura mesmo, lendo um livro pesado como Uma Guerra de Luz e Sombras! Rose ficou com medo e parou de ler logo no primeiro capítulo. Autora maluca, pensava.

Um dia, já íntima o bastante, Rose perguntou à pequena patroa o que ela tanto ouvia de tão bom, naqueles phones. Rebeca sorriu sem dar uma só palavra, apenas pediu que se sentasse, pegasse um livro e os usasse. Ela o fez. Que decepção! Não estava ouvindo nada, mas a moça insistiu para que fosse em frente. Meia hora bastou para terminar um livro que ainda consumiria uma semana.

Ainda levou um ano para a empregada se dar conta do quão valioso isso era, para a moça. Acostumada a vincular barulho à diversão, sua ficha demorou a cair, mas quando caiu a ligação foi cristalina. Foi uma descoberta que lhe rendeu muito, até refinou sua audição.

Rebeca lhe deu um par novo, para usar nas horas de folga. Após tantos anos de casa, Rose finalmente tinha compreendido o que Rebeca tanto amava ouvir. Se privando do pandemônio do mundo exterior, ela ouvia a si mesma. Não há mesmo namoro adolescente que supere este prazer.