09/04/2023

Escassez não é desculpa

 



            É creditado ao mexicano Rafael Rivera a semente que deu origem a tudo. Em 1829, quando o Brasil ainda tinha sete anos como país e muita gente nos rincões mais afastados nem sabia da proclamação da independência, um "imigrante" encontrou um vale com pradarias férteis no meio do deserto de Nevada e lá se estabeleceu. Chamavam aquilo simplesmente de "os prados", "las vegas" em espanhol, nome dado por Antonio Armijo e seu grupo, que só procuravam um lugar para tocar a vida. Muita coisa aconteceu até o povoado no condado de Clark se tornar uma vila ferroviária em 1905 e então uma cidade em 1911, o que a torna relativamente jovem nos Estados Unidos. Mas foi em 1931 que aquela cidade no deserto de Mojave ganhou importância, não por meios muito nobres, mas ganhou; os mafiosos se aproveitaram da legalização dos jogos e começaram a abrir cassinos, dando aos viajantes motivos extras para permanecer na cidade, além de ser uma parada segura em um vale desértico. O facto é que o negócio deu muito mais certo do que os mafiosos imaginaram e o que seria apenas para lavar dinheiro, tornou-se o negócio principal. Sim, tenha certeza de que a máfia ainda tem suas mãos nos cassinos, não em absolutamente todos eles, mas tem, como tem em todos os negócios em que pode legalizar seu dinheiro sujo. Digo que não em todos, porque existem assaltos aos cassinos, e nenhum bandido assaltaria a lavanderia de um mafioso, porque nenhum advogado conseguiria livrar sua pele. Uma curiosidade é que não existe UMA Las Legas, mas três cidades que a formam: Las Vegas, Henderson e North Las Vegas.


            O clima é muito parecido com o de Goiás, ou seja, desértico, só que com bem menos chuva, as temperaturas excedem os 40°C várias vezes por ano e respirar direito pode ser um desafio para quem não está acostumado. Pode-se pensar que existe uma pobreza pujante em uma cidade de pouco mais de 640 mil habitantes e com mais de 2 milhões em sua área metropolitana. Pobreza existe em praticamente todo lugar, inclusive se revelando explicitamente na romanceada Europa, mas pobreza crônica não é o caso aqui. A renda per capta passa de US$ 22.000 anuais, com uma casa podendo fácil ganhar mais de US$ 55 mil; uma renda boa em qualquer parte do mundo. A cidade do pecado, como ficara conhecida, é na verdade formada por famílias e nem todas têm relações directas com os cassinos, a iniciativa privada fala alto em Las Vegas, com pequenos e médios negócios fazendo a economia girar mais rápido. Embora alguns se considerem rudes, por conta da origem humilde e a falta de ancestralidade de que o velho mundo tanto se orgulha, a maioria dos gentílicos os considera até exageradamente educados, sempre se desculpando por praticamente tudo, o que pode até irritar alguns turistas estrangeiros.


            A infraestrutura está à altura da pujança de uma cidade que não se apegou aos cassinos e seus hotéis, que também se beneficiam da diversificação dos postos de trabalho. O comércio é muito forte e, talvez pela localização desfavorável da cidade, os locais são apaixonados por automóveis, e os clássicos têm especial vaga na garagem de seus corações, assim as oficinas de transformação e restauro faturam alto, bem como a indústria e o comércio de insumos para essa actividade. E como todo americano, eles amam comer, então a rede de alimentação é respeitável, contribuindo ainda mais para o sucesso da economia. De certa forma, as actividades secundárias, que eram dependentes dos cassinos, ganharam músculos e esse dependência tem se tornado paulatinamente mútua, porque os turistas não vão mais lá só para jogar. Tanto que a prestigiada Universidade do Colorado fica lá, e o transporte público deixaria qualquer brasileiro com inveja, o que não seria necessário se só hotéis-cassinos sustentassem tudo. Conta inclusive com o monotrilho, que lá leva pessoas de um lado para o outro, enquanto aqui só leva o erário para bolsos do alheio.


            Nisso a cultura também floresce, não só pela universidade, mas pelos museus, como o Museu do Neon, que mostra justamente a história dos cassinos. Sua própria tradição de chamar artistas de primeira linha para seus shows, Sinatra e Elvis eram dos mais assíduos, fixou na mentalidade da população que a cidade era muito mais do que jogos de azar e brigas de quadrilhas, dando ao glamour a alforria daqueles letreiros  ofuscantes, o que se comprova com o Las Vegas Arts District, que como os cassinos vive dos visitantes e ocupa a mão de obra local, bem como atrai artistas forasteiros, incluindo não só artes visuais, mas também artesanatos, pulgas e gastronomia; como eu disse, americanos amam comer, então o sucesso já estaria garantido só com a fauna nacional. As feirinhas, à moda das que infestam Goiânia, têm o charme frugal que deixa o turista muito amis à vontade, e disposto a gastar. Não obstante, eventos como o festival retrô Viva Las Vegas é um espetáculo de sucesso internacional, atraindo colecionadores, garotas pin-up e turistaas de todo o planeta, inclusive do Brasil. Com tudo isso não é de admirar que séries de realidade com negociantes locais sejam sucesso.


            Um dos segredos é deixar o povo trabalhar e não abusar do assistencialismo, por mais dividendos eleitorais que isso pudesse gerar. As regras são claras e todo mundo sabe em que cumbuca não deve meter a mão, e a cidade oferece o que outras não; adivinha para onde tem sido a última onde de migração? Sim, as pessoas estão saindo de cidades litorâneas com seus governos bonzinhos para o árido Meio-Oeste americano, onde a liberdade e as responsabilidades individuais estão ao alcance de todos. Eu ainda poderia citar Mônaco, que não passa de um enclave no Mediterrâneo, no sul da França, menor do que o bairro onde eu moro, mas cuja fama é inegável; ou ainda Cingapura, que é tão desprovida de recursos naturais, que nem água potável tem, precisa importar tudo o que seus cidadãos bebem. Três lugares, um deles uma cidade-estado, que provam que aridez e escassez de recursos locais não são desculpas para atraso e pobreza. O sertão nordestino, que é passagem da luxuriante fartura amazônica para os portos mais orientais das Américas, não deveria ser sinônimo de miséria e migração, mas ao contrário de Las Vegas, lá só acontece o que o Estado deixa... e nosso Estado é dos piores do mundo.




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