23/07/2017

Eu uso óculos!

Paulina Poriskova for Dior sunglasses, 1980s

    Decidido a dar uma boa impressão, ele memoriza onde está o quê e treina. Tira os óculos, localiza algo, põe de novo e corrige a precisão. Teve problemas com as garotas desde que precisou usar aqueles óculos, que lamenta o oftalmologista, são para a vida toda.

    Não está cego, pode se orientar no ambiente sem eles, mas para dirigir, ler e reconhecer pessoas a mais de dois metros, precisa daquelas lentes multifocais. Tenta levar a vida apesar delas, mas já descobriu que sal e bicarbonato de sódio são mais parecidos do que vale o risco; a mãe o obrigou a comer sozinho o frango resultante da culinária às cegas. Também descobriu que óculos e vapor não combinam, especialmente se o vapor contiver gordura animal.

    Enfim, hoje é domingo, a piscina do condomínio está cheia, os biquínis estão minúsculos, quer se dar bem hoje. Coloca seus acepipes adiposos sobre a mesa de ferro fundido, põe os óculos ao lado e tenta ler aquela revista de cultura surfista. Até consegue ver razoavelmente bem as photos maiores, com alguma dificuldade lê as chamadas espalhafatosas, mas quando precisa ver o corpo do texto e as legendas, não tem jeito, precisa colocar o para-brisas de Fenemê, como a irmã caçula já chama.

    Tenta ler rápido, para usar o mínimo possível aquela órtese, mas a tira rapidamente quando uma garota se aproxima, mantendo a pose de intelectual atento à leitura, que nessas condições varia do embaralhado ao borrão. Consegue disfarçar, simplesmente porque quase ninguém dá a mínima para a sua presença ali.

    O sol começa a castigar, a radiação ultravioleta está quase fritando os ossos, vê por bem colocar o guarda-sol no encaixe da mesa. Problema? Não, nenhum, se ele não se metesse a fazer isso sem os óculos. Primeiro derrama o refrigerante, mas o levanta antes que perca muito. Espalha o "isopor de milho" e o recoloca no saco, engordurando as mãos, mas confiando que tem lenços e papel toalha. Finalmente encaixa, mas não sem estremecer a mesa e fazer bagunça, que se apressa em arrumar como pode, sem enxergar os detalhes.

    Volta a sentar-se, pegar a revista e fingir que consegue ler, com aquela cara de homem confiante em seu taco. Está protegido do sol, mas a sombra atrapalha um pouco fingir que lê, precisa pegar os óculos com mais freqüência. Ainda não notou a bagunça que resta na mesa, apenas enfia a mão em um dos sacos e mastiga algo.

    Uma garota nova no condomínio se aproxima; pele morena, corpinho de violão, tudo proporcional, firme e empinado, com quase nada tampando quase nada, e uma tatuagem do logo da época da guerra da Cadillac entre os seios. Ele a detecta em cima da hora e põe os óculos de qualquer jeito sobre a mesa, naquela mistura de refrigerante com gordura vegetal que ainda está no tampo de pedra.

    Ele a cumprimenta, ela responde com a cabeça e segue, enquanto ele admira sua compleição se afastando em seu requebrado. Pega os óculos para ver melhor e piora. Pega um lenço de papel para secar a lente, antes que ela suma de vista, e borra tudo com aquela gordura. Pega outro lenço para tirar a gordura, mas pega o que está engordurado com a pururuca. Tenta melhorar as coisas, limpando no calção, até consegue, mas deixa suas partes um pouco expostas a quem está atrás, e é muita gente.

    Desiste de parecer a águia do local, engole o orgulho e tenta encontrar o limpador de vidros adequado, dentro da bolsa de praia, mas precisaria dos óculos para isso. Vai tateando enquanto o calção começa a descer, pelo laço afrouxado pela tentativa de limpeza das lentes.

    Só se dá conta pelos gritos das mães, uma delas a sua. Levar bronca de mãe não é incomum, mesmo quase adulto, mas está levando bronca de uma quarentona em plena forma, que faz inveja a muitas garotinhas, e está também de biquíni, sendo admirada como ele admirou aquela garota. Ela procura e encontra o limpador, no meio daquela algazarra, se demora limpando os óculos, com o vigor que lhe é característico, balançando todo o corpo, e o adverte para não tirá-los mais.

    Ele coloca os óculos se vê sendo visto do modo como não queria. O condomínio inteiro o fita com caras de deboche, fazendo insinuações sobre sua mãe e em maior número do que pode tirar satisfações. O atenuante é que ninguém lá estuda na mesma faculdade que ele, mas costumam se cruzar nas ruas próximas e nas idas ao supermercado.

    Desiste! Adeus, domingo cruél! Volta para o 2703, o último andar, com o firme propósito de virar lagartixa de escritório, mais branco do que nerd sueco. Nunca mais descerá à área de lazer! Nunca mais! Vai conseguir um emprego pela internet e só sai de casa para a faculdade! Sai do elevador, pensando em cortar os pulsos com papel machê, e quem encontra voltando?

    - Oi, foi você que me cumprimentou lá em baixo? Desculpe se fui grossa, é que esqueci os óculos no meu quarto, eu não enxergo direito sem eles. Você usa, então me entende, né?

    Pensando bem, vai arranjar esse emprego sim, mas vai ser para outros propósitos. Afirma que compreende, não foi nada e oferece companhia de volta.