28/07/2011

Ipse venena bibas

http://jboscocartuns.blogspot.com/

Meritíssima Juíza; digníssimo corpo de jurados e juradas; nobre auditório, futuros colegas e concidadãos de boa índole. Começo agora a desfazer uma injustiça, não contra uma pessoa, que interesses pessoais não permearão minha explanação, mas contra a dignidade de toda uma classe social historicamente oprimida e achincalhada!

Mostrarei, caríssimos e caríssimas, que o cidadão mostrado como vítima deste acto infeliz, na realidade, foi o provocador e único responsável pelo mesmo. Aliás, minto, perdoem. Meu cliente teve sua parcela de responsabilidade, não resistindo à tentação de baixar a crista petulante de um exibicionista inato e notório, pondo-se em um acto de loucura momentânea à agressão física que, convenhamos, não resultou em danos maiores do que os por ele sofrido. Lesões superficiais, uma camiseta de péssimo gosto rasgada e a perda de seu aparelho, que nem era novo.

Não, eu não nego, nem meu cliente, o custo das conseqüências de um acto de violência. Acto, digníssimos, pelo qual ele já pagou, passando quase um ano em uma cela superlotada, sem ventilação, sofrendo toda sorte de agressões e humilhações, com alimentação que minha mãe não dá nem, aos porcos de sua chácara. Meu cliente não nega a paga pelo que fez, tanto não nega que já quitou moralmente com sobras. Não fosse assim, não teria o respeito do delegado que o manteve em cárcere, nem dos plantonistas com quem conversava a noite inteira.

Devo lembrar, meritíssima, corpo de jurados e juradas, que há cerca de seis meses houve uma fuga em massa da delegacia, quando criminosos de verdade abalroaram a frágil parede de suas instalações com um caminhão. Somente três, vejam bem: não trinta, mas três apreendidos não fugiram, dos cento e setenta que lá estavam. Dois deles porque estavam no banheiro de sua cela (sabe-se lá fazendo o quê, não é da minha conta) e não ouviram o estrondo. Já o meu cliente, caríssimos... meu cliente é saudável (ou teria sucumbido ás condições em que estava) e tem boa velocidade de corrida. A parede da cela de meu cliente também veio abaixo! Não mais do que vinte centímetros o separavam da liberdade ilícita que os demais não deixaram escapar! Mas ele não. Ele, de livre e espontânea vontade, com os brios que a vida ainda não conseguiu tirar-lhe, permaneceu impávido e sereno no lugar onde estava, em um canto, para que os fugitivos não o identificassem como um traidor, olhando para baixo a fim de não identificar os fugitivos e, assim, preservar a integridade de sua família, que o aguarda na humildade acolhedora de seu lar.

Fosse meu cliente realmente um criminoso, ele estaria livre. E eu teria abandonado a causa! Mas ei-lo aqui, meus amigos e minhas amigas. Olhem bem para ele! Embora emborcado pelos sofrimentos sofridos, ele está altivo e tranqüilo como sua consciência, consciência de quem sabe que pagou seu débito e pode olhar de frente a sociedade que ora o julga por seus actos. Ele já os quitou. Ele não se envolveu com os criminosos que o cercavam e ameaçavam a todo momento, jamais sequer falou alto com ninguém na delegacia, como todas as testemunhas asseguraram.

Os presentes, que em suas conversas antes desta sessão demonstraram boa cultura, devem ter ouvido falar das impressoras 3D, que ainda são novidade em nosso país. Pois como prova de boa vontade, durante o purgatório em que estava metido, meu cliente aprendeu a operá-las, na delegacia. Sim, ele aprendeu uma profissão e, surpresa! Ele já tem emprego garantido para quando sair deste tribunal à liberdade!!

Sim, jurados e juradas! Sim, meritíssima, a libertação de meu cliente será também o recomeço glorioso de sua vida sofrida! Uma página a ser virada para sempre! Ele me pediu que lhe conseguisse um emprego, e quando eu forneci suas qualificações, tive que selecionar o empregador. Mais uma prova da boa vontade de meu cliente em começar vida nova. Está tudo nas cópias que lhes entreguei, desde o curso de auto-cad e studio 3D até a operação das máquinas. Ele sai daqui para se apresentar ao novo trabalho. Olha, moças, ele tem perspectivas de ganhar bem com sua produção

Surpresos, senhoras e senhores jurados? Pois a meritíssima juíza, que acompanha o caso desde o início, me parece sim estar é satisfeita com o que já esperava.
É verdade, meus caros, que meu cliente subtraiu um tablet da suposta vítima. Que essa suposta vítima saiu do episódio com lesões e teve o aparelho destruído. Meu cliente não se furtou o dever de assumir e dar cabo de sua dívida. Longe disso. Eis em suas mãos os relatórios que comprovam sua submissão prévia à pena.
Acontece que a suposta vítima é figura bem quista em rodas políticas hoje sob investigação. São amizades poderosas, que deram uma estranha rapidez a um processo que normalmente seria lento, e permitiria a meu cliente responder em liberdade. A meritíssima já está a par e determinou a investigação interna, tendo estranhado a conduta do antecessor.

As testemunhas de acusação, ficou claro a todos, entraram em contradição várias vezes, por eu não ter me atido às perguntas de praxe e não ter feito as mesmas para todos, embora todas exigissem as mesmas respostas. Só troquei "bola" por "esphera", ou "grosso" por "espesso", e uns contradisseram aos outros.
Com a permissão da meritíssima já concedida, vou revelar aos jurados e juradas quem é realmente a suposta vítima, que disto nada tem.

Vamos aos factos. O acusador tinha o hábito de passar desnecessáriamente por aquela comunidade pobre, fazendo barbaridades com seu carro importado, pondo os pedestres em risco e exibindo suas posses aos moradores. Depois ia para o bar e ria com seus amigos pela humilhação que impunha a toda uma população. Há gravações comprovando isso. Em uma área pobre, carente de serviços públicos, ele costuma exibir maços de euros, cartões sem limites e jóias caríssimas. A defesa bem lembrou que ele tem o direito de ir e vir sem ser incomodado. Concordamos. Mas o direito de um termina na fronteira com o do outro, e ele invadiu o de uma comunidade inteira. Ostentando tentações ás quais sabia ser difícil, quase impossível um pai de família desempregado resistir, assumiu o risco de ser agredido para a subtração dos bens.

Quem anda se exibindo, meus amigos e minhas amigas, chama atenção. Ele quis chamar atenção, e chamou. Que dê graças a Deus de ter sido a de um homem com vergonha na cara, que é o meu cliente! Que levante as mãos para o céu por os verdadeiros marginais da área não estarem lá, naquele momento! Porque se estivessem, o réu seria outro e a acusação seria por latrocínio! Ele quis ser atacado! Ele quis ser vítima para atrair a piedade do público! Mas ele provocou! Foi arrogante! Foi prepotente! Foi uma ameaça à dignidade da família de meu cliente.
Meu cliente não ficou com o bem subtraído e, em suaves prestações, poderia tê-lo ressarcido.

As concidadãs devem estar estarrecidas, reconhecendo de minhas palavras um jugo que tenta tolher-lhes sua dignidade desde tempos imemoriais. Eu explico. A suposta vítima responde, hoje, à quinta acusação de atentado violento ao pudor. Estranhamente, as outras quatro vítimas foram encontradas mortas ou desapareceram sem deixar rastros. Mas a actual, embora de aparência humilde, é amiga de gente influente e está recebendo a assistência e proteção devidas. Agora a justiça ás mulheres vítimas será feita, ainda que póstuma.
O meu cliente fez questão de que o processo corresse normalmente e se comportou com dignidade, mesmo com os habeas corpus negados. A suposta vítima fez de tudo para não ir a juri. Tolheu o direito de suas vítimas de irem e virem sem serem molestadas, e eram todas trabalha...

 - Eu vou acabar com você! Se não calar a boca você vai ver só!

A juíza determina que o valentão seja retirado do tribunal. Ele resiste e acaba sendo preso por desacato. mesmo com todas as instruções do advogado, a arrogância de quem jamais respondeu pelo que fez, desde criança, não tolerou ser cobrado em público por seus delitos.

O advogado de defesa dá continuidade e inclui suas ligações com políticos que desviaram verbas e tiveram seus processos arquivados pelo congresso, evasão de divisas, sonegação, enfim, tudo a que tem direito um machão misógino que teve o cartão de crédito como babá. Não é a primeira nem a última ameaça de morte em sua carreira. Ter colocado o rapaz contra a parede e feito tomar juízo surtiu efeitos, podendo se dedicar então somente ao processo. Encontrar podres de quem se acostumou á impunidade foi fácil. Plantar cópias de provas perdidas contra o antigo juíz nem tanto.

Ao fim, juri e magistrada reconhecem que o réu já cumpriu mais do que deveria e é posto, sob advertências, em liberdade. Como efeito colateral, angariou a simpatia do jurado e lá seus primeiros clientes. Ele foi um ladrão, é verdade, teve a oportunidade e teve a desculpa que queria para isso. Se ele realmente merecia esta chance, foi decisão do tribunal.

22/07/2011

O príncipe e o dotô

Riam enquanto podem. A coroa dá muita dor de cabeça.

Não sou monarquista, deixo logo esclarecido, mas também não sou republicano. Sou pró-Brasil, o que for melhor para este continente monoidiomático eu apóio.

Mas com a banalização dos escândalos políticos, e o completo desavergonhamento de partidos que fazem ameaças à presidência, por seus indicados estarem sendo demitidos antes que destruam de vez a máquina pública, não posso me furtar o direito e dever de fazer esta comparação. Nem era o texto que tinha em mente para hoje. Então os meus detratores façam o favor de segurar sua sanha, que não é ataque contra vocês nem contra suas ideologias; aliás, podem ficar com elas para vocês.

William Arthur Philip Louis, ou Guilherme de Gales. Este rapaz veio ao mundo em 1982, isto não prova apenas que estou ficando velho, prova também que ele faz parte da geração que teve tudo e só fez asneiras, que cantou protestos e se rendeu àquilo contra o que protestava, enfim, ele é um garoto que teve tudo para ser pior e se tornou uma boa excessão.

Duque de Cambridge, ele será o rei do Reino Unido. Pela mentalidade reinante neste país aqui, ele tem tudo para se acomodar, ficar de papo para o ar, com a boca aberta, escancarada, esperando a coroa chegar. Ele estudou nos melhores colégios, teve a saúde cuidada com esmero e tudo mais; resumindo, poderia ser mais um playboy boboca desperdiçando seus genes e estragando a vida alheia.

Só que o Duque não é filho de dotô juíz, dotô ministro, dotô ardevogado, nem de socialite falida metida a besta. É filho de Diana Spencer, neto de Sua Majestade a Rainha Elizabeth II. Embora se estranhassem, ambas concordavam que os garotos precisavam ter uma educação rigorosa, porque naquela época já se viam os estragos decorrentes da permissividade familiar. O garoto não teve sopa.

Desde cedo teve todas as suas necessidades satisfeitas, mas só as necessidades. Ele costumava lavar os carros dos criados quando queria algum dinheiro extra. Mas como?!!!!! Meu fi-lhi-nho nascido em São Paulo, filho de gente de bem, com óptima genética e cheio de amigos influentes, lavar carro?!!! Mas nem os próprios dentes ele escova sem ajuda de empregados!!! É, eu sei, minha senhora, mas o Cadete Gales é um príncipe de verdade, e príncipes de verdade não têm moleza.

É tradição na família real britânica ter um tutor para orientar os pimpolhos reais, até que tenham juízo e maturidade para enfrentarem o mundo sozinhos. Quando já estava um rapazote, o tutor "sugeriu" que arranjasse um emprego, "sorte" compartilhada pelo irmão. Não se tem notícias de eles terem dirigido bêbados, em alta velocidade e matado alguém por isso.

No percurso, ele foi exposto a todos os sortilégios que acometem qualquer plebeu. Aliás, ele foi mais cobrado do que todos os garotos ingleses juntos, porque esses garotos ingleses também cobravam-lhe comportamento condizente com um príncipe. Suas faltas sempre foram mais enfatizadas do que a dos futuros súditos. Todos os países do Reino Unido estavam de olho nele, o pai e a avó não tardavam em saber de seus deslizes, e cobrar-lhe por eles.

Não bastasse ter que ganhar seu próprio sustento e estudar com afinco, o Duque ainda precisava arcar com os compromissos de um membro da família real. Quem é militar sabe do que estou falando, ele é oficial da marinha britânica, com honras e condecorações por bravura.

Mas, heim?! Meu filhão garanhão, deixar as periguetes a ver navios pra receber ordem de milico, como se fosse um qualquer? Nunca! É pra isso que tenho influência em Brasília! Meu filho será deputado e fará carreira na política, multiplicando sua fortuna como fazemos desde o meu bisavô!

Pois o oficial de vôo da força aérea, sub-tenente da marinha, Real Cavaleiro da Companhia mais Nobre da Ordem da Jarreteira, e mais uma pancada de títulos que ele teve que fazer por merecer, é militar de carreira. Dentro do quartel é um oficial como outro qualquer... Durante as instruções, porque é pedir muito que o orgulho britânico não aflore nas horas de lazer.
Aliás, aos dezoito anos ele viajou pelo mundo fazendo trabalho humanitário, colocando a mão na massa, inclusive ajudando a levantar paredes. Isto ele herdou da mãe, que cuidou para que todo o rigor necessário à educação de um rei não o tornasse um homem frio e indiferente. Ser órfão aos quinze anos, idade difícil para qualquer um, o fez sentir a dor da perda que uma grande parcela de nossos "ricos" ignora. O Duque se importa com as pessoas.

Agora vem o mais recente distanciador. Antes de viajar em lua-de-mel com a Duquesa, ele participou de um resgate aéreo em uma montanha. Muita gente não faz idéia do quanto isto é arriscado para a equipe de resgate, mas ele faz e foi ajudar.

O que quero com isso? Anexar o Brasil ao Reino Unido? Restaurar a monarquia? Não. Só quero mostrar o disparate que é a educação que nós damos aos nossos filhos, especialmente se comparada à educação recebida por alguém que tem futuro (e uma espada sobre a cabeça) garantido como Rei da Inglaterra.

O sujeito compra uma Hilux e já se acha melhor do que todo mundo, no direito de furar sinal, parar em cima da calçada e bloquear garagem alheia. Cultivamos uma mentalidade que transforma gente de talento em profissionais arrogantes e insensíveis para com a dor alheia. Os trastes que elegemos não poderiam ser muito diferentes, pois são praticamente um reflexo daquilo em que acreditamos. O brasileiro em geral acredita que se é em benefício próprio a corrupção se justifica, seus eleitos também.

E nossa (cof! cof!) elite? Arcaica e anacrônica como só no Brasil para conseguir subsistir. Não quer se misturar a gente comum, acha que é boa demais para pagar impostos e que um salário mínimo bruto é dinheiro demais para uma empregada. Mas seus filhos? Ah, seus filhos! Orgulho da sociedade local! Perpetuadores das tradições familiares da gente de bem! Todos eles acima do bem e do mal. Serão amos e senhores da ralé assim que aprenderem a falar.
Deixar uma lua-de-mel para ajudar alguém em dificuldades? Que morra! Ter tudo na mão, quando, como e o quanto quis, tornou esses "herdeiros" altamente indiferentes às aflições alheias. Só lhes interessam seus próprios umbigos e ai de quem não gostar. O futuro está garantido e eles não moverão um dedo sequer para merecer o que querem, tomarão à força se for necessário.

Dar satisfações aos jornais? E eu pago colunas sociais pra quê? É para me fazer parecer uma rainha, me colocar acima da gentalha, e para mandar demitir qualquer um que me contrarie, seja em uma nota de rodapé. Jornal serve para manter nossa fina flor da sociedade no comando deste país.

Vamos sem francos, nossa "elite" é água em pó. É cara, fútil e não justifica o nome. Não justifica nem estar onde está. Elite, lá fora, arregaça as mangas para negociar e arranjar recursos, aqui simplesmente aproveita-se uma amizade para obter empréstimos sem a menor intenção de pagá-los, enquanto outro mais forte não reclamar e exigir providências. Nenhuma mãe em sã consciência usa um filhinho de papai como modelo para educar seus rebentos.

Quando voltar da lua de mel, o casal William e Kate voltará à rotina, cuidará do próprio sustento e arcará paralelamente com as obrigações da família real, além de ter toda a Europa no seu encalço, cobrando-lhe a postura que deve ter. E olha que eles serão os soberanos de quatro nações e ainda monarcas do Canadá. Toda a população desses países os reconhecerá como Suas Majestades o Rei e a Rainha, mesmo hoje, se eles disserem "prendam aquele homem", ninguém perguntará os motivos antes de o infeliz estar devidamente dominado. Eles têm consciência do poder que já detêm e do que deterão, porque é quase certo que Charles abdique em favor do primogênito. Eles têm poder de verdade, prestígio de verdade, apoio popular de verdade. Mesmo assim se esmeram em dar o bom exemplo? Não. Exactamente por isso se esmeram em dar o bom exemplo. As mães inglesas não têm nenhum receio em ver neles a educação de seus filhos.

Já a nossa (cof! cof!) elite...

16/07/2011

A fala da rabina

Aproveite a infância e não crie caso!

Esther (esta moça aqui e aqui) ajuda na arrumação da sinagoga para o próximo sábado. Receberão um rabino de Israel e querem que ele se sinta em casa. Claro, as crianças foram convocadas a ajudar também. Sarah e Jacob já estão acostumados, mas os outros de vez em quando reclamam. De vez em quando alguém brinca em tom sério, perguntando à "rabina Esther" o que ela acha dessa conversa toda. Ela fica quieta em seu macacão de brim, apenas atentando ao falatório dos garotos.

Ao contrário dos irmãos, os outros adolescentes estão mais contaminados com a indolência do mundo ocidental do que seus pais gostariam. O bordão "A felicidade é direito de todos" lhes soa como música, na verdade uma adulação a qual mal conseguem resistir. Gostariam que contratassem uma empresa para fazer os arranjos e limpar a sinagoga, como algumas igrejas de seus amigos fazem. Esther à espreita, com pais e mães, observa. É a mulher mais respeitada da comunidade, rivalizando com o rabino em autoridade. Após a arrumação ela chama os filhos, fazendo questão de que os outros também ouçam...

 - Que conversa é essa que me doeram os ouvidos? Jacob, você estava reclamando de ter vindo ajudar?

Ele nega, diz que conversava com Sarah enquanto passava cola quente e ela grudava os adornos, quando um grupo se mostrava inconformado em perder o fim de semana. A conversa de mãe e filhos chama atenção, especialmente quando ela acaricia os rostos dos rebentos, agradecendo a Deus por eles não terem se deixado levar pelas promessas fáceis que o mundo impõe aos jovens...

 - Meus filhos, eu lamento decepcioná-los, mas vocês não fizeram nada para merecerem a felicidade. Vocês ainda não tiveram tempo, na verdade nem está na hora de se preocuparem com isso, ainda são muito novos para tanto. E quando chegar a hora, não será uma balada que vai lhes trazer felicidade, nem sexo, nem o carro mais potente da cidade. Balada, no meu tempo era filme de cowboy, não são as luzes de letreiros que vão fazer vocês felizes; Se sexo trouxesse felicidade, suicídio de adolescentes não seria tão banal na Europa; Um carro impressiona enquanto não envelhece ou aparece outro melhor. Ser feliz não é algo que se ganhe, é algo que se vive por um dia só, todos os dias. Vocês têm que merecer e se sentirem merecedores. Por enquanto vocês têm a mim e seu pai para lhes garantir a satisfação de suas necessidades, por enquanto lhes basta, mas em breve vocês terão que sair no mundo e cuidar de seus assuntos sozinhos.
Não se deixem levar por discursos de quem nunca se empenhou em criar seus filhos, se é que já os tiveram. Não se é feliz fazendo tudo o que se quer e quando se quer, isto é futilidade, uma droga entorpecente que lhe tira os sentidos mais básicos de sobrevivência, e quando perde o efeito te deixa irritadiço, agressivo, depressivo e vítima fácil de um pensamento suicida.
O que esses intelectuais cheios de diplomas e vazios de coração fazem, é jogar nos jornais as suas próprias frustrações e suas fraquezas morais, apontam na sociedade os podres que carregam dentro de si mesmos e se colocam como solução dos problemas. Eles podem ser muito bons em analisar fenômenos, mas não pessoas. Pessoas não são tão previsíveis, ou não haveria crises mundiais. Eu ainda não me conformo em como mundo se convenceu de que facilitar a vida dos filhos os deixaria mais felizes, ou pior, mais preparados. Vocês dois fazem o que escolhem, têm suas obrigações e seu lazer, este ficando à sua vontade. Mas de vez em quando me pergunto se não estou falhando em algum ponto, porque o mundo lá fora não é uma escola. Nossa família é uma escola, o mundo lá fora é pra valer, ele vai lhes cobrar que estejam prontos e vocês terão que estar prontos, ou serão engolidos por ele. O mundo lá fora é o campo de batalha, é aqui que vocês aprendem a atirar e sobreviver.
Pensem na felicidade como uma respiração. Ninguém vai respirar por vocês, é algo que precisam fazer por conta própria e o tempo todo. Se páram de se esforçar, a respiração cessa. Ninguém respira direito precisando de um respirador mecânico.

 - Eu sei, mama. Mas não é pra gente que está dizendo isso, é?

 - Para vocês também, Sarah. Para vocês também, porque nunca é demais repetir um alerta sério. Mas é em especial para essa garotada aqui ao redor, que está ouvindo o que não gosta e continuará a ouvir. Esses amigos de vocês não são responsabilidade minha, vocês são. Enquanto a má educação deles não bater à minha porta, são problema exclusivo de seus pais. Por isso mesmo, aliás, vocês não são obrigados a achar bonito tudo o que eles fazem, só porque os tornou populares. Se eles forem realmente amigos, vão entender e respeitar a escolha de vocês, mas pelo que ouvi eles não são amigos nem de si mesmos, quanto mais dos outros.
Vocês não imaginam o que eu já vi de gente na sarjeta, gente que saiu de casa porque achava que seus pais não queriam que fossem felizes. Não, não estou falando de uma parábola. Nos trabalhos assistenciais que fazemos com outras comunidades e outras religiões, vemos jovens que fugiram de casa para poderem usar drogas sem serem incomodados, ou porque acharam que o interesse da família por sua vida era invasão de privacidade, ou ainda que não eram os filhos preferidos e por isso não tinham lugar na família. Há muitos assim nas ruas, pedindo esmolas. Não notaram como tem aparecido pedintes bem apessoados, com boa fluência e vocábulo estranhamente refinado? Nossa sinagoga já encontrou dezenas de famílias em outras cidades, algumas de São Paulo, que não sabiam onde seus filhos estavam. Disseram que tinham discutido e eles saíram em busca da "felicidade a que têm direito". Um fugiu com a namoradinha aos treze anos, porque os pais dela não deixaram que transassem na casa dela, faz cinco anos que ela morreu de overdose. E estava grávida.
Eu não tenho o direito de sonhar por vocês, mas tenho o dever de saber o que vocês realmente querem e deixá-los no caminho para conseguirem por sua própria conta. Vocês já disseram o que querem ser e suas vontades serão respeitadas, a ponto de termos uma reserva para ajudar a custear suas faculdades. Mas isso, meus filhos, porque vocês sabem o que querem, não confundem sonho com desejo. Desejo passa, e quase sempre é coisa supérfula. Ao contrário do que vemos nas ruas, durante as assistências, vocês e as outras crianças da sinagoga têm uma idéia clara do que realmente querem. Quem sabe o que quer não se deixa irritar por algumas contrariedades, nem por vontades insatisfeitas, porque é tudo passageiro. Vocês todos estão sendo criados com mais rigor do que o habitual nesta sociedade, porque queremos que sejam felizes, mas isto só se dará com esforço próprio. Como eu já disse, é esforço a ser feito diáriamente, que não dará frutos todos os dias de suas vidas, haverá momentos em que terão que passar (metaforicamente) a pão e água. Não tentem se privar disso, faz parte de ser adulto, lhes fortalecerá. A vida adulta não é chata como muita gente diz, mas é repleta de deveres proporcionais ao poder de cada um, e esses deveres tomam nossas atenções. Essa parte de obrigação não tolhe o sonho de ninguém. Não queremos que vocês vivam nossos sonhos, já aprendemos esta lição e percebemos há muito tempo, que buscar sua realização, isto sim é direito inato de todos vocês. Não quero que viva o meu sonho, Sarah, eu o vivo todos os dias e sou realizada nele. Sou dona de casa porque amo ser dona de casa, o seu caso é outro, seu sonho e sua realização são outros.

Se dá uma pausa sepulcral na sinagoga. Esther sabe que não adiantaria falar tudo isso se eles não estivessem receptivos, o que demandou um trabalho de educação desde que se entenderam por gente. Às vezes, fazê-los chorar por um "Não" firme e convicto foi necessário...

 - David, vem cá. Onde você estaria agora, não fosse esta preparação?

 - Ah, sei lá... Acho que no shopping, pra pegar o cinema...

 - Você tem certeza?

 - ... Não.

 - Esta negativa foi mais convincente do que sua resposta anterior. Não é estar aqui, trabalhando com sua comunidade, que te aborrece, é estar perdendo um momento de lazer que outras pessoas estão aproveitando. Você está pensando em encontrar esses colegas ou em se encontrar?

 - Tem certeza de que não quer ser rabina daqui?

A pergunta feita pela enésima vez, agora pelo garoto, arranca risos dos judeus. Ela lhe afaga a cabeça e responde de pronto...

 - Tenho, David. O meu papel eu já cumpro a contento sem precisar celebrar uma cerimônia. Escuta, o serviço aqui está quase no fim, amanhã cedo só precisaremos tirar o pó e lustrar o chão. Você terá o seu lazer com a vantagem de ter tempo para decidir o que quer fazer dele, sem precisar quicar de um lado pro outro como se pudesse aproveitar tudo de uma só vez, afinal estão de férias escolares. Pense bem, porque às vezes tudo o que queremos é ficar sozinhos um pouco, faz parte da vida. Correr atrás de diversões alheias vai te privar disso. Dá sim para ter tudo, só não dá para ter tudo de uma vez, muito menos o tempo todo. Na verdade às vezes acho que você sim, seria um bom rabino. Tem gente que vai alegar que ser padre é programa de índio, parodiando o judaísmo, mas você sabe que não é bem assim. Já comentou isso com seus pais? Não? Esse mundo de facilidades desnecessárias, meu filho, na verdade impõe dificuldades imensas aos que se deixam seduzir por elas. Ele te priva do encontro com seus defeitos e suas virtudes, não te deixa reconhecer suas falhas e assim te impede de crescer e ser um adulto pleno, te obrigando a recorrer a distrações e muletas químicas para não cair. Mesmo com essas muletas a maioria cai. Existe uma diferença muito grande entre fazer uma concessão e fazer um sacrifício, diferença que depende do grau de capacidade de cada um. Joshua fez uma concessão imensa, mas tenha certeza de que para Ele não foi um sacrifício, como não foi para Moisés reunir e guiar nosso povo. Jeovah não nos exige sacrifícios, Ele não é sádico, exige as concessões que cada um é capaz de oferecer, no momento em que se fizerem necessárias e só. Em breve você estará entrando na vida adulta, será o momento de fazer as suas concessões, porque terá que fazer escolhas graves pelo resto da vida. Faz parte de ser adulto não só no judaísmo, mas em qualquer parte e religião (ou falta dela) no mundo. É abrindo mão da casca vazia que Ele nos dá a fruta nova.
Pensem bem, crianças. Facilidade é um luxo para quem está em plenas condições de enfrentar o mundo, ela pode atrofiar sua força de vontade e te deixar à mercê de qualquer sedutor.
Pensem bem, todos vocês. Daqui até o dia em que terão que arcar com a vida adulta, vocês têm bastante tempo, podem pensar com calma, contar com a ajuda de seus pais e sua comunidade. Aproveitem enquanto podem se dar esse luxo, não desperdicem sua juventude tentando seguir a alegria alheia. O do alheio não serve para vocês.

15/07/2011

Judia na roda

Esther é a última convidada a falar. Foi uma semana inteira para os convidados explanarem sobre suas religiões, tirando dúvidas e quebrando mitos. Caprichosa ao extremo, se deu o trabalho de redigir pequenos livretos sobre a Torat, feitos em papel-jornal, sucintos e objectivos.

É anunciada pela nova directora, pois a última pediu transferência após ter sido nocauteada em público pela judia, se levanta em seu longuete azul claro e vai à frente...

- Amigas, bom dia. É um prazer estar com vocês de novo, desta vez para um assunto tão aprazível e esclarecedor. Quero agradecer ao Padre Bernardino, ao Pastor Isidório, ao amigo Abdulah, à Monja Fuji e à directora, por terem contribuído para a boa formação moral dos meus filhos. Eu sou judia, minha família veio ao Brasil fugindo do nazismo. A precocidade da fuga permitiu que todos os documentos que juntamos nos últimos três séculos fossem salvos, e eu gostaria de dividir com vocês um pouco da sabedoria e das lições que meus antepassados transmitiram. Aliás, nossos antepassados, pois nossas religiões têm todas uma raiz comum e a minha trouxe à luz algumas das de vocês. Somos irmãos, então.

Despeja um pouco da imensa sabedoria que o estudo com afinco de suas tradições lhe deu. Inclui factos históricos já comprovados, mostrando que não é uma fanática que acredita que anjos caibam na Terra e percam seu tempo exterminando infiéis. Como Abdulah, mostra que a mulher é muito mais forte em seu meio do que o folclore cristão faz parecer...

- Nossa submissão não é ao marido, mas à nossa tradição, é ela quem nos guia os passos. Não uma castração, mas um porto seguro aonde vamos quando as tormentas deste mundo de provações ameaçam-nos com um naufrágio. Um judeu que se preze sabe quem realmente manda na casa.

- Você escolheu o seu marido?

- Escolhi. E o deixei de molho por uns meses até que demonstrasse respeito por mim... Casei cedo, às vésperas de fazer dezoito anos.

Esther, mãe de Sarah e Jacob, conhecida na comunidade como "A Dona de Casa", conduz placidamente a entrevista, conseguindo simpatia dos presentes para com o judaísmo e até confirmando convites para uma visita à sinagoga. Ninguém reconhece a pugilista de batom que desacordou a antecessora da Carolina. Mas quando o assunto é religião, sempre aparece uma serpente para contaminar o paraíso. Uma fiél da igreja "Deus é Só Meu e Ninguém Tasca" se manifesta, afirmando que vai tirar os filhos daquela escola de ímpios...

- Que absurdo é esse em falar que o Meu Senhor Jesus era judeu? Ele é o Deus vivo, o rei dos reis...

- Descendente directo de Davi. Ele escolheu nascer judeu, não existia cristianismo naquela época.

- Não, existiam as trevas, o reinado de Satanás. Vocês rejeitaram e mataram o Messias!

- Está parecendo daqueles jornalistas que falam de Israel e só soltam besteiras. Ele foi crucificado por uma elite que se rendeu à sedução de poder dos romanos. Pela coragem que teve em cutucar feridas publicamente, é sim digno de admiração e respeito. Ele estudou a Torat, (com toda aquela sabedoria) a Kabbalah e conhecia nossas tradições como o judeu que escolheu ser.

A fanática solta uma gargalhada que ressona por todo o ginásio, não só isto, fica claro que não são risos de ironia ou humor, mas risos nervosos de ódio incontido. Fica claro que só não investe contra Esther porque sabe que apanharia. Ela começa a declamar o velho testamento de frente para trás, de trás para frente, da direita para a esquerda e vice-versa. Não que saiba o que significa a maioria das palavras, apenas memorizou sistematicamente...

- Você gosta do Velho Testamento?

- Eu amo a Palavra do Senhor, é minha muleta, meu amparo, meu abrigo...

- Então você gosta um pouco do judaísmo. O Velho Testamento foi todo tirado da Torat. Tudo o que você disse eu aprendi no idioma original, sem distorções e perdas por traduções sucessivas, em hebraico. Por exemplo, Eva não foi nasceu da costela, os dois eram unidos pela costela e foram separados. Vocês não devem levar ao pé da letra um documento redigido ao longo de milênios, rico em entrelinhas e com passagens que só os sacerdotes mais preparados estão aptos a compreender. Toda a alegoria da Gênesis é uma lição de maturidade para a vida, não um relato histórico e histérico de um deus rancoroso que dá as costas pela primeira falha de seus filhos. Ele sabe que somos falhos, não exigiria santidade de quem mal sabe raciocinar e amar menos ainda.

A fanática faz uma cara de desprezo, sem esconder que ferve por dentro, apontando-lhe o dedo...

- Eu serei recebida com honras de rainha, pelos anjos. Do meu trono, no céu, eu rirei vendo você ser queimada e atormentada no inferno.

- Você já está no inferno.

- Ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra, ra! Eu sou eleita, eu tenho direito de decidir quem vem comigo ou não para o céu, e você não vai.

- Lamento informar, eu já estou no céu, você já está no seu próprio inferno.

- Eu sou abençoada, tenho carro novo, casa grande, fiscal nenhum me enche o saco, sou amiga de políticos...

- E depois vocês se perguntam porque existem tantos ateus no mundo. Jesus não admitiu que os apóstolos sonegassem, tanto que ajudou Pedro a pagar o imposto. Agora compreendo quais são suas motivações e porque seu marido pediu o divórcio.

Ela emudece, faz uma repentina gritaria como se estivesse na igreja e sai jurando vingança santa. Esther se vira para os presentes, lamenta o ocorrido e continua, sendo interpelada pela directora...

- Então isso é ser judia? Você estava muito segura do que disse, deu uma demonstração de cultura e domínio de causa fantástico.

- É obrigação de um judeu ter consciência do que é. Eu tenho uma visão clara do mundo e do meu mundo. Eu acredito na minha religião, vivo o judaismo, mesmo quando passamos por uma crise que quase custou o meu casamento. Vejo que não dá mais tempo para dizer tudo o que pretendia, mas trouxe uma Torat em português, bem resumida e comentada para quem se interessar.

É necessário fazer um sorteio que agracia uma aluna atéia. Mas antes de encerrar, pedem que explique o que quis dizer, embora alguns façam uma boa idéia, com ela já estar no céu e a outra no inferno...

- Nós temos livre arbítrio. Ninguém te manda para lugar nenhum, nós é que nos encaminhamos para lá. Ninguém com o coração corrompido atravessa sequer a calçada para o portão celeste, não importa quanto conhecimento teórico tenha e o quanto se destaque em um templo, porque o templo que interessa é justo aquele que aquela senhora desdenhou. Se eu for chamada hoje, vou sem arrependimentos, estou ciente de que tudo o que está ao meu alcance eu faço; edifico o meu lar todos os dias; disponibilizo algumas horas do meu dia por gente que talvez eu nem conheça, e levo meus filhos para que também ajudem; busco ser melhor a cada dia, rogo que Jeovah releve minhas muitas faltas e me ajude a repará-las. Minha família é tremendamente estável, passamos por crises sem desagregação, sem perda de respeito. Eu sou feliz não pela glória de ter sobrevivido ao que nos acometeu, mas apesar do que nos acometeu. Isto, uma vez aprendido, se torna parte de você e ninguém lhe toma. Isto é o céu. Agora vamos, que a Mirtes já nos chama.

Como dona de casa exemplar, Esther trouxe os quitutes de seu próprio forno para a reunião.

09/07/2011

Carona humaniza até o trânsito

Estou indo para aqueles lados. Entra!

Quem viu o transporte público de Goiânia há cinco anos e o vê hoje, lê com desdém, e até um pouco de raiva, a recomendação de intelectuais para se deixar o carro em casa e usar o ônibus. O secretário de transportes da cidade acha que para nós, pagadores de seu salário, o que temos hoje está bom demais, se negando maquiavelicamente a reconhecer que nossas linhas de ônibus já foram invejáveis. Ele não usa, então mente de forma descarada a mando de quem patrocina campanhas eleitorais.

Sei que no restante do país a situação não é muito melhor, via de regra é daqui para baixo. Mas já enchi vocês demais com minha irritação em outros textos recentes, então paro por aqui com a parte política. Vou a uma solução prática que não depende da senvergonhice estatal.

Dêem carona. Acostumem-se a levar amigos e parentes, quando o destino estiver em seu itinerário. A convivência que o cotidiano corrido nos tolhe é outro bônus. Havendo mais de um com carro, pode-se fazer o rodízio, que funciona como rateamento das despesas. É preciso que o carro seja muito, mas muito beberrão para que quatro pessoas a bordo não consigam lucro com a substituição. É preciso que faça menos de três quilômetros por litro e seu motorista não conheça nenhuma técnica de condução para optimizar o rendimento.

Um carro particular é totalmente flexível, pode deixar cada um à porta de onde precisa estar. Para quem nunca teve o desgosto de precisar do transporte público, digo que chega a ser perigoso descer do ônibus e ainda ter que caminhar até o trabalho. Em época de horário de verão a situação piora, com a noite ainda vigorando e as sombras encobrindo facilmente um meliante. Nem falo na espera de uma hora e quarenta minutos que já amarguei, ainda mais para uma linha que já foi das melhores da cidade e hoje é uma merreca como qualquer outra. Em Goiânia, pelo menos, quem precisa de ônibus não pode sair ao compromisso com menos de uma hora de antecedência.

Quem tem crianças ou idosos em casa não pode sequer pestanejar a respeito. Não bastasse o serviço ruim, os ônibus são muito altos, tanto na altura do solo quanto na dos degraus. Nossos ônibus são fabricados como os caminhões, duas longas e espessas vigas de aço ligada por travessas, formando uma escada forte e fácil de ser adaptada a diversas necessidades. O problema é que a única necessidade de um ônibus é transportar gente, não precisa levar cargas com imensas variações de altura. O chassi de vigas recebe uma carroceria, cuja altura é adequada àquele. Nenhum ônibus é mais baixo em relação ao solo do que a espessura de seu chassi.
O ideal é que todos fossem monobloco, como os antigos ônibus da Mercedes-Benz, mas com piso baixo. Um monobloco com piso baixo consegue ser tão acessível quanto uma Kombi, ou mais, porque o preço de um ônibus permite recursos de acessibilidade. Mas em nome de baratear customização extrema, como se uma estrutura tubular para monobloco não o permitisse, usa-se o velho e caminhonístico chassi de vigas. Facilita a customização para o cliente, mas é péssimo para o usuário urbano. Especialmente para crianças e idosos.

Aqui vou novamente contra a maré e aconselhar o uso de carros grandes. Não, caros leitores, ao contrário do que o senso comum e leigo prega, carros grandes podem desafogar o trânsito, basta que estejam cheios de gente. Vamos para uma conta simples; Um Ford Galaxie tem cerca de 5,36m de comprimento, um Ford Ka tem 3,83m. O Galaxie leva seis pessoas, o Ka (o novo) leva cinco. O Ka tem 1,64m de largura, o Galaxie tem 1,99m. Na prática, três pessoas no banco de trás do Ka sofrem quase tanto quanto no do Fusca, no Galaxie vai todo mundo folgado, inclusive a bagagem. Na prática, um Galaxie faz o serviço de dois Kas. Dois Kas têm 7,66m de comprimento, mas no trânsito precisam manter distância, então acabam ocupando no mínimo dez metros.
Mudando de marca, Um Dobló pode abrir mão do porta-malas e levar sete pessoas. Sete pessoas em 4,25m de comprimento. Não é grande como parece, mas é encorpado e volumoso, o que garante o conforto dos passageiros. Faz o serviço de dois carros pequenos ocupando muito menos espaço.

As antigas peruas americanas... nem tão antigas assim, a Caprice Wagon saiu de linha em 1996! Podiam levar até nove pessoas, com um banco suplementar embutido no porta-malas. Ela tem o tamanho aproximado do Galaxie, um metro e meio maior do que o que nos acostumamos a comprar, mas faz o serviço de dois ou três carros pequenos; porque ainda compramos caro carros de quatro lugares.
Para o nosso caso, é possível fazer uma adaptação assim na Caravan, que tem um assoalho sobre o tanque, para nivelar o assoalho, o espaço é suficiente para um banco embutido de dois lugares, fácil de ser regularizado no Detran com o carro em boas condições de uso.

Mas mesmo um carro pequeno, para apenas quatro pessoas, pode fazer com louvor o serviço, simplesmente tirando três outros carros das ruas e quatro passageiros dos paus-de-arara urbanos. Durante o percurso, aproveita-se o tempo da viagem, porque muita gente só tem a ele para ter um pouco de vida social. Usar a carona para colocar os assuntos em dia é uma prática preciosa, que pode evitar o distanciamento que acomete amigos e familiares que pouco se vêem. Havendo rodízio a prática só fica mais preciosa, porque o inconsciente grava com prioridade quem é útil, aperta os laços sociais. Falta de vínculos e compromissos sociais, sabemos, é uma das causas da delinqüência.
O motorista percebe em pouco tempo, que aquele sujeito com quem compartilha a carona também é pedrestre, também pode lhe doer o atropelamento de alguém. Isto, alguém que faz questão de andar sozinho no carro, ou nunca usa transporte particular, dificilmente desenvolve. Aquele garoto atravessando a faixa passa a ser filho de alguém, porque ele estará se acostumando a dividir o carro com mais pais de família. Percebe que o seu filho também atravessa ruas.

Alguém vai dizer que o ônibus leva mais gente em um espaço proporcionalmente menor, é verdade. Mas a estes peço que voltem lá para cima e leiam o que já escrevi a respeito. A corrupção corre solta no transporte público. Reduzir sua importância é um meio eficaz de combate à farra com dinheiro público. Por causa dessa corrupção os veículos são sempre superlotados, mal conservados e os itinerários podem mudar sem aviso prévio ao cidadão. Afinal eles trabalham para o governo, não para o cidadão que sustenta o governo. Em uma situação próxima à ideal, o carro poderia ser utilizado somente em dias de folga ou para viagens, mas o Brasil está longe de uma situação boa, quanto mais próxima à ideal.
Bicicleta? Sim, é uma boa opção de transporte individual para curtas distâncias. Mas não dá para levar a família nela, é só para quem não precisa levar mais ninguém consigo.

Não bastassem o conforto e a segurança, o hábito ainda contribui com a melhoria do transporte público, que com menos demanda atenua o péssimo serviço aos usuários. Aliás, com a carona se tornando uma cultura, as empresas de ônibus e metrô teriam que rebolar para conseguir passageiros habilitados. A carona é uma ameaça letal ás máfias do transporte público.

06/07/2011

Coréia e Japão na Vigilância Sanitária

Eles estão invadindo nossa praia!!!

Hoje, pouco mais de uma hora antes de findar meu expediente, apareceram um coreano e um japonês na recepção da minha divisão. O coreano, que se defende o bastante para não morrer de fome em português, serviu de intérprete e conversou com uma de nossas fiscais. Por causa do horário, só restava ela e o turno seguinte tardaria duas horas e meia.

Me espantou e agradou a conduta e a postura dos amigos. O comum é o sujeito fazer-se de machão para intimidar os funcionários e conseguir dar jeitinhos, o que conosco não dá certo. Quando chega alguém de outros Estados, especialmente se conhecerem alguém em Goiânia, é tristemente normal se recusar a seguir os trâmites normais como todo mundo, alegar que "de onde eu vim não tem dessas frescura não!", ameaçar com "Vou falar com o Secretário (ou vereador, ou deputado, ou o raio que o parta) e amanhã tá todo mundo no olho da rua! Eu sou amigo do prefeito, jogo futebol com a base aliada, tenho amigos em Brasília, ah, eu tô maluco!" e outras bravatas que nos tiram do sério.
Os estrangeiros, pelo contrário, ficaram atentos às explicações da nossa colega, perguntaram em detalhes o que precisavam saber, embora indústria e importação de medicamentos não seja a especialidade dela e tenha precisado encaminhá-los para o turno da tarde.

O tom de voz de ambos, e o japonês anotando (em inglês) tudo o que o amigo traduzia, demonstraram uma civilidade rara de se ver entre os empresários(?) brasileiros. Ao contrário do que me acostumei a ver, o tom da conversa entrou nas raias da cordialidade, mesmo as dúvidas não tendo sido totalmente sanadas, e mesmo assim as exigências legais citadas serem muitas. Mesmo sem entender patavinas, pude ouvir com clareza cada sílaba que o japonês dizia, tamanha a clareza de sua pronúncia.

Para constar, eles querem abrir em Goiânia uma importadora de medicamentos e uma fábrica de drogas contra o câncer de mama. Vocês não imaginam o vulto de investimentos que isso demanda!
Não só à colega, mas a boa educação e sorrisos aos contribuintes foi de envergonhar, pelo que nossas atendentes estão acostumadas a enfrentar. O corredor entre as cadeiras e o balcão de atendimento é muito estreito, mesmo assim as pessoas costumam se deitar naquelas e interditar a passagem com as pernas, especialmente os garotões. Nossos visitantes, pelo contrário, se ativeram ao espaço que cabia a cada um e estavam atentos ao ambiente, para dar passagem sem que precisássemos pedir, sempre sorrindo.

O episódio fez-me lembrar de um texto (este) que fiz há um ano, e do avanço rápido com que os orientais estão tomando o mercado nacional. Eles vieram sozinhos de São Paulo, aparentemente sem conhecer ninguém em terras áridas do planalto central. Nenhuma pompa, nenhuma comitiva, nem mesmo uma secretária à tira-colo, não deixando aparentar os recursos vultuosos que estão para trazer à cidade. Uma importadora e distribuidora de medicamentos é muito cara de se abrir e manter, uma fábrica de medicamentos - ainda mais contra um câncer - é mais cara ainda. São productos delicados, muito reativos, que se estragam com grande facilidade e podem dar grandes prejuízos por qualquer descuido
Por isso mesmo acredito que muita gente também será trazida de Coréia e Japão, porque entre nós falta capacitação, nossos cursos são majoritariamente meras palestras prolongadas com diploma de conclusão. Vocês já viram como nossos chapas carregam caixas de medicamentos? Digo "chapas" porque a avareza de nosso empresariado o faz empregar gente tirada directo da construção civil, sem nenhum treinamento, e os remédios acabam sendo tratados como tijolos ou sacos de cimento, levando pancada para encaixar na pilha mal feita. Aliás, esse xarope aí não está com um gosto estranho?

Será uma lição muito bem dada, quando patrões acordarem e se virem recebendo ordens de um extremo oriental, talvez muitos peões fiquem sem emprego até aprenderem a tratar tijolos com a delicadeza com que se deve tratar uma caixa de ampolas, sem com isso perderem tempo e productividade. Será uma transição dura e dolorosa, mas já disse e repito que é nessa gente que está invadindo nossas terras que deposito as esperanças ora órfãs. É um choque necessário à nossa civilização capenga.

Por que eu, tanto admirando as virtudes orientais, não me mudo para o Japão? Porque eu pago em impostos muito mais do que recebo do Estado, então tenho o direito de criticar com conteúdo o quanto eu quiser.

Eles estão invadindo nossa praia, entrando silentes pela porta da frente e a maioria de nós ainda não se deu conta. Quando o brasileiro acordar, as charges dos jornais incluirão rotineiramente os leitores de ideogramas, e os cursos de japonês, coreano e mandarim serão tão comuns quanto os de inglês. Só os estrangeiros estão sabendo aproveitar o bom momento macroeconômico do Brasil, em vez de simplesmente choramingar pela perversidade do governo.

O Ultraje a Rigor (esses doidos aqui) já dizia a um quarto de século, e hoje os novos imigrantes estão cumprindo a profecia roqueira:

04/07/2011

Experimente ser bom

Viram o que fizeram a Ele?

Vamos! Cadê a coragem? A moda não é viver no extremo, na fronteira da sanidade física e mental?
Experimente ser bom, realmente bom, do coração para dentro e veja o que é bom para a tosse!
Ser bom não é bom para quem é. Não neste orbe de expiações, onde a perversidade é vista como caráter e a agressividade como força.

Experimente, vamos! No começo até te olham com bons olhos, aliviados de o mundo ainda ter jeito, de haver uma pessoa honesta por perto, que se importa com os outros como consigo mesmo. Mas é efêmero. Em pouco tempo as tuas virtudes passam a ser vistas como excentricidade, tuas idéias passam a ser tomadas como devaneios utopistas, teu comportamento como afetação e tuas palavras como ofensa aos que cultivam o vício.

No trabalho te confiarão as tarefas mais relevantes, de maior responsabilidade. Tua pontualidade e lisura de concuta deixarão teus chefes felizes e tranqüilos, certos de que tudo sairá a contento. Mas pára por aí. Não será o teu salário que aumentarão tão cedo, muito menos o que receberá maior reajuste. As xerox que tiraste do próprio bolso, porque a copiadora da empresa estava quebrada, jamais serão ressarcidas. A carona que deste a colegas tantas vezes, podes esquecer, nem a mangueira de ar coprimido para calibrar os pneus te estenderão. Aliás, pode ir esquecendo o sonho de subir na empresa. A não ser que o chefão seja (duvi-de-o-dó) metade do que tu és em caráter, amargarás o teu posto até a aposentadoria. Para não dizer que nada mudará, talvez te dêem uma mesa maior e um computador mais potente, para que faças ainda mais trabalho em menos tempo.

Os melhores salários serão para os desocupados, que passeiam pelos corredores, despejando carisma, enquanto observam idéias e métodos que podem apresentar ao chefe como se sua autoria. O reembolso será dado apenas aos malandros que superfaturarem notas fiscais de eventos tão pomposos quanto inúteis, passagens para palestras de motivação batidas que todo mundo conhece de cor e às quais eles realmente não vão. Aqueles que pegam o carro da empresa para ir à lotérica, fazer a fezinha do chefe imediato, esses talvez ganhem até carros novos pelos serviços prestados à corporação. A promoção irá para o papagaio que melhor e mais eficazmente repetir soluções que todo mundo conhece e poucos pão em prática, como tu, mas ao teu contrário os larápios têm todo tempo do mundo para adular e fazer intrigas.

A tua popularidade na escola não será o que pensares. Não que não venham a gostar de ti, pelo contrário, mas ninguém te suportará por perto por muito tempo, depois que tua utilidade estiver cumprida. Ninguém suporta alguém sendo bom sem estar ganhando para isso. Para começar, ainda que consigas ensinar aos colegas, as tuas notas dificilmente serão as melhores. quem tenta ser bom costuma ser mais prático do que teórico, ainda que consiga construir uma máquina complexa com cálculos elementares, nem sempre se lembra direito de uma equação de segundo grau. Quando houver uma mudança inesperada de local de prova, de trabalho, ou quando houver prova e trabalhos de última hora, serás o último a ser avisado, se te avisarem. porque não tens tempo nem verba para gastar em esbórnia, mesmo tendo posses tu preferes gastar tempo ajudando nos negócios da família do que fazendo fama de legalzão em bares e boates. Mas provavelmente não tens abundância de recursos, então precisas trabalhar e talvez procurar emprego. Isto não será levado em conta quando houver uma falha no trabalho acadêmico. O problema será só teu e terás que arcar com ele sozinho.
As colegas te verão como um excelente amigo, mas a maioria delas só tolerará tua índole altruísta enquanto precisar dela, pois, como dizem, "Homem bom só serve pra levar chifre e pagar a conta". Claro, com a idade isto tende a mudar, mas a idade de aprender e se socializar passa rápido. Sinto muito.

Se acaso se meteres em política, então se ferras de vez. Para começar, sabes que não poderá contar com os outros para fazer o que presta, se isto não lhes render poupudas comissões, então vão te sabotar só para se divertirem. Não, não estou brincando. Gente honesta é persona non grata na política brasileira, muito mais do que no resto do mundo. Não vais prometer esmolas, vais prometer usar dos recursos que o cargo oferece, e que não são poucos, para capacitar seus eleitores a subirem na vida por conta própria. Acontece que eles querem esmolas! Eles desaprenderam a ter dignidade, acham que isto é orgulho de gente metida a besta, eles trocam um voto por um lote na periferia sem pestanejar, desde o  Brasil Império é assim. Caso consigas se eleger, o que seria um milagre e por uma margem mínima de votos, será teu primeiro e último mandato, pois não te deixarão fazer nada, se brincar ainda te envolvem em um escândalo que manchará teu nome pelas próximas três encarnações. Será melhor tentar a vida em outro país.

A tua família te ama, estejas certo, ou já teria te executado ainda na puberdade. O teu insucesso, em comparação com os outros sujeitos da tua idade, a irrita. Não demos a desconfiarem que não és homem, ou não honras os seios que tens, depende do caso, para enfrentar a vida. Afinal, teus primos todos já têm algum patrimônio, que importam os métodos utilizados, ou as asneiras cometidas para tanto? Ninguém suporta a idéia de que tu podes ficar a vida inteira morando com a família, ainda que tua intenção seja outra e já tenha sido inequivocadamente exposta.

Não se iludas, não terás reconhecimento nenhum, de ninguém em momento algum. Se teimares em trilhar este caminho, saibas que ele é escaldante à luz do dia, gélido à noite, acidentado, íngreme, repleto de pedras escorregadias, e que praticamente ninguém vai te ajudar a andar quando se ferires, porque vais se ferir muito e com grande freqüência. Caso tenhas destaque social, serás uma excessão à regra, tão rara que ninguém esperará ver outro como tu conseguir o mesmo neste século.

Não cultivarás nenhum inimigo, mas o facto de não ver o inimigo de alguém como seu inimigo, fará aquele te ver como inimigo potencial. Tu serás inimigo de alguém sem teres feito nada contra ninguém. Assim sim, de graça.

Quem te disse que ser bom te poupa de alguma atribulação, mentiu. Quem te disse que ser bom atrairá a bondade dos outros, mentiu. Quem te disse que ser bom é bom neste mundo, mentiu. Ou no mínimo se equivocou crassamente.
Ser bom faz os outros verem melhor as falhas que preferem esconder, traz à tona o incômodo de ter que ver em tamanho real o erro que se tentava minimizar. Quem não usa drogas e se recusa mesmo a experimentar, vai incomodar muitos usuários, que te verão como possível delator, ou potencial censor caso venha a ter algum poder para tanto. Quem não se corrompe é visto como perigo extremo pelos corrompidos, porque ter o rabo livre te permite balançá-lo para onde tua consciência quiser, e isto pode ser muito perigoso para a integridade política e até física de um corrupto.

Se tens medo do que pode te acontecer, não dê sequer um passo adentro deste caminho. Vão te ferir. Nem todos serão maus, mas os ignorantes são facilmente manipuláveis e são rapidamente convencidos de que queres tirar o pouco que eles têm. Vão te usar como escada, sem escrúpulos, depois te abandonar assim que galgarem os degraus seguintes. Te farão promessas e te deixarão quase na miséria, para depois dizerem que não te prometeram nada e nunca te obrigaram a entrar em uma empresa. Tudo o que puderem sugar de ti, os vampiros do mundo sugarão.

Agora, se já deste alguns passos portão adentro, se continuas caminhando apesar do desconforto, se conseguiste achar que o caminho em si não é tão impiedoso quanto eu disse, meus pêsames. Acontece que ser bom vicia. Ser bom não tem cura e nada no universo vai te convencer a retroceder. Me dê a mão, que com os outros já sabes que não podemos contar.