12/11/2020

Seu território, nossas leis!

 

Assevero que o bebê panda gostou

            Quatro garotas, cidadãs de um país muito sério e com uma cultura muito rigorosa no tocante ao comportamento em público, afagam o bebê panda de um zoológico local, com severas regras sanitárias, cercadas por profissionais competentes de uma equipe que sabe o que faz e jamais permitiria ocorrências arriscadas próximas a animais raros, ainda mais um filhote. Desde 2016 que Lisa, Jennie, Rosé e Kin Ji-Soo são manchete, primeiro porque o grupo da YG Entertainment jogou na lata de lixo o conceito de que cantoras de K-pop precisam entrar na faca até não se parecerem em nada consigo mesmas, segundo porque são quatro anos sem trocas de integrantes e terceiro, porque não têm papas nas línguas; ou seja, subverteram praticamente tudo o que se considerava como padrão para K-pop até então. Elas ralam duro, ensaiam coreografias complexas, às vezes precisam treinar contando piadas em Fa e rindo repentinamente em Do, mantêm a forma física e costumam usar figurinos extravagantes nos shows em que esbanjam suas belezas joviais, há muita pressão e o treinamento prévio para sua estreia foi tão duro quanto longo; é o que as identifica com os outros astros do gênero. A diferença é que elas caíram em boas mãos, num grupo que lhes permite ser mais autênticas e expressar o que pensam, claro que comedindo as palavras, mas podem o que a maioria dos colegas não pode. Os Blinks, seus fãs, sabem valorizar essa rara autenticidade no mundo artístico.

 

            Mas teve gente se irritando com isso. Os mesmos ambientalistas chineses e estrangeiros que fizeram-se de cegos, quando as ilhas militares artificiais dizimaram sítios marinhos, passaram a gritar contra os afagos apontando até para o facto de elas terem cães para acusá-las de terem posto filhote e mãe panda em risco. Nem vou falar novamente sobre a hidrelétrica no rio Amarelo! Nem do uso intensivo de carvão! Nem da pesca predatória em águas territoriais alheias com escolta militar! Para esses ambientalistas melancias nada disso importa. Importa fazer acusações sem investigação prévia de todo o contexto dos acontecimentos, baseando-se apenas em “algo errado nisso poderia ter acontecido”, “na minha opinião não pode” ou “ofenderam o símbolo sagrado da nação”; embora façam troça explícita ao que é sagrado para os outros; a religião lá é o partido. Não consultaram o zoológico, os veterinários, o próprio quarteto a respeito dos cuidados tomados previamente, apenas tomaram as dores de um regime que se considera proprietário de todos os pandas do mundo, inclusive dos que nascem fora de seu território.

 


            Aliás, se considera dono do próprio mundo, dando palpites nas políticas internas alheias e punindo países que contrariem seus interesses… quer dizer, pune os países que não têm poderio bélico e econômico para reagir. Se não dependesse tanto dos alimentos brasileiros para manter a população sob controle, já teríamos sido alvos de sua ira. Sua presença na África já é consistente, muitos países lhe devem os tubos em empréstimos que não conseguirão pagar tão cedo; talvez nunca, porque o PCC pode manipular juros e multas de acordo com seus desejos, assim como faz com o câmbio, ou vocês pensam que a economia local se desenvolveu só na base do “derramar mais concreto do que bombas”, como alardeia a turma do “vai estudar história”? Dinheiro pode ser reposto, o que eles querem é o que não pode ser reposto, como a própria soberania política dos Estados que cometeram o erro de lhes pedir ajuda. Porque não basta fazer os próprios cidadãos terem pavor de dizer em público que se lembram do massacre da praça da paz celestial, usa de seu gigantesco mercado interno para pressionar empresas a baixarem suas cabeças aos caprichos ditatoriais que tanto arrancam suspiros de nossa pseudoelitezinha pseudointelectual.

 

            Aos cidadãos reféns do regime, dizem que o ocidente tem inveja de seu progresso. Se acreditam ou não, pouco importa, mas a quem perguntar é compulsório dizer que acreditam. O agravante é exigirem isso de estrangeiros em seus próprios países, não sendo raro encontrar pessoas que já até moraram lá e foram banidas, simplesmente por terem dito em público algo que pudesse ser interpretado por alguém como uma crítica ao regime (como esta moça). E sim, estrangeiros lá dentro são mais rigidamente vigiados do que o próprio cidadão, a ponto de precisar comprar um celular local porque o que eles não podem espionar simplesmente não funcionam, não têm nenhum suporte; o contrário do que eles fazem em países alheios. Antes um esclarecimento, há uma diferença imensa entre dizer-se insatisfeito com os resultados de uma decisão política, e dizer que precisam de um novo líder; isto se dizia no Brasil entre 1964 e 1984 sem render qualquer sanção, não por isso. Claro que essa completa ausência de oposição ajuda no desenvolvimento material econômico, já que ninguém vai se atrever a perder prazos ou travar uma votação para afrontar o líder... como fazem aqui.

 

            Toda a invejável infraestrutura de internet, mais censurada do que livro ilustrado de pornô pesado em convento da idade média, não é para facilitar a vida do cidadão, isso acontece como efeito colateral até para os mendigos, é para vigiar cada passo, cada atitude, cada comentário, cada imagem compartilhada, cada link postado, cada piada que possa ofender a cultura milenar dos povos ribeirinhos do partido. Foi assim que baniram o ursinho Pooh e banem qualquer vaga menção ao massacre da praça da paz celestial. Como eu já disse, isso é vigiado até em cidadãos de outros países em seus próprios territórios, para tanto se valem de redes sociais e motores de busca que são proibidos na China, até o Youtube, que teve uma repentina explosão de chineses e simpatizantes ocidentais do regime... E com essa hipocrisia escancarada, que passa pelas vistas grossas dos discursadores libertários, formadores de opinião de outras nações são policiescamente vigiados e seus patrocinadores pressionados e chantageados a qualquer mínimo descontentamento do partido único e compulsório, como está acontecendo com Blackpink e já aconteceu com outros artistas, a quem os artistas lacradores não prestaram sequer votos de boa sorte. E ai de quem disser que há mendigos por lá, porque será banido do maior mercado consumidor do mundo.

 

            Aliás, o grupo BST também tem sido alvo de represálias pesadas por terem feito um comentário alusivo à guerra das Coreias, (aqui e aqui) mesmo que superficial e sem citar a participação chinesa naquele ataque pelas costas. Essa parte da história que dificilmente será contada em sala de aula não é nova, mas só têm vindo à tona após o advento da internet, por pessoas que foram banidas e hoje são perseguidas pelo regime, mesmo em países distantes de lá… e a Coreia não fica longe deles… na verdade um pulo geográfico já atravessa a fronteira de terra firme para terra firme. Em suma, os rapazes do BST são obrigados a negar a própria história recende de seu país para não ofender os censores do mundo… eles e qualquer outro artista que não queira ser sabotado, punido, chantageado, banido e perseguido pela gangue comunista e seus minions espalhados pelo mundo. Foi assim que o celular licenciado por eles sumiu do mercado mal tendo sido lançado.

 

Vídeos deles e de outros coreanos

            Não pensem que eles respeitam fronteiras. Se a Índia não fosse tão capaz de se defender, já teria sido anexada, que o diga o Tibete, cujo destino não foi e não é lamentado por aqueles que gritam “Catalunha livre”, sequer é lembrado como um território que já foi soberano e cuja população original foi massacrada e trocada por chineses, restando hoje uma minoria acanhada de tibetanos descendentes dos originais. Quando a Inglaterra devolveu Hong Kong, o que enviaram? Diplomatas? Cidadãos com presentes? Não! Mandaram tanques de guerra! Para deixar claro que todas as promessas feitas ao Reino Unido seriam sumariamente desprezadas. De então em diante alteraram a constituição até hoje nada restar da cidade livre e legre da era britânica. Falar de Taiwan, excluído da ONU por pressão daquela ditadura idolatrada por idiotas acadêmicos, eu acredito ser desnecessário. Se há algo aproveitável que este governo fez, foi nos afastar desses regimes. A alternativa para um mercado gigantesco é a Índia, a maior democracia do mundo. E não, seu preconceituoso, os indianos não fabricam só incensos, filmes toscos e saris, eles têm uma indústria de ponta (https://exame.com/tecnologia/fabricante-indiana-de-smartphones-quer-vender-200-milhoes-de-unidades/) só esperando pela aceitação ocidental. Levaria anos, porque muita coisa precisa ser feita por lá para que o nível de desenvolvimento geral se equipare ao chinês, mas seria um seguro contra novas chantagens, dumpings escancarados e manipulações cambiais. A mentalidade do indiano médio, derivada em parte do sistema de castas e seus costumes, é um dificultador, mas não é intransponível. Sejamos honestos, um país que comprou Cherry QQ não tem o direito de falar mal do Tata Nano!

 

            As empresas americanas já começaram a sondar e demonstrar interesse pelo mercado e pela produção local na Índia, muito tardiamente, mas ao menos estão saindo da letargia. Talvez com as indústrias o prórpio e voraz turista americano comece a ver a Índia com outros olhos. Por essas e outras eu evito a todo custo comprar o que tiver sido feito na China. É extremamente difícil, hoje em dia, mas não é impossível, principalmente porque podemos viver sem quase tudo o que existe no mercado. Sabem aqueles aparelhinhos de MP3 que eram febre no começo do século e todo mundo tinha? Eu não sou todo mundo, então não tive. Isso é como o tráfico de drogas, só que com a quadrilha no poder de um país; quem compra, financia, não há meios-termos aqui. Cansei de procurar um aparelhinho feito na Coreia ou no Japão, na época, mas não encontrei e escolhi não ter. Não, não me interessa abandonar os cidadãos chineses e devolver toda aquela gente à miséria em que Mao a jogou, assim como de jeito nenhum eu vinculo o chinês médio ao partido, e isso não vai acontecer por causa da migração de investimentos.

 

            E, já que nenhuma entidade defensora de oprimidos e perseguidos por censuras de manifesta, começarei a expor minha simpatia pelos garotos coreanos. Eles já sofrem pressões e cobranças mais do que suficientes lidando com a parte honesta de seu trabalho, não precisam da sujeira mafiosa de uma ditadura mimizenta, precisariam sim da manifestação clara e explícita de uma entidade de “classe”, bem como seus préstimos jurídicos e estruturais, mas como isso não acontece, pessoas como eu precisam colocar as acaras a tapa… de novo.

Blackpink: Letras, Pinterest e Youtube.

Mais a respeito: aqui, aqui, aqui e aqui.

03/11/2020

Aqui jaz teu sonho

 

Pity the Sorrows of a Poor Old Man - 1822 - Théodore Gericault - French (MET Museum)

            Aqui jaz o teu sonho não cultivado, legado ao desdém do adulto amargo que se tornaste. O mesmo sonho que em tenra infância ainda se rascunhava em pueris balbucios num mundo que tudo parecia prometer, diante de pessoas que tudo lhe pareciam permitir, ainda que mostrando os limites salutares de tua segurança, enxugando as lágrimas de um pranto repentino por algum susto que só teus olhos e ouvidos sabiam mensurar. Nos mesmos braços que limitavam teu avanço, para não cairdes no fosso profundo, encontravas o bálsamo da segurança oscilante a embalar suavemente teu sono, em cujas brumas os devaneios tomavam formas, cores e toda a miríade de possibilidades com que poderias entreter-se.

            Ainda era cedo, havia tempo de sobra. Era momento para te preparares em aprendizado básico e crescimento sem os perigos ardis que a vida reserva aos que alçam vôo. Ainda havia tempo, os riscos eram ensinados em simulações simples e seguras nas brincadeiras rasas que te ensinariam a enfrentar as adversidades sem temê-las. Quando os temores reais lhes foram apresentados a distâncias e em doses salutares, tão somente para que mesmo em botão, a flor de teus sonhos fosse defendida das pragas e ervas daninhas tão traiçoeiras.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, posto por terra pelas urgências bravateiras. O mesmo sonho que na plena flor da juventude lhe emprestava o perfume balsâmico para curar tuas feridas e ajudar-te a vencer teus medos, quando já sabias que o mundo não tinha obrigação de ser bom, mas que tampouco deveria ser temido como se fosse um mal invencível. Quando as forças lhe pareciam trasbordar e sobrepujar quaisquer decepções pérfidas, dessas que se lhe apresentam com semblantes amigáveis e discursos aduladores em firmes vozes sedosas. Ainda tinhas o amparo de quem pudesse socorrer-te de apuros e, embora certa a reprimenda necessária, encaminhava-te ao curso seguro do caminho reto; que não precisava ser seguido em absoluta retidão, tão somente não se afastar a ponto de perdê-lo de vista já lhe garantiria os louros de teus esforços, pois assim voltarias rapidamente assim que os riscos suplantassem os ganhos... e foram tantas vezes!

            Ainda era cedo, o tempo intercedia em teu favor. Era momento de experimentares os sabores do mundo e decidires que temperos usarias em teu caminho, aqueles que dariam aos teus pares a tua identidade e te tornariam inconfundível, facilitando te reconhecerem e te ampararem na busca de tuas realizações, sob o auxílio prestigioso de mestres e auxiliares, papéis que assumirias vez ou outro, e em definitivo quando os resultados de teus labores deitassem em tuas mãos então experientes.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, em preta mortalha coberto pela vida que deixaste de viver, não importam os motivos. O mesmo sonho que na vida adulta lhe serviriam de muleta nas mais duras adversidades, tanto quanto de cetro no regozijo de tuas vitórias cotidianas, resplandecendo a majestade de quem teria ousado na medida e no momento certos, posto que o cabedal e a experiência amealhados te fariam reconhecer de pronto as armadilhas e os inimigos, hábeis em vestir-se de oásis e benfeitores. Quando as forças ainda seriam abundantes e a mente lúcida dos sábios serviria de habitat aos teus pensamentos, guarnecidos de raciocínio e conhecimentos abundantes, o que ainda te permitiriam sonoras gargalhadas a cada vitória; e seriam elas seriadas em tua longa e venturosa jornada.

            Já seria a tua hora, o tempo então generoso lhe mostraria a longa estrada a percorrer com as pernas fortes dos sonhos em plena realização, de uma vida que nunca precisaria ser perfeita, mas tão somente ser a tua vida, a que só a ti serviria e a em que somente tu serviria, construída e ababada sob medida para os teus pesares serem sempre ciscos diante das vigas de tuas realizações, do amparo que agora seria de tua alçada, do aprendizado que agora sairia de tuas palavras e do vasto jardim de sonhos que agora a ti caberia cuidar para a posteridade; assim como teriam feito por ti.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, em jazigo de pedras cruas que restaram de tua vida desventurosa. O mesmo sonho que te for cobrado por não viveres a vida que deverias ter construído, mas cujos tijolos desviaram-se em amparo de quem jamais construiu senão os próprios mimos, desdenhando assim que se levantava o doador desafortunado do que agora abandona e deixa desmoronar. Quando as forças decaem sem reposição hábil e tua visão se turva diante do horizonte escuro que se aproxima, forçando-te a vencer o íngreme aclive sob as dores que não lhe foram curadas, pela falta dos recursos que nunca te foram cedidos em troca das chances que a outrem concederam. A vida apertada e cnidária que sobrou não permitia iniciativas senão em caminhos tortos, a horizontes perpendiculares ao que teus brios ainda te impulsionam. Sim, talvez seja tudo o que te resta, e te priva da queda de um desenlace precoce.

            Já passou a tua hora, o tempo já cobra o tributo dos ganhos não conseguidos e a estrada, embora se encurte a cada passo, é cada vez mais íngreme, dilapidando as poucas energias que ainda restam em teu corpo debilitado, que ainda assim precisa vez ou outra amparar os que se corromperam e nem mais mantêm-se de pé sem esporádicos auxílios. Vai, que é tua sina arcar com proventos dos dividendos não ganhos, dos lucros subtraídos, de toda a sua miserável existência em uma vida que simplesmente ainda não te cabe dentro. Se é tua culpa ou não, é tão oneroso quanto irrelevante ater-se a tão dolorosas elucubrações, apenas arque com o que te cabe, pois não cabes em mais nada do que te cerca e ainda tens chão pela frente. Tua pena, lamento, é esperar sob duras labutas pelo óbito, já morto em uma vida que nunca deveria ser tua.

17/10/2020

Eleitor aqui não entra!

Goiânia. Avenida Goiás, Centro, 1950s


             Eles vivem fora da cidade, em uma cidade privativa. Nesta cidade privativa, só entra quem for residente, empregado ou convidado. É um mundo à parte onde as leis ordinárias do país podem bem ser ignoradas, se houver suficiente coesão de interesses para tanto, e geralmente há. Não me refiro apenas a episódios como um do Rio de Janeiro, ainda no fim do século passado, em que um fedelho mimado estúpido foi flagrado dirigindo de forma perigosa dentro das ruas privativas. Chegando em casa, impune por que era menor, encarou a imprensa e gritou "dirijo sim e vou continuar dirigindo". Se isso é aceito pelos moradores, então mais infrações podem ser, bastando haver um código de silêncio, seja voluntário, seja imposto; como o que os traficantes impõe às favelas e bairros periféricos. Não muda muita coisa, até porque já disse que há décadas não temos uma elite, temos um bando de deslumbrados com dinheiro na conta, mas isso verei mais tarde, noutro texto, se for pertinente. Em ambos os casos, as pessoas crescem em realidades paralelas, muitas vezes agindo como estrangeiros, ou alienígenas, quando vão à cidade dos comuns e nem sempre conseguem falar o mesmo idioma dos locais.

            Deixo claro que não sou contra condomínios, cada um mora onde quer e pode. Não me importo com o tamanho e os materiais usados na construção da casa, não dou a mínima, eu sequer abro "notícias" a esse respeito. O problema vem quando a alienação do mundo real atinge quem não deveria sequer se afastar dele. Ainda me lembro, em meados nos anos 1990, de uma reportagem que levou às ruas dois garotos que nasceram e quase nunca tinham saído de seu condomínio, pelo visto jamais o faziam a pé. Ao contrário daquele fedelho insuportável, eram bons garotos, gentis e interessados pelo mundo extra muros. Viram pela primeira vez um policial de perto, conversaram com ele diante das câmeras, a certa altura perguntavam o quanto esse policial ganhava, chutaram um valor que dava umas cinco ou seis vezes o soldo. As carinhas macias com expressões de perplexidade deixaram clara a pergunta mental de "como é que ele vive com isso"; provavelmente era o que cada um gastava com shopping e entretenimento.

            O mote de um condomínio fechado é a comodidade, a segurança é apenas um agregado mais utilizado em países violentos como o nosso. Essa comodidade, que tem seu preço, inclui uma infraestrutura mais sólida e moderna, locais de consumo de bens e serviços dentro do complexo, robustas estruturas de lazer exclusivas para os condôminos, jardinagem, paisagismo, serviços essenciais entre outros. Muito disso o controle da corrupção poderia oferecer facilmente ao cidadão comum e, bem, isso tem a ver um pouco com a facilidade com que esses loteamentos têm proliferado, nem vou agora abordar os métodos e os interesses dessas facilitações. Não não são negócios ilícitos e nem imorais, não são os negócios em si que causam os problemas, mas os facilitadores que se servem deles. E é mais grave do que permitir a construção de um alto edifício em local impróprio, onde a sombra e o tráfego resultantes vão agravar o trânsito, sobrecarregar os sistemas de energia, água e esgoto, chamar mais a atenção de meliantes, comprometer a privacidade dos moradores e tornar o bairro menos habitável; tudo isso é muito ruim, mas a coisa é bem pior.

            Foi-se a época em que políticos viviam em bairros nobres, estes também já sofrendo com a negligência, aonde o cidadão do bairro mais afastado e desassistido poderia ir para tirar satisfações. Casas luxuosas, amplas, com vastos quintais e as melhores empresas do país a poucos minutos, prontas para atender a qualquer hora; mas todas essas casas em logradouros públicos, ao alcance do mais humilde dos cidadãos. É aqui que entra a sedução de uma cidade privativa com muros e total restrição de acesso. Aquela conversa de o político eleito simplesmente sumir após o pleito, agora é literal. Não bastasse os eleitos se refugiarem na bolha artificial de seus condomínios, os primeiros escalões do poder público também o fazem, e o cidadão passa a só ter acesso aos baixos escalões, muitas vezes apenas ao de base, que simplesmente não têm autonomia para fazer muita coisa, mas estão expostos e de mãos matadas à indignação do contribuinte. Os carros que os figurões usam mal os deixa sentir as ondulações do asfalto mal cuidado, e alguns deles sequer usa as ruas para se deslocar; notaram como ficou comum ver dois ou mais helicópteros ao mesmo tempo? Eles se esmeraram e realmente conseguiram se isolar do mundo real, e dos problemas que eles mesmos causaram.

            Não sei em suas cidades, mas os bairros centrais e mais nobres de Goiânia, antes jóias que rendiam photos e suspiros, estão se degradando a olhos vistos. Eles não vão investir de verdade em lugares que não freqüentam, não se não forem persuadidos a isso, mesmo que seja um bairro de mais abastados. O máximo que fazem é remendar o asfalto, passar tinta rala nas guias de calçadas, roçar a grama e trocar algumas lâmpadas. Em época de eleições a coisa muda, mas não muito, porque tudo é feito com economia, para não durar muito mais do que os últimos meses do ano. O Marista, que já foi o sonho de loteria do goianiense, perdeu o brilho. Fora algumas ilhas residenciais, que lutam bravamente para manter o nível do setor, a urgência de outrora não existe mais no atendimento às demandas do morador; calçadas mal conservadas já dão um ar de decadência à jóia da cidade, com isso o interesse do próprio morador pelo bairro diminui. Mas é claro que no condomínio fechado do doutor excelência está tudo bem! Até o paço municipal é hoje um lugar quase inacessível ao trabalhador comum, que não pode simplesmente deixar de trabalhar um dia para viajar até lá.

            Se o bairro mais nobre da cidade está relegado, o centro, que foi concebido para ser habitado por funcionários públicos, está se tornando uma gigantesca boca de fumo. As intervenções feitas o foram para atender aos anseios políticos ou dogmas ideológicos dos últimos prefeitos, como derrubar centenas de árvores do largo canteiro central da Paranaíba para fazer um circo, que não resolveu nem de longe  o problema dos ambulantes, como se propunha na época. O famigerado BRT, que teve obras interrompidas várias e longas vezes, pelo judiciário, e já consumiu o suficiente para uma linha de metrô, este pelo qual esperamos há mais de trinta anos, ainda gera transtornos para os comerciantes e os já poucos moradores do centro. Enquanto prédios históricos ao longo da Avenida Goiás caem aos pedaços, alguns já demolidos para dar lugar a prédios feios de atacadistas shing ling, e os muitos vazios permanecem sem solução, a tal obra permanece como um buraco negro espaguetificando o erário. Há ainda muitas casinhas dos anos 1940 e 1950 em ilhas que ainda têm relativo sossego, mas a pressão é grande... e sair à calçada à noite para conversar com os vizinhos, está fora de questão. Mas na bolha de realidade paralela do excelentíssimo pomposo ninguém reclama da vida.

            O caso mais antigo e agora escancarado, é o de Campinas. Várias casas históricas foram demolidas e viraram estacionamentos idiotas para sacoleiros, ajudando a piorar muito o já pesado e traumático trânsito em ruas que foram dimensionadas para carroças. Os tais sacoleiros fazem um pandemônio no trânsito, parando seus carros NO MEIO da rua e ameaçando quem achar ruim. Muitas dessas casas eram do mais puro e autêntico art déco, uma delas ainda era art nouveau... É que Campinas já era uma cidade centenária, quando Goiânia foi fundada, com o tempo a capital cresceu e anexou, transformando a cidade em bairro. Ainda houve a abertura de saídas directas para a perimetral, que é uma pista dupla com tráfego intenso de imensos ônibus e caminhões com cargas gigantescas, ambos se utilizam do frágil asfalto de nossas ruas estreitas. Cheguei aqui em 1992, quando as mãos de trânsito ainda eram ao contrário, havia muitas pequenas vendas servindo a população e era seguro perambular pelas ruas, mas na época os problemas de esgoto já eram famosos, e não melhoraram nesse meio tempo. Aqueles que moram em mundos paralelos e só se deslocam por via aérea, mesmo sabendo do destino de casas históricas, fizeram-se de desentendidos e não puseram o assunto em pauta até TODAS estarem no chão. Mas nos paraísos fajutos do olimpo caipira ninguém ouviu um tijolo cair... vão todos para Miami quando querem ver art déco.

            Agora, quanto aos bairros mais afastados, que não faz muito tempo que conheceram o asfalto, e alguns ainda nem isso, vocês podem imaginar o regaço em que estão. O Jardim Novo Mundo ainda hoje carrega o estigma que NINGUÉM se preocupou em pelo menos atenuar. A falta do metrô trens urbanos se sente muito mais nesses lugares, muitos deles resultados de invasões que foram toleradas e negligenciadas por interesses eleitorais, e depois legalizados sem a mínima condição de receber infraestrutura decente... que nem bairros mais centrais têm, mas vá lá. E a quem reclamar? Ao judiciário que passa um traficante na frente de mais de 1400 pedidos de habeas corpus sem se importar com os precedentes? Seus membros também não moram mais nas cidades há muito tempo! O que era uma idéia para suplementar a infraestrutura, trazer conforto interiorano a quem se dispusesse a manter, tornou-se uma barreira física e sólida entre o poder público e quem o sustenta.

22/09/2020

O lado B dos civilizados

 

Tóquio

            A despeito de toda a admiração que se possa, e se deva ter por povos mais civilizados, é pertinente ressaltar que a utopia é um prato que alguém já pagou; nada é grátis. Quando esse alguém cessa a subvenção e por qualquer motivo não se encontra outro à altura, a utopia deixa de ser uma flor aprazível e se revela uma planta carnívora. Vamos deixar claro a diferença entre “mágica” e “ilusionismo”; a mágica faz milagres com o que se tem, potencializando e optimizando de tal forma os recursos, que permite a um pé rapado fazer com suas mãos o que nem todo magnata conseguiria fazer com toda a sua fortuna aplicada; ilusionismo pressupõe pegar o nada, dele fazer o tudo e a este dar duração eterna, transformando uma casquinha de sorvete em cornucópia… pois é a este que os defensores de utopias se apegam, criando um universo paralelo onde até as leis da física mudam, onde até a velocidade da luz é relativa, apenas para dar suporte aos seus anseios. Neste universo paralelo eles são os mestres, mesmo que mal saibam amarrar os próprios cadarços no mundo real, por isso só aceitam conversar sob as leis desse universo.

 

            Uma das regras sacras e mais furadas desses defensores é a de que existe uma sociedade justa com um sistema justo suprindo todas as necessidades do cidadão, claro que problemas existem, nada é perfeito, mas juntos avançaremos mais e mais para um país mais próspero e humano. Usar de bordões empolgantes e inflar o entusiasmo faz parte dessa defesa, por isso os jovens são tão vulneráveis a essas idéias. Se enchendo dessas idéias, se aprofundando nelas e em suas meias-verdades, esses jovens acabam se levando demasiadamente a sério e se considerando um cientista, vendo os outros como ignorantes e esfregando na cara de qualquer discordante o “embasamento” de suas convicções; não basta tê-las, é preciso impô-las. Já falei disso e de tantos outros temas correlatos, mas praticamente nada mudou verdadeiramente de 2006 para cá, e um vídeo triste de 2015 mostrou-me o apocalipse individual que já acontece há muito tempo, mas que essa empolgação pueril pelas civilizações civilizadas prima censurar a qualquer custo. Sistemas e sociedades e sistemas são como máquinas virtuais coletivas, máquinas não tem a menor obrigação de serem boas, têm obrigação de funcionar a contento e, sempre que necessário, a toda velocidade, mesmo que alguém seja atropelado. Ser bom e justo é papel das pessoas, não de entidades burocráticas.

 

            Começo falando de um dos piores equívocos, e que mais frustram emigrantes pelo mundo, o de que em países “civilizados, evoluídos e bem desenvolvidos” a sociedade por si já supre suas necessidades ou, pelo menos te garante o acesso aos meios de supri-las; e aqui se confunde necessidade com aspiração e desejo. Não me refiro a ditaduras, me aterei a países que são satisfatoriamente democráticos. Para se conseguir uma colocação digna, por mais fácil que seja, é preciso sair à rua e ouvir um “não temos vagas” atrás do outro. Pode ser rápido? Sim, pode, até no Brasil sei de casos em que a procura foi mais efêmera do que o seguro-desemprego, mesmo em épocas de recessão, mas são exceções. Ter suas reservas e fazer economia de guerra atenuam os efeitos do desemprego, mas muita gente quer manter um padrão próximo, ou até igual ao de que desfrutava quando estava empregada. Assim não adiantam seguro social e bicos esporádicos, a situação financeira vai se deteriorar mais rápido do que os sortudos conseguem uma recolocação. O pensamento de que se está em um “sistema justo de uma sociedade evoluída” deixa rapidamente de ser um tranqüilizante para se tornar um desespero, não raro acompanhado de revolta pelo sentimento de exclusão. É quando o indivíduo descobre o quanto é caro manter toda aquela infraestrutura.

 

            Para as pessoas ao redor, à amiúde imersas em seus próprios problemas, fica a impressão de que aquele problema é só seu e que tu vais, cedo ou tarde, retomar sua vida normal; boa parte do que chamamos de egoísmo se baseia nisso, na certeza inconsciente de que tudo vai se resolver por si ou que alguma entidade virá em seu socorro. Nesta certeza, em conjunto com narrativas de pessoas rudes com quem tenta ajudar, o cidadão comum prefere não se aproximar e não se inteirar dos seus dramas; aos poucos a indiferença se torna um casulo protetor de que as pessoas não abrem mais mão. Não é só em países violentos como o nosso que existe medo social, ele existe em toda parte e por diversos motivos, este é só um deles. Ainda pesa especialmente entre os jovens, o anseio por liberdade e de cortar os laços familiares, para finalmente sentir-se dono de sua própria vida; uma das mais belas meias-verdades cantadas pelos idealistas. Esse topete atrapalha muito, porque o indivíduo não percebe a mensagem corporal que transmite, isso pode ser uma pá de cal em qualquer entrevista para emprego, pode ser até mesmo para quem decide trabalhar por conta própria. Com esse anseio por liberdade, a necessidade de viver bem pode ficar em segundo plano; assevero que não são incompatíveis, pelo contrário, mas humildade e planejamento são fundamentais na vida adulta, que pode chegar antes da fase adulta. Muita gente, mas muita gente mesmo tapa o sol da necessidade com a peneira dos desejos, não só por prazeres físicos, e vai levando a vida assim até quando der; não é raro dar em suicídio.


            Acreditar piamente que se vive em um país quase perfeito, com problemas pontuais e nos quais ninguém de fora deve se meter, ajuda a pressionar o indivíduo. Qualquer sinal de insatisfação é tratado como ingratidão, pois bilhões de pessoas pelo mundo passam fome e ele tem tudo o que quer. A reprimenda tem sua validade, mas não para todos os casos. Não é só de fome que se chora, não somos cactos, precisamos de mais do que água e nutrientes para viver. Uma das drogas mais utilizadas para atenuar essa deficiência é apontar o dedo para os outros países, que não são tão conscientes e limpos, por isso não estão fazendo sua parte para salvar o mundo, assim a causa da infelicidade não é ter trocado suas necessidades por desejos, é a existência de pessoas que não correspondem ao seu idealismo; vejam, meu país é um paraíso, um exemplo e paradigma para toda a humanidade, por que vocês simplesmente não nos imitam e páram de destruir nossos sonhos? O facto de se ter pós-doutorados não torna ninguém imune a isso, intelectualidade não é vacina contra males da psique.

 

            Aliás, esses países são campeões em auto assassinato. Para quem tem um mínimo de recursos, tudo é muito fácil. Comida é muito fácil, diversão é muito fácil, sexo é muito fácil, droga é muito fácil, pular na frente do trem é muito fácil… A facilidade é uma ajuda valiosa para quem está fragilizado, mas para quem está em boas condições gerais ela é um ópio de ação limitada, aos poucos deixa de fazer efeito e aquele que tiver feito da satisfação de desejos o norte de sua vida, perde facilmente o sentido de viver. Uma estrutura perfeita, com uma civilização perfeita, proporcionando uma vida perfeita em uma ilusão perfeita, cujo desvanecimento mostra o imenso espaço vazio onde deveria haver uma coleção de experiências de vida, que dariam suporte à subsistência e aos planos para anos seguintes. Não é à toa que cidades grandes, com vida noturna mais frenética, concentram o grosso dos casos registrados. Em países nórdicos, e do extremo oriente, isso nem sempre é notícia porque já faz parte da rotina, e porque a indiferença cumpre bem seu papel de casulo protetor. Ah, claro, quando há uma notícia vinda de muito longe, a hipermetropia que esse casulo causa logo eriça pêlos, fazendo parecer que os problemas próximos simplesmente não existem. Isso que tanta gente chama de pieguice, foi o que garantiu a sobrevivência da espécie na pré-história, e teria garantido a de tantas crianças que se mataram por não terem a quem ou não conseguirem chorar e pedir por socorro.

 

            Essa indiferença não está apenas na sociedade externa, a família geralmente não vê a hora de se livrar dos filhos, que não são mais aqueles bebês fofinhos e fedorentos, mas tão aprazíveis que a lei os obrigou a criar até terem idade para se virarem sozinhos, e isso pode ocorrer antes da maioridade. Fazem questão de que o já petiz não se sinta tão à vontade dentro de casa, tratando-o como uma mudinha que será plantada muito longe do viveiro; a cobrança pelo suprimento de suas necessidades básicas pode fazer parte do longo e doloroso ritual de expulsão. Confiantes de que o adolescente vai conseguir se virar, os genitores viram as costas assim que ele põe os pés para fora, e não raro nunca mais querem notícias. Adolescente sozinho é uma mina terrestre. Se cedo morrer, morreu, talvez nem saibam se e quando isso acontecer. Os laços familiares, que em muitos casos poderiam ser a única ligação com a subsistência, são consideravelmente frágeis nesses países. Tão frágeis que deixam de existir na primeira esquina virada. Aos poucos aquela imagem photográfica na estante perde não só a cor, mas também o nome de quem ninguém se lembra mais quem é... ou era. Qualquer ensaio de culpa pelo feito ou sentimento de responsabilidade para com o indivíduo, é prontamente sufocado pela narrativa das oportunidades fartas e do bem estar social garantido. Garantido, meus queridos, só o óbito.


            Quando o subconsciente começa a perguntar o que tu estás fazendo aí, é o sinal amarelo para prestar atenção ao redor e se certificar de que aquele lugar é ou não adequado à tua natureza. Infelizmente ele não consegue falar muito alto, nos primeiros momentos, precisa de prática e observação para conseguir gritar, até lá a propaganda do falso frugal te convence de que 2m² bastam para morar, que a vida deve ser vivida lá fora, e que qualquer coisa além é ostentação ofensiva à sociedade civilizada e inclusiva; não importa a tua real necessidade de espaço, aquilo é obrigatoriamente o bastante e ponto final. O lar é o convívio social civilizado e desenvolvido do sistema justo e solidário, que está se lixando para suas necessidades íntimas, quer é te enfiar facilidades e prazeres, dando conforto moral mesmo que às custas de destruir seu corpo e seu psicológico. Eles acreditam ser livres, precisam acreditar nisso, mesmo vivendo numa gaiola psicológica que os mantém à parte dos próprios sangramentos. Quando a propaganda começa a perder efeito, os gritos do subconsciente ficam cada vez mais altos e não há para onde escapar, ou os ouve ou enlouquece. O abuso crescente de ansiolíticos não deixa dúvidas sobre o que mais acontece.


            Corrobora para esse quadro de declínio humano, o gigantismo de muitas cidades contemporâneas, que é acompanhado pela indiferença não muito menor para com o indivíduo. Para onde quer que se olhe há faces, tão somente faces sem rostos, falas sem vozes, expressões sem sentimentos, agasalhos sem calor. Todos são estranhos, mesmo aqueles que se conhecem há muito tempo. Ninguém quer conviver com o próximo, quer simplesmente usufruir das experiências que o outro puder oferecer, em um vampirismo mútuo e cada vez amis intenso. Tudo o que essas pessoas poderiam oferecer de bom, quando o fazem, é dedicado à privacidade pública das redes sociais, onde escancaram seus pedidos de socorro nos anseios não realizados dos desejos satisfeitos em photos, vídeos, gifs e toda essa parafernália virtual. Daí o sucesso que faz cada plataforma de compartilhamento que parece ser diferente, mais prática e descolada do que as anteriores. Cobram de si mesmos aproveitar o dia em cada segundo das distrações que seu país desenvolvido e civilizado pode oferecer, evitando ao máximo olhar para dentro e ver o que seu próprio cabedal tem a oferecer, porque isso implicaria em encarar também os gritos de dor e socorro abafados com o tempo. Sabem aquela máxima de que o palhaço é um homem triste? Ela é real. Via de regra, ninguém expressa a contento uma necessidade satisfeita, só se consegue expressar o que lhe falta, e tanto melhor quanto mais falta fizer.


            Tal como o bom palhaço, o jovem, solto num mundo cheio de prazeres e nenhuma alegria, perde paulatinamente o interesse pela própria vida. A maioria, com uma coragem de fazer inveja aos melhores combatentes, enfrenta a tendência crescente ao suicídio se segurando só por mais um dia, só por mais esta vez, ainda que recorrendo e ingerindo distrações menos perigosas, álcool e fumo entre elas. Claro que isso tem um preço, transtornos mentais não são exclusivos dos azarados que nascem com eles. E a resistência destes faz seus governos inflarem as estatísticas de bem estar e prosperidade, acompanhando com a retórica confortável de que seu povo é desapegado de bens materiais, quando na verdade está é se lixando para tudo e para todos, inclusive cada um para si mesmo. Mas é uma retórica confortável, faz a vida parecer que tem sentido, então vestem carapuças em que não cabem suas cabeças. Quando a carapuça se rasga, pela insistência em vestir, as expectativas não correspondidas cobram o preço de terem sido chamadas em vão.


            Do lado de cá, um exército de alienados memorizadores de frases alheias repede ad aeternum o que manda a cartilha, muitas vezes atribuindo seus próprios ideais aos povos que julgam ser o apogeu da civilização, mesmo que esses povos rejeitem tais ideais; vocês não vão gostar de ser um norueguês furioso, ao ouvir "fale da experiência socialista no seu país" de um desses memorizadores, é uma das poucas coisas que já soube fazê-los sair do sério. Eles sofrem do mesmo mal que os outros, mas apontando o dedo acusatório para o próprio país  e sonhando com a vida fácil, farta e gratuita de outras paragens. Não por coincidência, a maioria mora em grandes cidades e padece dos mesmos males de quem falei agora, só que em um país muito imperfeito, o que só alimenta tudo isso. Repetem para si mesmos que são livres, bem resolvidos, com senso crítico aguçado, que os outros são a causa de suas frustrações e depressões. E uma vez que a maioria desses países civilizados não admite suas reais mazelas, a narrativa de "eu sou livre", mesmo dentro de uma gaiola bem intencionada, se sustenta.


04/09/2020

A cromagem

 

Cadillac 1959, tem mais cromo na grade do que em um carro moderno inteiro

Um texto curtinho e bem antigo que esqueci em meus arquivos.


Revestir metais para preservá-los da corrosão atmosférica é tão importante, que muitos projectos reservam espaços exclusivos para o assunto.

No caso de peças automotivas há dois processos principais, além da pintura: Galvanostegia, que é o revestimento puramente funcional, como a zincagem, e a galvanoplastia, que envolve critérios estéticos. Em ambas os princípios são os mesmos, mergulha-se a peça já preparada em um tanque com um solvente contendo o material do revestimento, aplica-se uma corrente de baixa voltagem e alta amperagem, e em segundos ela estará revestida. É muito rápido. É um processo inverso ao das baterias, onde o ácido ou base (caso das alcalinas) gera corrosão para produzir energia. Uma eletrólise.

Mas a diferença não é só estética, a galvanoplastia é bem mais cara e, muitas vezes, mais durável.

A cromeação é a galvanoplastia mais utilizada nos automóveis ainda hoje. Além da beleza prateada, é um tratamento durável e resistente, desde que bem feito. O Cromo é um metal extremamente duro e bem resistente, capaz de cortar o vidro.

Como se processa, resumidamente:

 

  • A peça é limpa ou decapada, se já tiver algum revestimento;
  • Lavagem e retirada de todo e qualquer foco de gordura ou qualquer impureza;
  • Cobreação, primeiro com solução alcalina, seguida de lavagem, neutralização da base utilizada e então a cobreação ácida. Neste momento o operador aproveita para corrigir qualquer imperfeição que persista, deixando a peça lisa e uniforme;
  • Niquelagem. O processo é o mesmo da cobreação ácida, e em muitos casos é a última etapa, mas o Níquel tem a desvantagem de ser muito macio e se desgastar com facilidade, em relação ao Cromo, por isto nos automóveis vem a etapa seguinte;
  • Cromeação. Repetindo o processo, o operador tem o cálculo de quanto tempo a peça ficará imersa, sob corrente de alta amperagem, o que definirá quanto cromo será depositado e, assim, a espessura da camada;
  • Nova lavagem, com posterior polimento. Embora pareça o fim, a peça deve ser inspecionada meticulosamente, explicarei o porque...

 

Um calcanhar de Aquiles deste processo é a necessidade de um controle de qualidade muito severo. Enquanto uma camada de tinta adere como cola e quase sempre absorve resquícios de poeira e gordura, a galvanostegia não admite nada. Um dedo distraído pode deixar gordura suficiente para produzir um ponto de fragilidade, que com o tempo vai rachar, descascar e adeus grana aplicada na cromeação. Ainda lembrando a dureza do Cromo, um descascado pode causar ferimentos profundos, já fui vítima de um.

Como escolher a cromeadora?

Da mesma forma como se escolhe a maternidade que fará um parto de risco. Deve-se estar atento aos mínimos detalhes, desde a limpeza do ambiente, aos equipamentos disponíveis até a limpeza dos funcionários.

Seguir a regra de que a empresa terá com a sua encomenda o mesmo tratamento que dá às suas instalações. Há ganchos que mantém a peça suspensa na solução que lhe cederá o revestimento, eles precisam estar limpos para não haver contaminação. Não digo “brilhando”, mas sem crostas e sem borras. Em muitas cromeadoras os próprios tanques de eletrólise passam toda a vida útil sem ver água, pode-se fazer idéia do nível de contaminação das peças que saem de lá.

Funcionários sem E.P.Is (equipamento de proteção individual) mostram duas cousas: os mesmos não dão a mínima para a própria segurança e acham que “macheza” os torna à prova de intoxicação; ou o dono da empresa não dá a mínima para seus funcionários e economizaria até na iluminação, se eles não precisassem ver o que estão fazendo. Em ambos os casos, que costumam andar juntos, a empresa não se importa em fazer um serviço porco e acha que a clientela se cativa só pelo preço. Já pensou ter que refazer todos os cromados de um Cadillac 1959?

A fachada não absolve, mas ajuda na imagem da empresa. Ter gente disponível para atender, com um mínimo de conhecimento no ramo, denota a capacitação do pessoal que faz os revestimentos. Ter álbuns ou folhetos com imagens, de boa qualidade, de serviços já feitos avaliza e dá mostras de profissionalismo. Peça para dar uma olhada no andamento dos serviços, uma empresa séria e competente não negará a visita, lhe dará seu E.P.I e mostrará as instalações. Acreditem, a maioria dos trabalhadores da área não é profissionalizada, é gente que memorizou procedimentos básicos e não consegue sair um milímetro daquilo, se acontecer algum problema ele fica na peça. Por que contractam gente sem formação? Porque é muito mais barata e fácil de substituir.

Tente contactar quem já utilizou os serviços da empresa, preferencialmente em automóveis, especialmente antigos, onde a qualidade da cromeação geralmente é melhor. Mas se a empresa for nova, leve uma peça pequena, de pouca responsabilidade, para ver a qualidade, depois use sem dó por alguns meses, ou até aparecer o primeiro defeito, o que vier primeiro.

A capacitação se deve, principalmente, aos cálculos envolvidos, que levam em conta o peso atômico, o número atômico, o equivalente molar, et cetera. Não é para qualquer cabeça, é necessário estar habituado aos cálculos. Um volt a mais é desperdício de energia, porque a voltagem necessária para tirar um átomo de um composto é própria do mesmo, muita tensão só aumenta o risco de curto. Um volt a menos é desperdício de energia, porque ele não sai por menos do que merece, se vai gastar electricidade para não se obter resultado algum. Pode mandar amperagem à vontade, abaixo da voltagem certa, o íon não se torna metal.

Não menos importante: EXIJA O ALVARÁ SANITÁRIO ACTUALIZADO E A AUTORIZAÇÃO DE FUNCIONAMENTO EMITIDA PELA ANVISA. O material utilizado é altamente tóxico e precisa ser neutralizado antes do descarte. Ainda não se criou uma cromeação legítima que dispense totalmente as técnicas antigas. Ainda.

O que pode ser cromado?

Se conduzir electricidade, praticamente tudo. Desde um ilhós de roupa até um monobloco inteiro.

Devo lembrar, porém, que a galvanoplastia é uma técnica relativamente cara, inclusive a cromeação, que usa comodidities muito valorizados no mercado financeiro, como o Cobre, Níquel e o próprio Cromo, estes dois muito empregados em aços inoxidáveis, cuja demanda cresce a cada dia. O que justifica a cromeação é a grande resistência ao tempo e às intempéries, o que se comprova em carros nos quais a pintura já era e os cromados permanecem intactos. A não ser que o teu dinheiro esteja sobrando, é salutar analisar se vale à pena comprar o serviço. Na restauração de carros antigos é batata, vale à pena, pois além da originalidade, os componentes antigos foram dimensionados para a cromeação, não dispõe de tratamento sofisticado contra a corrosão. Aliás, é por isto que as fábricas se dão ao luxo de fazer carros com folhas finas de aço, confiam no processo anti-corrosão pelo qual a carroceria passa durante a fabricação. Se vão resistir aos anos de trabalho árduo é outra história, corrosão eles enfrentam bem, desde que não sofram acidentes feios.

Plásticos também se cromeiam, mais freqüentemente o ABS, por ter boa dureza superficial e estabilidade térmica; os plásticos são notórios por dilatarem e encolherem muito com a variação de temperatura, que o digam donos de Volks com painel imitando jacarandá. O ABS tem boa estabilidade e preço razoável, mas não é muito resistente, eu incluiria o PVC (sim, aquele dos tubos) por também ter boa estabilidade dimensional, e ser muito resistente, permitindo até usos estruturais, além de não ser tão liso quanto o ABS, facilitando a adesão de uma película condutora que permitirá a cromeação. Além do mais, o PVC é 57% feito de cloro da água do mar, é melhor até no contexto ecológico. Cito o exemplo porque a grande maioria afirma que somente o ABS poderia ser cromado com um mínimo de qualidade, mas a prática me mostrou o contrário, basta uma camada de grafite de lápis, daquelas manchas chatas que só saem com água e sabão, para o Cobre aderir e por aí vai.

Cuidados;

Quase todos os cuidados necessários à conservação da pintura do carro devem ser aplicados aos cromados. Não usar esponja de aço, não usar ácidos nem bases que muitos vedem sem registro na ANVISA, não usar qualquer abrasivo. Mas pode ser deixado ao sol e à chuva sem problema, ele é insensível ao tempo. Uma curiosidade, é que o ácido sulfúrico corrói rapidamente um cromado, ao passo que o clorídrico, popular ácido muriático, muito mais reativo, o corrói lentamente. Lave o cromado com água e sabão neutro, usando uma esponja macia. Cromados são electrodeposições de um metal de alta dureza, não pinturas brilhantes, se riscar é muito difícil consertar só a área atingida. Pode-se usar cera automotiva com silicone, cera de carnaúba, mas fique longe de productos que são vendidos por aí sem rótulos claros e bem escritos em português.

O que há de novo?

Existem no mercado algumas tintas que prometem imitar com perfeição o cromo, algumas são mais honestas e prometem a partir de 70% do brilho do cromado. Sabe aqueles brinquedos com aspecto de cromado? Eles usam a tinta mais barata, sem muitos cuidados e, claro, rapidamente perdem o brilho.

As tintas boas são caras, bem menos que a cromeação por Cromo hexavalente (a cromeação clássica), mas ainda assim são caras em relação às tintas metálicas comuns. Têm boa durabilidade, brilho muito próximo ao do Cromo e dispensam a parafernália necessária ao controle de toda a química perigosa de uma cromeação eletrolítica. Prometem uma pintura dura e resistente, de onde imagino que há cromo na composição das melhores. A Bugatti usa uma assim.

Há técnicas de metalização que permitem colorir o revestimento, dando um efeito que as tintas metálicas não conseguem e permitindo uma composição sem par com vernizes metacromáticos (efeito camaleão) e flocados. Mas é conversa para customizadores e afins.

Não seria mais fácil derreter o cromo sobre a peça?

Levando em conta que os melhores aços-carbono se fundem antes de 1400 °C e o Cromo não antes de 1900 °C, não, não seria uma boa idéia. Ainda que se usasse um metal com ponto de fusão mais alto como Molibdênio, Vanádio ou Tungstênio, que são altamente resistentes à corrosão e não precisariam ser cromados, o revestimento ficaria com espessuras bastante desiguais. Dependendo do formato e das dimensões da peça, ficaria uma caca sem tamanho. Revestimento por fusão é muito bom para chocolates, não para metais... Talvez em uma ourivesaria.

27/08/2020

Zezinho e a pandenóia

 

                                                                           Norman Rockwell

       Zezinho se senta à mesa da lanchonete em que é cliente desde, bem, desde que era pequeno, porque criança ele ainda é. Aguarda com a paciência que seus maduros oito anos lhe ensinaram a ter, mas da qual é bom não abusar, até vir o milkshake de chocolate com mel. A garçonete asperge um pouco de álcool no tampo de madeira reaproveitada, ele faz aquela cara de quem quer acender um isqueiro, ela põe a taça na mesa e ele se acalma, então saca o canudo que cedo ou tarde vai virar peça de algum brinquedo que ele mesmo fará, põe uma ponta na bebida e tira com cuidado sua máscara com a frente malvada do Cadillac 59 estampada, suga o primeiro gole e então fica feliz… mas por pouco tempo. Logo ouve o som insistente e irritante daquele esguicho fazendo “fish! fish! fish” logo atrás, se vira e vê um sujeito atarracado insistindo para o garçom borrifar várias vezes cada milímetro da mesa, repetindo “tem certeza de que matou o vírus?” ou “acho que ele pode se esconder numa fresta e pular, olha ali”, continuando com “ALI! O VAPOR DO ÁLCOOL NÃO ENTROU ALI!!!!” até empestear todo o ambiente com vapores etílicos. É um custo acalmá-lo quando alguém abre uma janela para dispersar o cheiro, ele alega que os vírus vão entrar.


        Na mesa ao lado uma adolescente tira e põe a máscara a todo momento, para comer o sanduíche, no final das contas a máscara fica com as bordas cheias de maionese, ketchup, mostarda e sazón, mas não tem problema, ela encharca com álcool e acende o isqueiro, então tira uma nova da bolsa, de dentro de um saquinho esterilizado e faz tudo de novo. Na mesa ao fundo alguém conseguiu uma máscara articulada, que se abre com a boca em um efeito medonho, mas funciona na hora de comer o sorvete, apenas tem o cuidado de ninguém mais perceber, para não ser politicamente incorrecta em tempos de enfrentamento da pandemia causada pela Covid 19 do Novo Coronavírus. Ao balcão um rapaz asperge álcool em cada ingrediente do sanduíche, esperando evaporar e aspergindo de novo, vai que o vírus ressuscita, nunca se sabe; o gosto horrível que fica é um preço módico na luta total contra a pandemia da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus! Diga não à contaminação!


        Uma adolescente com roupas desengrenhadas, também borrifando um álcool de cheiro estranho, com uma máscara com folhas de canabis, chega apontando o dedo para ele, acusando-o de ser o assassino da fauna marinha, por causa do canudo. Ele responde educadamente que reutiliza e recicla, que não se pauta pelo mau comportamento público do brasileiro, mas ela continua com seu discurso exaltado exigindo que ele use um canudo de aço inoxidável, ouvindo “Que consome megawatts de energia para ser produzido e é embalado com plástico suficiente pra produzir uns vinte canudos”. O discurso de abolição dos polímeros dura até ele apontar em suas roupas e na tintura de cabelo a quantidade de plásticos que ela usa. Sem se dar por vencida, alega que quela é a verdade dele contra a verdade dela, no que ouve “Eu não sou Deus, minha opinião não vira Cadillac 59 só porque eu quero, então eu não chamo isso de verdade, o mesmo pra sua”. Ela simplesmente tenta pegar o canudo, ele passa o dedo na língua e passa no ombro dela, que corre desesperada tentando se desinfectar. Zezinho suspira, lamenta, pensa “este lugar já foi melhor freqüentado” e volta ao seu lanche.


        Entra um sujeito franzino de óculos, portando uma cara de pesca bem longa. Ele evita tocar e ser tocado, parece que flutuaria para não tocar o chão, se pudesse. De máscara, protetor de rosto, boné, mangas longas, bota de cano alto sobre as calças e luvas, ele chega ao balcão pedindo o que tinha encomendado, com o dinheiro no anzol com uma caixinha estranha logo acima. O balconista pega o dinheiro, confere e pendura a marmita, caixinha libera álcool aspergido e o cidadão vai embora como se fosse derreter ao menor contacto. Deixa cair uma nota de cem, mas prefere sair sem tocá-la, já está contaminada com vírus, bactérias, bacilos, retrovírus, adenovírus, amebas, parasitas, fungos tóxicos, síndromes e atestados de óbito prévios. A faxineira varre a nota para dentro da área de funcionários e some, abandonado não é roubado.


        Suspira fundo e tenta se concentrar em seu acepipe preferido. Volta à sua solidão voluntária para saborear lentamente o milkshake, uma sugada de cada vez, ouvindo baixo o tema principal do Super Homem. Eis que aquele homem atarracado decide ir ao banheiro e borrifa tudo por onde passa, inclusive Zezinho, que se indigna e tem “Cala boca que cê tá errado, a pandemia existe e o corona mata sim! E põe essa máscara senão te denuncio”. Zezinho pensa “Dou um boi pra não entrar numa briga” e aguarda. Quando o sujeito volta, finge que espirra e o deixa desesperado, se borrifando até tomar um banho de álcool, reclamando de tudo e borrifando mais a mesa que usa. Olha para Zezinho e borrifa no milkshake dele também, no que o garoto pensa “mas nem uma boiada me tira dela”. Chama a garçonete, pisca e diz “Vocês limparam a parte de baixo das mesas?” e o desaforado fica de butuca. Ele olha por debaixo do tampo e vê tudo seco, então começa a borrifar e Zezinho continua “Sabia que algumas bactérias estão ficando resistentes ao álcool?” e ele começa a jogar goles de álcool sob a mesa, vê suas mãos empoeiradas e as encharca também, borrifa nos braços e vai subindo até chegar à camisa, logo tem mais álcool nele do que no tanque do Opala do pai de Zezinho, que pede outro milkshake a assiste a tudo com olhar de triunfo.


        Chega o milkshake novo e o desaforado já foi embora, com medo de contrair câncer de escamas. Agora ele põe Silêncio de Beethoven em baixo volume e saboreia seu lanche. Olha com carinho para a bebida, quando vê um ponto vermelho sobre a mesa se movendo rapidamente na sua direção, olha para frente e vê uma mulher com um termômetro infravermelho. Ela testa sua temperatura e depois sai pela lanchonete testando todo mundo, testa até a dos banquinhos, para se certificar de que foram higienizados, pela temperatura mais baixa. Senta-se de termômetro empunhado, como se fosse uma arma, encarando todo mundo. Ele pensa “Não, isso não está acontecendo”, funga um pouco e volta a sugar, então vê aquele ponto de laser de novo sobre sua mesa e diz “Moça, estou tomando um milkshake, posso? É bebida gelada, claro que a mesa e eu estamos mais frios”. Ela faz seu pedido, mas ainda o encarando, como se o que ele disse fosse uma confissão de ilícito, Zezinho suspira e completa “Moça, essa coisa aí mede a temperatura, mas não informa a causa! Se eu estivesse contaminado, isso não daria um teste diagnóstico, e também não mede a temperatura de vírus e bactérias! Tô falando aqui e um monte de micro-organismos (prestou atenção às aulas de ciências) tá saindo pela minha boca de caçapa, do mesmo jeito que saem do seu nariz de tartaruga ninja quando espira! E eles estão vivos”. Ela pára, pensa, olha o salão e começa a ver germes gigantes se avolumando nas mesas e no balcão, se desespera e sai correndo. Zezinho vê a banana split que ela nem tocou, olha para o balconista, pensa na própria mesada e assume a conta, pede que a traga. Pensa também em seu trato digestivo ao ter que ingerir tudo aquilo.


        Entra no recinto uma figura alva e esguia com seus curtos cabelinhos louros estilo Joãozinho, com seus olhos verdes serelepes vasculhando o ambiente. A máscara com logos da Varig não esconde a identidade da menina de óculos finos, que já está mais alta do que ele; é Mariazinha, por cuja simpatia recebeu muitos ataques e acusações de racismo. Ele se levanta bruscamente, chamando sua atenção e ataca “Mademoiselle, sua banana split já está paga” fazendo-a corar e rir daquele jeito que só ela sabe fazer. É a criatura por debaixo daquela adorável aparência que faz seu jovem coração reger rapsódias. Ela aceita o convite e ele, que esperava desfrutar de momentos de solidão, aceita de bom grado uma invasãozinha tão adorável. Falam com brevidade dos dissabores de hoje, que no caso dela vêm se arrastando pela semana. Suas jovens vidas têm recebido apresentações rudes e precoces do mundo adulto.


        Enquanto consomem seus acepipes e se acalmam no decorrer da conversa, aquele sujeito atarracado chega com um policial. Ele aponta para Zezinho e dispara “Ele não acredita que estejamos diante do enfrentamento da pandemia mundial da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus e que o distanciamento social seja uma prática avalizada pela Organização Mundial da Saúde para conter a onda de contaminações diante do novo normal”. O policial faz cara de “hein”, Mariazinha faz cara de “ã” e Zezinho faz cara de “PQP, QUE P@##@ É ESSA”. O acusador arreganha um sorriso de triunfo debaixo da máscara cheia de cerquilhas e palavras de ordem, certo de que haverá punição exemplar e será aclamado como herói da saúde pública, enquanto borrifa tudo ao redor, mas o policial retruca “mesmo que seja verdade, o que não me parece, o Brasil ainda não tem crime de opinião previsto em lei”. Ele fica indignado, a pressão sobe e o tom também, o que lhe rende uma prisão por ameaça e desacato, então Zezinho, com o canudo na boca para poder exibir o sorriso de quem riu por último, dá tchauzinho e volta à sua afável companhia.


        Eles trocam olhares e, de repente, uma bolha mágica os isola do resto do mundo e os dois aproveitam a solidão compartilhada em paz.

12/08/2020

Formiguinhas gringas pelo Brasil

 

Clara Nunes

            Dizia-se nos anos 1980 que o estrangeiro gostava mais do brasileiro do que o próprio brasileiro. Elke Maravilha ia além ao afirmar que, segundo seu pai, brasileiros não gostam uns dos outros. Tudo isso é verdade, seguramente não toda ela, mas é. Antes de culpar os outros países por isso, devemos lembrar qual é a educação que o brasileiro recebe desde a mais tenra idade, que inclui philosophias torpes bem exploradas por Machado de Assis. Uma delas é o tal “jeitinho”, que implica basicamente em burlar as regras de modo simpático, para que não pareça ser algo ruim, mas é. Outra é a máxima do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, na verdade isso se aplica mesmo quando sobra farinha, então muda-se para “a farinha é minha e ninguém tasca”, depois faz-se caridade dando migalhas aos outros, posando de bom samaritano. Tudo isso se reflete na política e na mídia, que não têm como agir sem o aval de seu público, mesmo que implícito ou involuntário, mas involuntário não significa fora de sintonia; colocar as lentes da religião, da ideologia, das convicções ou mesmo de meras opiniões com rótulo de “verdade” ajuda a aceitar aquela imagem horrorosa que está bem à frente, mas que as distorções ajudam a tornar no mínimo aceitável; às vezes fazendo a Sofia do Nazareno ter ares de Ava Gardner. O brasileiro tem orgulho de coisas absolutamente supérfluas, como futebol, ou mesmo erradas, mas não dá a mínima para o que seus compatriotas fazem de útil, como tecnologias altamente versáteis que saem de nossos laboratórios públicos e privados. Mas mesmo essa distorção de caráter pode ser desviada para algo bom, como a empatia.

 

            O mesmo vale para os orgulhos nacionais, para os quais o brasileiro de chinelo, regata made by slave e calção “abajur de quenga” bate no peito e exibe a banguela em um sorriso largo. Um deles, em uma relação de amor e ódio epático, é o SUS. Eu lamento informar, mas ele NUNCA foi pensado para atender a toda a população, ou não seria tão perverso na hora de conceder aposentadorias. Foi pensado para a propaganda estatal do governo fascista de Vargas, e acabou dando mais certo do que o esperado, ainda assim MUITO aquém do que seria necessário a uma rede de saúde totalmente financiada pelo erário, com alguns pontos de referência e excelência, utilizados para alimentar nossa fantasia de saúde pública. Sim, a idéia é boa, mas o conceito está longe de ser realmente bom, porque foi pensado para ser centralizado, sob as rédeas do ministro, com uma burocracia gigantesca que consome grande parte dos recursos. Entretanto, estando a população de acordo com o financiamento dessa saúde subsidiada, e foi aqui que Obama pecou crassamente com sua proposta em seu país, uma estritura descentralizada, enxuta e bem gerida de saúde pública é algo próximo do paraíso. Feitas consultas públicas para alterações importantes, mesmo que informais, algo expressamente proibido pelos idealizadores do serviço, bem como o estudo de boa vontade das queixas e sugestões populares, o SUS, ex INPS (para quê mudar nomes, senão para propaganda própria?) beneficiaria até quem não se utiliza dele.

 

            Ainda nos anos 1970, dizia-se que as porcarias enlatadas do estrangeiro sufocavam a música nacional, o que era mentira, pois na época os músicos eram quase deuses para seu público, eram explorados sim por outros brasileiros, que os amarravam em contractos sinistros que, em caso de saída do selo, praticamente impediam o artista de trabalhar. Daí nasceu o ECADE, que só serve para arrecadar e amarrar tanto a produção quanto a execução e a reprodução musical. Bem, hoje sabemos que podemos fazer lixos que fazem o lixo deles parecer música erudita, e se tornou mais um “orgulho nacional”, de gente que bate no peito para exaltar sua miséria generalizada, não importa quanto dinheiro tenha. Ah, claro, morar em áreas de risco, dominadas por facções criminosas, se submetendo a ser fantoche midiático desses grupos, também virou motivo para… orgulho… com quilômetros de discursos prolixos e cheios de referências para exaltar e eufemizar tudo isso… estão chamando gato selvagem de bichado geneticamente alternativo, como se isso tornasse seguro sua posse doméstica. Sejamos honestos de verdade, morros íngremes e desprovidos de infraestrutura não são lugares para pessoas viverem, e ninguém está (cof, cof) lutando para tirar aquelas pessoas de lá e realocá-las em lugares dignos, quem sabe até imóveis públicos não utilizados, simplesmente porque Elke estava certa, eles não se importam com essas pessoas, não dão a mínima para elas, estão se lixando até que uma tragédia aconteça e possam fazer palanque de seus caixões. O que isso tem a ver com a música ruim? Dê uma olhada nas letras de apologia ao baixo-ventre e à violência contra a polícia, que o filho de um amigo policial adorava há até não muito tempo… Mas ninguém chama o Batman, quando precisa de ajuda.

 

            Com tudo isso, apesar de tudo isso, a despeito de todas as conseqüências com trema que é o jeito certo de escrever, o país tem virtudes sim. Sabiam que a Vale está testando a primeira locomotivatotalmente eléctrica, sem fio, alimentada apenas por pesadas baterias, fabricada aqui mesmo com tecnologia nacional? Pois sim, é um veículo de manobra, não para longas viagens, mas ainda assim seus 4400cv dão-lhe um poder de tração invejável, força bruta absurdamente grande, muito além do mais poderoso trator de esteiras do mercado. A configuração é prefeita para economizar com infraestrutura de longas, caras e dispendiosas torres de alimentação, além de ser imune a eventuais cortes de fornecimento. Ainda cito o bruto e quase indestrutível Agrale Marruá, nascido da finada Engesa, pensado para a vida militar, que faz o legendário Land Rover Defender parecer um frágil SUV de boutique, tamanha confiabilidade e aptidão para o fora-de-estrada. Temos tecnologia de ponta no Brasil, sufocada por tudo o que escrevi nos primeiros parágrafos, que poderia nos tirar fácil e rapidamente do buraco financeiro em que estamos desde o fim do império. O que resta então ao pesquisador, ao empreendedor e ao artista sério, é buscar ajuda e oportunidades lá fora; inclusive em lugares que a intelectuália retorista abomina. Nem vou me aprofundar no uso de biocombustíveis e nos motores multicombustíveis, área em que somos o ÚNICO país que leva a termo E tem sucesso na aplicação da tecnologia, isso já inclui a aviação experimental. Neste caso, são os outros países que estão fazendo corpo mole. Preciso falar da Embraer? Não, não preciso. As dificuldades pelas quais passa, passarão, ela passarinho a jacto.

 

            São coisas que a mídia faz de conta que não existem, e quando mostra é de forma tão superficial quanto tendenciosa, se preocupando mais em tornar os responsáveis celebridades, do que informar e incentivar a população à ciência e ao desenvolvimento tecnológico. Vamos deixar claro que, apesar de o povo idolatrar celebridades, não dá a menor bola quando elas falam sério, só querem delas ouvir bobagens sem sentido para mero entretenimento. Entenderam agora a fuga de cérebros? Tudo isso alimenta estereótipos, como os de que o Brasil se resume ao Rio de Janeiro e que ele fica dentro da floresta amazônica. Felizmente alguns estrangeiros se decidiram a conferir até que ponto isso é verdade, e estão fazendo questão de mostrar ao mundo que é tudo falso, inclusive os estereótipos sobre a pessoa do brasileiro, desfazendo as generalizações perversas que denigrem, mas são fáceis de vender. São, embora haja até russos saracoteando por aqui, especialmente americanos e coreanos, que muitas vezes até fixam residência, não raro em definitivo. Alguém há de perguntar qual a novidade, posto que temos imensas colônias estrangeiras, no Brasil, inclusive a maior colônia japonesa do mundo em São Paulo. A diferença está nos seguintes pontos, um minutinho que já explico!

 

            Primeiro que quase todos os imigrantes dessas colônias já jazem. Vieram em outras e remotas épocas, noutros contextos e por outros motivos, estavam demasiadamente preocupados em sobreviver para se aprofundarem na cultura de cada Estado em que se fixaram. Também sofreram o trauma das condições de trabalho precárias em um país que se acostumou a fazer as coisas nas coxas, literalmente, o que é inaceitável para povos de países onde o trabalho é não só levado a sério, mas uma honra para quem o abraça. Apesar de falarem das belezas e potencialidades em correspondências, que podiam levar meses para chegar aos destinos, se debulhavam em saudades da terra natal, muitas vezes explicitando o desejo de retornar em definitivo; a maioria não o conseguiu. Mais ou menos como degredados romantizando um paraíso perdido, que no fundo sabiam que não era, mas a visão romântica agia como um bálsamo e nutria as esperanças, encorajando ao trabalho árduo para permitir o retorno em condições melhores do que as da partida.

 

            Segundo que o turismo internacional recreativo só se tornou acessível depois dos anos 1950, e mesmo assim aos poucos, e é esse tipo de viagem que dá início ao aprofundamento de interesses em indivíduos por países estrangeiros. Gente disposta a sair do roteiro de Hollywood só começou a proliferar recentemente, ainda ais com espírito desarmado e disposição a se misturar aos nativos. Mesmo assim, como a maioria de vocês já se deu conta, leva anos para surtir efeitos consistentes e duradouros. Alie-se a isso o advento muito recente da internet, e ainda mais recente a proliferação de canais pessoais com alcance relevante. Foi só de então em diante que esses estrangeiros começaram a falar com propriedade daquilo que viram e viveram. A maioria absoluta, embora não feche os olhos para as mazelas, é muito elogiosa, especialmente no tocante ao tratamento humano que nossos compatriotas lhes dispensaram, e falo especialmente dos americanos, segundo alguns dos quais o Brasil simplesmente os fez mudar para melhor, como pessoas. E não se limitam a rasgar seda, eles divulgam em seus países nossas culturas, nossas peculiaridades e especialmente nossa culinária. Um deles chegou a servir coxinhas em Manhattan, com explicações devidas e saneando os mitos que seus pares tinham a nosso respeito. Mesmo no estigmatizado continente africano estamos arregimentando simpatizantes, gente que vê vídeos sérios sobre o Brasil e fica de queixo caído, pois pelos noticiários se davam conta de que seríamos uma ilha tropical devastada, mas vêem nosso poderio econômico (apesar de tudo) e militar, a imensa diversidade de climas, culturas e paisagens, e passam a ter pena de quem apenas tentar se meter a besta conosco. Ainda entre eles, são muito elogiosos quanto à maneira com que foram tratados, em detrimento de ditaduras em que infelizmente precisam, de vez em quando, fazer escala nas viagens de retorno. Mesmo os portugueses fazem caras de perplexidade e assombro, quando descobrem o que perderam quando deixamos de ser sua colônia.

 

            Mesmo sem virem, eles estudam com afinco e ficam perdidos em meio à grandiosidade do que encontram, especialmente nossos hinos, e alguns estranham termos mais de um, arrancam suspiros pela competente composição. Isso se soma à estupefação quando descobrem que samba é apenas um dos ritmos que temos, e que há mais de um tipo de samba, portanto também mais de um tipo de carnaval, portanto mais manifestações culturais públicas do que suas emissoras seriam capazes de mostrar em um ano inteiro. Quando podem vir, descobrem que uma vida humana inteira não bastaria para conhecerem tudo, ao contrário do que acontece na maioria dos países, minúsculos se comparados ao nosso território. Alguns minúsculos mesmo para os padrões europeus; ou seja, para qualquer país é uma péssima idéia tentar invadir o Brasil.

 

            Na realidade se deu uma explosão de brasilismo que está se alastrando rápido, praticamente todos os gentílicos que o podem, estão exportando uma imagem positiva aos seus países, até mesmo chineses. A quantidade de estrangeiros que fazem boa propaganda do Brasil lá fora, consertando o serviço porco da Embratur, que só mostrava bunda e caricaturas baianas de Carmen Miranda, cresce mais rápido do que eu consigo acompanhar. Eles falam bem, alguns chegam a ser generosos com nossos patrícios, ajudando como podem e divulgando seus pequenos negócios para potenciais clientes conterrâneos que vierem depois, o que é particularmente valioso nesta época de crise profunda. Notei particularidades de alguns gentílicos que falam muito de seus países;

 

            Os moçambicanos em especial são extremamente curiosos e entusiasmados, como o Aurélio. Eles agem como crianças, no bom sentido, esmiuçando tudo o que podem e aceitando com humildade, nossas correções e sugestões. A simpatia e a simplicidade de linguagem, e a mania de falar “mano” como interjeição para tudo, já arrebanhou fãs e até amigos entre os seguidores brasileiros… uhm… será que Moçambique é um pedaço perdido de São Paulo? Alguns deles ficam pasmos quando descobrem que há negros no Brasil. Basicamente, há pessoas por lá que pensam que só existem negros na África… pois é. Eles querem aprender tudo o que puderem, são divulgadores perfeitos e engajados das coisas do Brasil, então peço que sejam solícitos, eles saberão agradecer revertendo a péssima impressão que as instituições carimbaram em nossas testas.

 

            Os americanos querem se enturmar, fazer parte da nossa bagunça e se sentirem brasileiros, por mais espantoso que isso possa parecer; isso é um poderoso antídoto contra os estereótipos que a mídia dissemina. Eles gostam de usufruir de nossa hospitalidade, que para eles é coisa de outro mundo, com elogios rasgados para os mineiros, e fazem questão de alardear para o mundo inteiro que somos o melhor tipo de pessoa do mundo… não, não é piada. Eles vêm e fazem questão de retribuir aos brasileiros que vão para lá. Eles tentam nos fazer ver o lado mais sombrio dos Estados Unidos logo de cara, mas com isso só conseguem fazer os nossos ficarem tão encantados quando eles ficaram aqui, pois logo em seguida nos apresentam aos melhores lugares para brasileiros, inclusive redutos brazucas no quintal do Tio San; eles são mais piegas do que admitem, e nós conseguimos extrair isso comendo pelas beiradas. Nosso idioma é uma armadilha para eles, especialmente por causa dos verbos. Por exemplo, eles têm “you”, para esta palavra temos tu, te, ti, você, vocês, vós, lhe e lhes, piorando a confusão quando descobrem que o nosso português não é parecido com o de Portugal, como o cinema lhes dizia ser. São de longe os mais numerosos obreiros desta senda. Vale à pena conhecer o canal do Tim, o mais brasileiro dos americanos.

 

            Os coreanos quebram o estereótipo de frieza e distância social que atribuímos aos ocidentais, fazem questão de proximidade e de experimentar nossa culinária. Às vezes chega a ser hilário, mas na maioria delas eles surpreendem. É sério, eu vi coreanas fininhas comendo feito um pedreiro que fez hora extra, sem almoço, e a barriga continuava chapada! Garçons olhavam incrédulos sem saber aonde tinha ido tanta comida, e estou falando de coisas como feijoada, farofa, dobradinha, churrasco raiz, entre outras tonelagens estomacais. Como é de regra, eles acham o nosso café forte demais. A eles chama atenção em especial o baixo número de fumantes, que nós achamos alto, isso já rendeu um vídeo inteiro da Coreaníssima. Ela, aliás, é precursora de uma série de coreanos que se dedicam a conhecer e falar do Brasil, eles já se deram conta de que juntando todos os compatriotas, ainda não conseguirão conhecer tudo, viajar mais de 1000 km dentro de um único país é estranho para eles, mesmo acostumados com o gigante chinês bem ao lado, mas a imagem que tinham daqui era de uma ilha tropical,,. Pois é., dona Embratur...

 

            Os russos são figuras! Estranham tudo a ponto de parecer que desceram em outro planeta, mais ou menos como “Moscou! Encontramos vida alienígena, não temos certeza de que seja inteligente, mas é divertida”. Como os demais, o nosso idioma intrincado os confunde muito, mas nossos hábitos chegam a ser bizarros, alguns chegam a perguntar se temos problemas bucais crônicos, pela freqüência tremada com que escovamos os dentes. Eles, reis da excentricidade, nos acham malucos! Oh, honra suprema, tidos como esquisitos pelos mestres da arte! A dramaticidade com que falam pode assustar os desavisados, mas só terão sido gentis; eles são dramáticos em tudo. Um mito que ainda têm na Rússia é que somos uma ilha tropical na América Central, choca quando chegam, descobrir que mal cabemos na do Sul… e que temos colônias russas no Brasil! E que sabemos localizar a Rússia no mapa! Então eles tocam de roda feito crianças descobrindo a casa nova, querem conhecer a tudo e a todos, demonstrando uma incrível capacidade de entrosamento. É bom lembrar que o idioma pode gerar constrangimentos; por exemplo, “olá” soma como Ola, diminutivo de Olga, e Rui soa como “ruy” que significa literalmente “pênis” … Tomando cuidado com perguntas delicadas, mas sem hesitar em fazê-las, a convivência é até festiva.

 

            Estes foram apenas os principais e mais freqüentes exemplos, e impressões que me deixaram, não haveria páginas suficientes. Eles deixam claro que o Brasil não é para amadores, não é para covardes e, principalmente, não é para invasores. O certo é que são pessoas comuns, não ONGs ou autarquias que agem sob ordens de sabe-se lá quem com sabe-se lá que propósitos, que vão nos ajudar a sair do buraco, e essas pessoas já assumiram a seara em um trabalho de formiguinhas pelo mundo inteiro… que tal as formigas daqui cooperarem?