31/03/2022

Esther e Sarah; A beleza

 

The American Look of 1945 by Nina Leen

Sarah visita a mãe levando um pequeno pacotinho barulhento de carne e travessuras. Esther recebe as duas de forma efusiva e calorosa, pega nos braços aquela bonequinha que dará a primeira continuidade ao seu sangue e a balança com suavidade. Ela serve suas descendentes, a pequena Maria com leitinho morno e à filha com chá de hortelã e biscoitos de limão. As duas conversam amenidades em voz pausada para a pequenina se familiarizar melhor com as palavras e o bom português decentemente pronunciado, dando-lhe todos os afagos que lhes pede. A matriarca sobe aos seus aposentos e desce em seguida com duas camisetas que mandou estampar…

 

- “Mamãe arquiteta projetou essa estruturazinha linda”! Mama, eu amei!

 

Ester sorri largamente enquanto sara veste a si e Maria com as peças, cujas colas em “V” e os arremates de mangas foram customizados com flores ao estilo das culturas balcânicas…

 

- Eu queria tanto poder caprichar nos meus projectos como caprichei nessa bolinha de carne barulhenta que tira meu sono todas as noites!

- O que te impede de fazê-lo, Sarah?

- Os próprios clientes, mama. Meu escritório tem uma salinha cheia de maquetes e sketches de demonstração, mas eles preferem essas coisas que estão na moda… até consigo aqui e acolá colocar pontos e detalhes de beleza e personalidade, mas nada além disso…

- Que tristeza repentina é essa, minha filha? Conte para sua mama.

 

Ela conta à mãe com uma mágoa indisfarçada, até porque sabe que não adianta esconder seus sentimentos de quem conhece até o modo de suas írises contraírem. Diz ouvir muito que beleza, entre muitas outras coisas, é construção social e não deveria sequer ser posta a público…

 

- Enganam-se! Essa afirmação estapafúrdia não tem fundamento.

- Mas tem narrativas fortes.

- Há aves pequenas que cantam e são ouvidas a quilômetros, mas todos calam-se imediatamente assim que vêem uma águia.

- Sei, mas como dizer a um acadêmico cheio de títulos que ele está errado?

- Se ele estiver errado, simplesmente diga que está. Somente Deus não erra, abaixo D’Ele, todos são sujeitos a falhas, tanto mais quanto mais arrogante se for.

- Muitos deles são ateus, então…

- Isso é irrelevante. Esse tipo de ateu arrogante tem seus deuses, só que de carne e osso. Sente-se, respire pausadamente para não preocupar Maria, vou servir-lhe mais chá e biscoitos então explicarei.

 

Sarah se senta acariciando a filha no colo, faz o que a mãe pediu então é servida com finesse. Não se trata de elitismo, mas de autocontrole, utilizando-se da cerimônia do chá para recuperar o centro e se colocar no comando das emoções…

 

- Minha joia, antes de mais nada existe sim um padrão natural de beleza, que não é absolutamente rígido, mas tem suas regras claras e escritas pela própria evolução de cada espécie. Não se trata de futilidade estética, mas do resultado de bilhões de anos de aprimoramento até chegar ao que melhor funciona para a subsistência da espécie na nossa era. As espécies mais primitivas, como alguns reptilianos, se atêm a quem se pareça consigo e que emane odores específicos, mas até entre eles há diferenças fenotípicas entre o macho e a fêmea, que ajuda um crocodilo a não se meter no território de outro macho da espécie.

- Horror! Horror! Horror! Se eu tivesse dito algo assim na faculdade, teria sido decapitada!

- É com muito pesar que eu acredito. Não é de hoje que vejo essa negação da beleza, desde os anos setenta que grupos começaram a tratá-la de modo pejorativo e apontando o dedo para as moças que se cuidavam. Sabia que já puxaram meu cabelo, me acusando de sabotar as causas da liberação da mulher por “subserviência ao namorado”?

- Putsgrila! A pessoa não saiu impune, saiu?

- Decerto que não. Precisei desfazer o coque e prender num rabo-de-cavalo, mas a criatura estúrdia precisou de intervenção odontológica. E aqui vem outro ponto de nosso tópico; é justamente corrompendo as guardiãs da beleza, nós, que os dejetos genéticos conseguem numerário para seus fins espúrios. Incentivar a anorexia e a bulimia, acusando de preconceito e intolerância até mesmo aos médicos que se opõe a isso, faz parte dessa doença. Ponha uma coisa nessa sua cabecinha ainda tão jovem, que mal fez dezoito e já nos deu esta pequena bênção: Beleza é natural e essencial. Como eu disse, cada espécie tem a sua, e nisso reside sua relatividade, não nas narrativas de gente revoltada com o mundo que as sustenta. À parte os excessos, incentivados justamente por essa gente, a beleza humana tem sim um padrão com boas margens de tolerância; para mulheres é de feições delicadas, busto farto, cintura fina e quadril largo; para homens é feições severas, peito largo, braços fortes e postura altiva. Basta ver em agrupamentos mais primitivos e reconhecerá esses padrões, com maior ou menor intensidade, mas estão sempre lá justamente porque funcionam.

- E a senhora?

- Eu o quê, Sarah?

- Esbelta!

- É a minha compleição (risos)! Mas veja, não me furtei o direito a camadas salutares de gordura, isso me esculpiu… Sim, mesmo assim sou um tanto esbelta, mas nunca quis ser a gostosona do bairro.

- Nem na sua época de adolescente revoltada?

- Nem naquela época. Minha mãe me ensinou a ser crítica com o que vem de fora, isso me ajudou a ver que os grupos que tentavam me cooptar não eram diferentes dos outros, um lado me via como objecto, o outro como instrumento. Aprendi a me arrumar para mim, para gostar do que vejo no espelho, só depois de grandinha é que percebi que isso agradava aos garotos.

- A senhora me ensinou isso também…

- E espero que você ensine Maria.

 

Uma pausa, mais afagos em Maria, mais uma fornada de biscoitos, desta vez de chocolate, e mais um pouco de chá. Falam um pouco sobre Jacob e sua luta para fazer propagandas acima da linha do medíocre, ele sempre se lembrando com pesar da genialidade simples que eram os reclames do Fiat 147, em comparação com o lixo caro e caótico que usam para promover os carros de hoje, que não são muito melhores do que suas campanhas publicitárias…

 

- Eu compreendo e oro por meu filho, para que tenha forças e discernimento, porque sei muito bem em que ninhos de serpentes ele precisa pisar todos os dias. Lembre-se, Sarah: Um simples elogio não é por si mesmo um assédio, gostar do corpo feminino saudável não é machismo, tem mais afinidade para um fenótipo do que para os outros não é racismo, ficar horas admirando um corpo nu em uma revista não é estupro…  tem outros nomes, mas nem de longe é uma violência dessas…

- Ra! Ra! Ra! Ra! Ra! Ra! Ra! Ra!

- Eu chamaria essa fixação, de modo elegante, de puerilidade compulsiva…  mas voltemos ao assunto… Aquela frase desprezível “a quem a biologia serve” é mais uma invenção dos negadores da beleza, repetida à exaustão por gente que repete bordões alheios pensando que tem pensamento crítico. A biologia não serve a ninguém, ela não precisa de nós, existe desde antes da primeira cissiparidade, já agia nos coacervados para evoluírem até formarem os primeiros seres vivos. A medicina é sua filha primogênita, tudo o que ela faz é seguir os ditames da mãe para não cometer erros que não possa reparar. Você sabe como surgiu esse padrão de beleza que temos hoje no ocidente?

- Hollywood?

- Não. Por incrível que pareça, não foi obra de uma mídia. Foi nos anos 1940, quando a ciência passou a se valer de métodos mais rigorosos de pesquisas, o que infelizmente acabou gerando mais impessoalidade do que o necessário, mas deu frutos de que nos servimos ainda hoje. Uma dessas pesquisas revelou o que seria o corpo perfeito, do ponto de vista da saúde, e o resultado foi algo muito próximo do padrão natural de beleza humana; nada de esqualidez e tampouco excessos de adiposidade, mas simplesmente um corpo equilibrado com musculatura moderadamente desenvolvida, um pouco de abdômen, no caso do corpo feminino mais sinuosidade, postura erecta e olhar altivo. Como modelo se utilizaram de uma atleta, mas uma mulher tipicamente americana, sem nada de extraordinário em suas medidas e nem mesmo com um rosto particularmente bonito. Isso coincidiu com os valores de uma década que estava emergindo da grande depressão, a austeridade em todas as áreas ainda era vista como demonstração de civilidade e elegância, numa época em que elegância era parte do padrão social de beleza. Inclusive recentemente um corpo assim foi classificado como perfeito pelos cientistas, da modelo Kelly Brook. Ela não é uma atleta, como os escolhidos para as pesquisas nos anos quarenta, é simplesmente um corpo perfeito, mais sinuoso e macio do que na época. O atletismo antes dessa onda de doping, por ser sinônimo de saúde, foi o padrão utilizado como ponto de partida para o que divulgaram porque era um bom exemplo para a juventujde. O resultado é que por décadas o corpo curvilíneo e bem tonificado foi objecto de desejo das moças.

- E as gordinhas sofreram.

- Em muitos casos sim. O prêt-à-porter adorou o que considerou uma padronização do corpo humano, sem atentar para a flexibilidade de proporções que esse corpo perfeito permite, por outro lado isso garantiu o trabalho das costureiras que ajustavam as peças. Mais padronização, menos custos de produção, isso é óptimo para a fabricação de máquinas e insumos, mas não tanto para vestuário. Com a dificuldades em encontrar números adequados, especialmente as mais jovens, o humor de mal gosto teve início oficial, o resto nós já sabemos.

- Os cientistas com a melhor das intenções apontaram um norte…

- E os picaretas da moda transformaram uma estrada reta num labirinto. Claro que os ideólogos viram a oportunidade perfeita para cooptar pessoas com cujas lágrimas as pessoas não demonstravam compaixão, eles também não dão a mínima, mas fingem magistralmente que sim e guiam essas pessoas para outro labirinto. O mote é “Se agrada ao meu inimigo, é ruim”, mesmo que até então agrade à pessoa em questão também, de então em diante passa se reprimir para odiar. Assim começam a se encher de tudo o que não presta, seja comida, bebida ou drogas, para se afastar da harmonia de proporções que caracteriza um corpo saudável, porque o inimigo da causa aprova.

- Nem tudo é construção social…

- Não, na verdade o espaço para “construção” é mais estreito do que parece, as condições em que um ser humano consegue sobreviver são restritas, qualquer abuso comprometeria irreversivelmente a sobrevivência do indivíduo, por conseqüência também do grupo que integra. Os povos primitivos precisavam ser pragmáticos, se apegar ao que funciona e descartar o que não funciona, não existia mídia naquela época, foi assim que todas as tradições nasceram, e em todas elas a beleza tem papel central. O uso de coincidências como se fossem provas, à moda de advogados baratos de porta de cadeia, é uma das vigas frágeis desse chassi de vidro que sustenta essas narrativas negacionistas, e por isso defendem-nas com tamanha ferocidade, não admitindo que a outra parte tenha espaço para se expressar; no fundo, sabem que é tudo mentira, como num casamento de conveniências. Não precisamos que revoltados e picaretas nos ditem o que é belo ou não! Nós sabemos instintivamente o que é belo aos olhos humanos, um corpo harmonioso é belo e a beleza não é um crime.

 

Sarah acaricia as bochechas da filha, pensando em que tipo de mundo ela vai crescer, se desde que se sabe por gente ele só tem piorado. Se lembra de quando participou de um concurso informal de pinups no colégio e, justo na sua apresentação, o salão foi invadido por gremistas que queriam reprimir o evento e proibir futuros, gritando palavras de ordem sem dar chance de resposta, apontando dedos e acusando os presentes como se fossem criminosos, apesar de todos terem participado por seu próprio arbítrio; ninguém interferiu nos protestos pró drogas que aqueles fizeram dias depois. Fizeram outro concurso depois, em ambiente privado, mas aquilo não lhe sai da memória, nem a intervenção furiosa de seus pais na sala da reitoria. Ela olha para a mãe e toca no assunto…

- Eu acompanhei a vida de cada um deles, naquela época… metade já morreu de overdose.

 

Sarah arregala os olhos em uma expressão de terror que não surpreende Esther.

 

- Adivinha se houve mea-culpa ou mesmo um lamento pelo caminho que os idiotas escolheram…

- Aposto que não… exigiam respeito sem ter que respeitar a decisão alheia. Quando descobriram que eu fui premiada no estilo Alberto Vargas, apareci como pária no jornal do grêmio.

- Como foi quando decidi ser exclusivamente dona de casa. Meu corpo, minhas regras. Eu decidi preservar o que é naturalmente feminino em mim, e foi por isso que as pistoleiras se viram no direito de tentar sabotar meu casamento… e havia feministas incentivando, justo aquelas que me jogaram pedras na escola…

 

Sarah suspira fundo, vê nas edificações modernas os resultados disso, tem verdadeiro horror por fachadas de vidro, tanto pelo racionalismo patológico de conjuntos habitacionais financiados pelo Estado…

 

- Assumir a beleza é um risco.

- É um risco… muita gente usa da própria inveja para insuflar essas manifestações, fazendo direitinho o jogo dos cafajestes, que têm a chance de aprisionar uma mulher bonita que se sente culpada por sê-lo. Irônico, não?

- Não, nem um pouco irônico. É hipócrita mesmo.

 

Esther anui. Sarah dá o bebê à mãe e se levanta, vai ao espelho da sala, ajusta a camiseta e se admira, nota os glúteos que se formaram com as inúmeras vezes diárias em que sobe e desce os três andares que separam seu escritório do térreo, arregala os olhos, puxa uma perna das calças e nota a tonificação da perna, escancara o sorriso e olha para a mãe, que aplaude sendo imitada pela pequena…

 

- Quer saber? Vou encomendar um ensaio photográphico.

- Estou ansiosa para ver você finalmente assumir a sua beleza!

- Espera! Fique assim, do jeito que está!

 

Sarah saca o celular, abre a câmera e pega distância. Enquadra bem a cena explícita de feminilidade de sua mãe de vestido médio azul claro com a neta no colo, naquele sofá minimalista em cinza mescla claro, com flores nas mesas laterais e o jardim ao fundo. Ajusta a exposição, dá a maior resolução possível e presenteia a família inteira com aquela cena. Esther enrubesce, mas não perde a pose.