24/07/2013

Uma Guerra de Luz e Sombras - Resenha

Cena de A Divina Comédia

Quando a Eddie me convidou para ajudar na revisão desse livro, logo fiquei de orelha em pé. Ela sabe de minha cisma com histórias de terror, ainda mais se houver violência; e o livro é muito violento! Contraindico para pessoas sensíveis, desaconselho para crianças.

Eu não me refiro àquela coisinha estúpida de desocupados do "clube da luta", me refiro a gente que tem motivos reais para ser cruel, querer que o outro sofra até depois da morte, não somente para ter emoção ou provar que é macho... algo que prova justo o oposto.

Bem, voltemos ao livro. Trata-se de literatura fantástica, mas com os pés bem plantados no mundo dos mortais. A autora passou muitos anos estudando, pesquisando e embasando sua trama, para depois pô-la sob o crivo crítico de seus leitores. É um livro grande, levei uns meses para ler e digerir tudo.

A ambientação, o argumento, o roteiro, tudo beira a perfeição. Algo que um filme, infelizmente, não reproduziria nas telas... Os livros sempre são melhores  do que os filmes derivados. Até o mundo espiritual é descrito como mesmo as obras espíritas falham em fazê-lo. Sabiam que vocês podem criar um mundo espiritual do seu jeito? E mais, ir morar lá, quando se desvencilharem do corpo físico... Só que não é tarefa para qualquer um. Aliás, o livro também não é para todo tipo de leitor, não ter preguiça é fator eliminatório.

Qualquer um com um pouco de imaginação, pode se ver dentro de cada ambiente, com grandes chances de outros leitores descreverem quase que os mesmos detalhes, porque ela é detalhista, vai contando o que tem e como é, enquanto a porrada corre solta. Mas como eu disse, nada no livro é gratuito, mesmo o que nos parece ser. O que parece não ter sentido agora, algumas páginas ou capítulos mais tarde, terá sua função revelada.

Os traumas mais brandos e esquecidos, são usados pelo inimigo para atingir nossos heróis, especialmente o mocinho, que acaba virando o bode expiatório de todos os outros personagens... ao menos dos que conseguem sobreviver. Prestem atenção a isso, quando começarem a ler, porque são alertas e lições sérias para a vida real, com ou sem magia. As pessoas de verdade também fazem um pouco disso, não te mandando para o deleite de demônios, quando fores dormir, mas fazem.

O que pode desagradar muita gente, é que ela colocou sua essência na trama. Eddie é uma bruxa. O livro está recheado de princípios mágicos, de feitiços, mancias, algumas vezes até ensina alguns rituais e bruxarias pesadas. Nada, porém, que o leitor disposto a correr o risco não possa fazer, em um momento de urgência. Ela é meio maluquinha, mas não é irresponsável.

O ritual de banimento, baseado na oração do Pai Bento, é o que fica mais claro e fácil, mesmo para quem nunca sequer deu três pulinhos para São Longuinho. Isto também vai irritar muita gente, porque desmente alguns dogmas da Igreja, revelando ao cristão comum um poder que ele não sabe que tem.

Para a trama, Eddie Van Feu recrutou, na marra, um grupo de policiais bem barra pesada, e um comandante que já foi processado por coisas bem ruins. Ou seja, ninguém lá é santo. Bem intencionados, talvez, tenho minhas dúvidas, mas nenhum é irrepreensível.

Quanto aos vilões, vou dizer com base em minha experiência lidando com bandidos da pior espécie, e com os policiais que os reprimem; o mais bonzinho desses vilões é pior do que o traficante mais perigoso. Muito mais. O traficante quer se dar bem às sua custas, te deixar vivo é um bônus para eles, os vilões do livro necessariamente precisam da desgraça de alguém para se sentirem satisfeitos. E não é apenas fazer mal e procurar outra vítima, é perpetuar o sofrimento e buscar outra vítima para acrescentar sofrimento. Principalmente, o traficante não tem idéia de que não passa de uma marionete, os nossos vilões são da turma dos manipuladores.

Algo, aliás, que minha amiga deixa claro, é uma das muitas diferenças ente os bons e os maus. Estes sempre aprendem com seus actos, mas jamais com as lições que eles oferecem, ou deixariam de ser maus.

Um ponto que vai agradar muita gente, talvez até os que odiarem o livro, é o banho de cultura e humor. Escrito no mesmo formato das séries policiais americanas, a trama descreve brevemente, por exemplo, os aspectos da magia haitiana, na pessoa de um dos personagens mais carismáticos... e também dos mais perigosos, um feiticeiro chamado Landau.

Eu até poderia dizer como o livro termina, mas estragaria o que ele tem de melhor a oferecer, que são as lições da história. O que importa, para quem sabe viver, não é simplesmente chegar, mas a carga com que se chega, e Uma Guerra de Luz e Sombras oferece muito conteúdo ao leitor atento. Chegando à última das mais de seiscentas páginas, o bom leitor descobre que o viajante de verdade jamais chega, porque cada destino é um ponto de partida. E tudo o que Danny Shelley quer, depois de ter, a rigor, morrido, é continuar sua vida e chegar à próxima estação, ciente de que sempre haverá outra.

Eu recomendo a obra para o leitor ávido por uma história inteligente, gostosa de se ler, mas com nervos fortes e mente aberta, porque é uma trama muito pesada. Como eu disse, nada é de graça no livro, os vilões premeditam milimetricamente cada maldade, de modo a extrair o máximo de prazer de cada uma, não importa a que custo para a vítima e sua família.

Asseguro que depois do "Fim", ma parte de vocês terá morrido, mas haverá outra bem mais aprimorada no lugar. Boa leitura.

18/07/2013

Mademoiselle Anita


Ainda me lembro como se fosse ontem. Era uma mulher bonita, sempre usando o mesmo vestido preto, ou talvez sempre o mesmo modelo... Bem, não tenho tanta certeza, aquela escultura feminina não permite ver detalhes da indumentaria, sabe...

O certo é que ela chamava atenção, muita atenção. Mesmo evitando olhares, era uma mulher altiva, segura de seus passos e aparentava saber para onde ia, e que ninguém deveria se colocar no caminho. Passos calmos, mas firmes, um modo discreto de averiguar sua sacola de compras e, creio ter visto, um relógio que sempre tinha em mãos.

Não posso dizer com certeza absoluta que ela estava lá todos os dias, mas sempre que eu estava lá, por lá ela passava. Aliás, nunca soube de que panificadora ela vinha, ainda mais tão arrumada. Dava a impressão de que estava na activa durante a noite e passava em algum lugar para voltar com pães quentes. Dava para ver o vapor saindo deles, o cheiro que eu nunca encontrei em panificadora nenhuma... Pareciam ter manteiga de leite na massa!

Dei uma de esperto, certa feita, e saí pela noite, nas zonas das meretrizes, ver se a encontrava. Eles riram da minha cara! Todo mundo riu de mim! Soube então que era conhecida como mademoiselle Anita, que era moça fina, bem conhecida e respeitada no meio, mas que não era profissional do ramo. Nada mais. Parecia que a protegiam de curiosos.

Fiquei amigo deles, e eles me ajudaram muito, quando as coisas bagunçaram por aqui. As atrocidades nazistas já atravessavam fronteiras, por judeus que fugiam da Alemanha.

Uma vez eu tentei abordá-la na rua, mas faltando uns doze metros, um trio de rapazes cruzou o caminho e, quando passaram, ela não estava mais lá. Ainda que corresse sobre nuvens, não teria havido tempo. E a saia não era tão folgada que permitisse performances atléticas! Não sem deixar aparecer tudo e fazer todo mundo em volta parar.

Durante anos, até o início da guerra, via essa mulher passando nesta mesma rua, nesta mesma esquina, nesse mesmo horário. Mas já pode imaginar, judeu que tinha juízo se mandou da Europa e foi para a América. claro, não sou judeu, mas todo mundo pensava que eu fosse, e a minha fama era de ser um judeu discreto, não consegui convencer quase ninguém de que não era.

É, o facto de eu ler e falar hebraico a ponto de ter te ensinado, corroborou para a minha fama. Já fui expulso de uma igreja no interior, por causa disso. Mas, voltando à nossa dama, o mais interessante era ela chamar atenções sem, como direi, sem parecer ser nova, ou ter algo de extraordinário. Ela andava como se não tocasse o chão, mesmo requebrando, coisa incrível.

A maquiagem naqueles fins dos anos trinta, era marcante, até para compensar o pessimismo em que o mundo vivia naqueles tempos, por causa da grande depressão... Algumas exageravam, mas ela não. Embora forte, sua maquiagem era sempre equilibrada, impecável, e sempre a mesma! e parece que só eu percebia isso!

O mais intrigante é que ela parecia inalterada, quero dizer, os anos pareciam não passar para ela! Nunca ouvi sua voz, ela só cumprimentava os conhecidos por gestos com a cabeça e sorrisos. Nunca encontrei a panificadora de onde saía com aquela sacola sempre cheia, nunca consegui segui-la, nunca sequer consegui dar um bom dia para...

- Era parecida com aquela moça, vô?

- Não, não era parecida com ela... É ELA! Meu Deus, é ela! Mas não mudou nada, nem maquiagem, nem a roupa, nem o andar, nada!!!

- Tem certeza? Sua testa tá fria, mas...

- Me respeita, menina! Estou velho, ma estou lúcido...

- Ela tá vindo.

- Bonjour, monsieur De Champs! Pontual como sempre!

- Você me conhece??

- Ra, ra, ra, ra, ra, ra... Oui, me lembro do monsieur ainda garotão, tentando me alcançar na volta da panificadora. Peço desculpas, eu estava sempre muito apressada, tinha urgências a tratar.

- A mademoiselle é médica ou algo assim?

- Non, monsieur. Anita é meu apelido, me conhecem mais formalmente como Boa Morte, para os que se portaram bem durante a vida. Hoje poderemos conversar sem pressa.

Conversam por alguns minutos, Anita Boa Morte agradece à mulher por ter ajudado a cuidar de seu amigo e diz que assume de agora em diante .Ela se ata ao seu braço e o leva, ele cai e vai embora consigo, deixando a neta desesperada.

FIM

15/07/2013

Uma guerra de Luz e Sombras



Há uma parcela do mundo real que o mais absurdo delírio é incapaz de reproduzir.

Há uma parcela do mundo real, que o mais tenebroso e cruel filme te terror seria incapaz de transmitir às telas.

Há uma parcela do mundo real que faria a mais intensa e abrangente das dores, parecer um pedaço do paraíso.

Há uma parcela do mundo real que as pessoas comuns tomam como fantasia de escritores, e por isso até vêem graça em sua descrição.

Há uma parcela do mundo real que os céticos duvidam que exista, e para sua sanidade mental, é melhor que continuem a duvidar.

Há uma parcela do mundo real que só os poucos lúcidos, tomados por lunáticos pelos comuns e céticos, têm ciência de que existe... E destes poucos, menos ainda estão prontos para enfrentar.

Há uma parcela do mundo real, que calaria permanentemente os mais experientes e inescrupulosos apresentadores de programas policiais.

Eram apenas policiais de elite, cujas identidades só o alto comando conhecia. Eles eram policiais comuns, barras-pesadas, acreditando que passariam a vida inteira enfrentando e enterrando psicopatas e traficantes da pior estirpe. Eles acreditavam que já conheciam o máximo da perversidade humana.

Um dia eles descobrem que sua experiência não vale absolutamente nada. Um dia eles descobrem que sua bravura é absolutamente inútil. Um dia eles descobrem que seu treinamento não faz frente nem ao mais fraco dos inimigos. Um dia eles descobrem que seus segredos mais caros e dolorosos estão escancarados para esses inimigos. E eles os exploram sem piedade.

Então eles percebem que o inimigo os conhece, que sabe cada detalhe de suas vidas, mesmo o que eles mesmos já tinham esquecido. Então o inimigo prova várias vezes que eles não são invulneráveis, que não são heróis, que não são nem mesmo fortes... E que a própria polícia nada pode fazer por eles, que eles mesmos não puderem fazer.

Eles não querem tirar o que é seu e ir embora. Não querem te matar e sair rindo. Não querem violentar sua família e te deixar impotente para reagir. Tudo isso é bondade para eles. Tudo isso, para eles, é gracejo de amadores. Eles sabem como fazer sofrer, de extrair do subconsciente o desejo de uma morte que nunca virá, mesmo depois de morto.

Episódios de violência extrema e perversidade brutal além da capacidade humana, protagonizados por pessoas que estão fora do alcance da lei, que não podem simplesmente ser presas e processadas, que nem mesmo a morte física poderia deter, porque a rigor não estão mais vivas. Seres amaldiçoados, que encarnam a maldade em seu grau mais puro, baixos demais para estarem vivos. E no que depender deles, você também não estará por muito tempo.

O inimigo não se cansa, não desiste, não mede esforços e não se importa com nada além de seu objectivo, que é te destruir de tal forma, que nem a eternidade no inferno de onde vieram, te fará esquecer e fechar as feridas. Cercado de luxo e status social, ele está acima de qualquer suspeita, tem sempre o álibi perfeito, te estrangula mesmo sem estar presente, e a culpa, se sobreviver, é sua.

Este não é um livro para quem adora filmes de psicopatas, para quem adora monstros de cinema, para quem acha que desfiar a morte é prova de coragem. é um livro para quem encara a morte sabendo que pode ser puxado a qualquer momento, para quem sabe que a dor psíquica, ao contrário da física, não tem limites, e mesmo assim a enfrenta com dignidade.

Se você pensa que é forte, que é um herói, que está pronto para morrer, este livro vai te provar o contrário. Você é fraco, é um covarde, vai se borrar de medo assim que a foice do coletor realmente tocar seu pescoço. E vai descobrir, depois, que o sofrimento não acaba aqui.

Este livro vai te ensinar humildade, respeito para com a vida, com o próximo, para consigo mesmo. Danny aprendeu da pior forma, que uma única fraqueza não enfrentada no tempo certo, pode lhe custar muito mais do que a vida. Ele aprendeu então a dar valor a cada acto de respiração, e é bom você também aprender, porque pode ser privado dele... A qualquer momento.

Da aclamada escritora de ficção fantástica Eddie Van Feu...

                                         UMA GUERRA DE LUZ E SOMBRAS

                                      
Em Agosto, na Bienal do Rio de janeiro


11/07/2013

O cienasta, a blogueira e o espião



O cineasta estava desiludido com seu país.

Não que não o amasse, mas quem já não teve ganas de torcer o pescoço de quem ama? O problema é que sua profissão exigia que escolhesse entre a completa alienação, e a petulância midiática escancarada. Escolheu a segunda.

Fez um filme para mostrar que seus compatriotas comiam muito e muito mal. Que gastavam rios de dinheiro para se envenenar e ainda fazer caras de comercial de fast-food. Na realidade, ele mesmo se usou como cobaia, uma cobaia meio conveniente, já que sempre fora bom de garfo, mas acredita que deixou seu recado.

Deu resultados interessantes, uma vez que as redes de lanchonete afins, passaram a oferecer opções menos adiposas, algumas até bem saudáveis, embora o tradicional pão com sabor de papelão engordurado continue figurando no cardápio. Deu tão certo, que se especializou no gênero.

Não que quisesse o fim da democracia, de jeito nenhum, morreria de fome se isso acontecesse. Seus ataques ao capitalismo, ao menos ao modelo vigente, já que não conhece outro, no entanto, estava a cada dia mais retumbante. Fazia críticas ao consumismo desregrado e descriterioso a que seu povo se entregara. Lhe doía o peito ver gente vitimada pela crise, causada por especuladores inescrupulosos, com dificuldades em se sustentar.

Estava vendo o terceiro mundo dentro de seu território nacional, isso o incomodava. Na verdade, isso o deixava muito furioso, a ponto de não dar mais bola para o cofrinho aparecendo, de vez em quando. Então ele passou a atacar o governo de todas as formas não violentas que podia. E, vivendo em uma democracia, e contando com seu prestígio, ele podia muito. Chegou a ser execrado por boa parcela dos políticos de seu país, e até por uma pequena parcela de colegas de profissão.

Alegavam que ele, que tanto combatia o capitalismo, era a própria personificação de que o sistema funciona. Meia verdade, ele sabia. Funcionava até certo ponto, e era implacável com quem falhasse, como se seres humanos não fossem susceptíveis a falhas, mesmo os mais atentos e bem preparados.

Como quem ama de verdade, ele passou a falar muito mal do governo, mas muito mal mesmo! Escancarando toda a hipocrisia histórica que seus compatriotas nem sempre se lembravam que havia. Na realidade, sua luta mesmo, de verdade, era contra a ignorância funcional deles, e atacar o sistema era uma forma eficaz de chamar suas atenções, embora nem sempre da maneira que planejava.

Sendo cineasta, viaja muito, para várias partes do mundo, mas sempre volta para seu amado e odiado país, com o qual vive entre tapas e beijos. Ele fala muito mal dele, mas sempre volta, simplesmente porque pode voltar sempre que quiser; sempre mesmo.

A blogueira estava desiludida com seu país.

Não que não o amasse, mas quem ama tem que corrigir as faltas. O problema é que sua formação exigia que ela escolhesse entre a cumplicidade cega, e a arriscada postura crítica. Escolheu a segunda, com todos os riscos afins, que com o tempo se confirmaram.

Fez um blog para mostrar que seu povo vivia muito mal. Que faziam vistas grossas para violações diárias da dignidade humana, especialmente de mulheres e homossexuais, e que o regime não tinha abolido o racismo, com apregoava.

Na realidade, ela mesma se burilava enquanto escrevia. Deu resultados interessantes, uma vez que conseguia cada vez mais seguidores, dentro e, principalmente, fora de seu país. Embora ela e seu marido fossem constantemente chamados a dar explicações, não raro presos sem explicações formais, mas acredita que está dando seu recado.

Não que quisesse ver gente vivendo em condições sub humanas, como sabia que havia em países mal administrados, apesar de ver isso em seu próprio, tinha uma cultura de solidariedade bem arraigada. Seus ataques ao regime estavam cada dia mais escancarados. Fazia críticas à miséria do povo, enquanto os "líderes" viviam cercados de luxo e pompa, como uma casta.

Como quem ama de verdade, passou a mostrar para o mundo inteiro, que a vida por lá não era essa maravilha que as cartilhas ensinavam até lá dentro, que havia sim o crime de opinião em seu país. Chegou a ser execrada pelos intelectuais mais próximos ao governo, até pelos simpatizantes de outros países, que até a hostilizaram quando finalmente pôde sair.

Alegavam que ela, que teve a educação custeada pelo Estado, agora o atacada como uma traidora de seus líderes. Meia verdade, ela sabia, o dinheiro não saía dos bolsos deles, mas do trabalho da população explorada. e dos dissidentes que eles mesmos chamavam de traidores, mas do qual não abriam mão.

Como quem ama de verdade, ela começou a falar muito mal do governo, mas muito mal mesmo! Escancarava a hipocrisia do discurso marxista, que lhe desgostava cada vez mais, porque via que a prática não estava correspondendo à teoria. Na realidade, sua luta mesmo, de verdade, era contra a ignorância funcional de seu povo, que servia de propaganda para um serviço público que já não existia, herdado do antigo regime, e que já mal dava conta do básico.

Sendo uma ditadura, só lhe foi permitido viajar para fora uma vez, após inúmeras tentativas. Lá fora, foi seguida por espiões do seu governo, que incitavam os simpatizantes a hostilizá-la e de modo algum deixá-la se expressar, embora sempre, em seus países, reivindiquem para si o contrário. Ela voltou, após a turnê financiada por amigos, sem saber se um dia voltaria a ter essa liberdade, nem o que lhe custaria, doravante.

O espião estava desiludido com seu país.

Não que não o amasse, mas quem ama não tolera desvios de caráter. O problema é que suas funções exigiam escolher entre fechar os olhos e fingir que estava tudo bem, e jogar farofa no ventilador, jogando junto um futuro brilhante que o esperava.

Repassou documentos secretos a um activista que colocou tudo na internet, para quem quisesse ver. Para mostrar que certos direitos não estavam sendo respeitados, que ninguém estava a salvo da espionagem em seu próprio país.

Deu os resultados esperados, até os ruins. O povo passou a questionar, pensar um pouco por conta própria, e descobriu o que era na verdade aquela lei de segurança aprovada pouco antes da posse do presidente; que ele não podia se negar a cumprir.

Não que quisesse derrubar o sistema, sabia que ele poderia funcionar muito bem, se fosse levado com escrúpulos e no estrito cumprimento das leis mais básicas das liberdades individuais. A coleta indiscriminada e sistemática de dados sobre os passos dos cidadãos, especialmente os estrangeiros, que não eram protegidos por suas leis, o colocaram em um dilema ético, moral e até religioso.

Estava vendo a guerra fria se voltando contra seu próprio povo, dentro de seu território, e avançando por todos os países do mundo; e sabia por experiência que todos eles juntos, não seriam páreo para o seu, por isso decidiu agir. Foi indiciado, chegou a ser preso, mas soube de uma consoladora solidariedade de uma parcela significativa de seu povo.

Fugiu, na iminência de receber pena perpétua, se refugiando em países que sabia que matariam sumariamente quem fizesse o mesmo que ele. Também sabia que não poderia fugir para sempre, na verdade estava muito assustado para agir com a racionalidade que lhe foi ensinada, pois conhecia o poderio do serviço secreto que o treinou.

Não queria, no entanto, dar aos ex-chefes o gosto de lhe cuspir na fronte e chamá-lo de traidor, que em seu íntimo, sabia que se tornara. Não fez por mal, fez pelo bem da humanidade, e especialmente de seu próprio povo. Hoje se pergunta se fez certo. Não que se arrependa, absolutamente, a questão é se realmente fez a coisa certa da maneira certa.

A prisão perpétua, ao contrário da pena capital, é reversível a qualquer tempo, mas é uma possibilidade com a qual não pode contar. Morrer sem a liberdade pela qual lutara a vida inteira, lhe amedrontava mais do que a iminência de ser abatido por um agente secreto de seu país.

Ele sabe que não é por ter falado mal, por ter se rebelado contra o sistema ou qualquer coisa assim. Ele sabe que cometeu um crime e é por isso que está sendo caçado, não perseguido, mas caçado. Crime que em países que lhe oferecem asilo, poderiam tê-lo mandado para o paredão... Talvez o que queira, seja não ter o desgosto de ser morto por um compatriota.

Ele sabe que o que fez, é crime em qualquer parte do mundo, mas não sabia de outra forma para fazê-lo.

03/07/2013

Da história e do historiador

Coragem! A tese está quase na metade!

É difícil falar sobre a História, porque o termo em si é muito abrangente. Posso, em um simples texto, apenas verter um pouco do que acumulei em meu cabedal, que infelizmente é bem limitado.

Para começar, chocarei os fãs ainda iniciantes da ciência, afirmando que a história não é confiável.  É necessária, mas nem um pouco confiável. O que esperar de uma actividade intrinsecamente humana, senão um mar de dúvidas com uma ilhota de pistas concretas? Pois é o que é a história.

Em primeiro lugar, a história é a interpretação de seu investigador sobre os factos. Ainda que ela viesse por inspiração divina, quando na verdade vem às custas de muito labor, freqüentemente solitário e ingrato, caberia ao pesquisador o trabalho de interpretar o que lhe foi passado. É aqui que os erros acontecem, porque a interpretação dependerá do cabedal e da formação moral do historiador.

Vocês devem ter, pelo menos, ouvido falar que o ângulo de uma photographia pode arruinar ou salvar uma cena. Com a investigação histórica é a mesma coisa. Aquilo que ao historiador parece mais digno de ser enfatizado, pode mudar completamente o que os estudantes aprenderão sobre o episódio. Aliás, de factos distorcidos por imagens editadas, às vezes de modo quase imperceptível, a imprensa nacional está repleta.

Por exemplo, muito em voga, uma manifestação. A quem é contrário, não interessa mostrar a multidão inteira, nem sempre por má fé, mas por desagrado mesmo, assim registra algumas imagens sem muito cuidado, dando a entender que o público foi pequeno, apático e depredador. A quem é radicalmente a favor, interessa tanto divulgar, que nem sempre há o cuidado de ver se algumas imagens mostram ângulos diferentes da mesma cena, fazendo assim uma pequena multidão parecer metade da população e São Paulo. E, claro, há os de má índole, especialmente os que fabricam factoides por encomenda.

Daí vem a necessidade que a muitos, inclusive a mim, soa muito desconfortável, a do trabalho em grupo. À parte a moda infame de se discutir prolixamente até o bocejo do colega, um grupo de pelo menos três te garante que pelo menos um dos outros terá percebido nuances de tu deixaste passar, seja por desconforto subconsciente quanto àquele tema, seja por cansado pelas horas infindáveis de trabalho intelectual.

Por tolo que pareça, muitos aspirantes a historiador desistem, às vezes ainda no começo do curso, por medo de descobrirem que suas crenças mais arraigadas não são o que pensavam, não raro para não correrem o risco de descobrirem que seus pais não são os heróis infalíveis e oniscientes que lhe pareciam até então.

Sim, cari leitori, ainda há adultos que mantém sobre seus pais, o pesado e injusto fardo de serem semi deuses, quando são apenas humanos e, um dia, podem precisar dos mesmos cuidados que lhes dispensaram na mais tenra idade. Para retardarem essa decepção egoísta, e tenho notícias de muita gente que o fez, trocam de curso ainda nos primeiros semestres. Às vezes, até para evitar descobrir que o livro Gênese é uma parábola, não um registro histórico.

Aliás, a parábola é a invenção mais rica e mais mal utilizada de toda a história da história. Ou alguém aí ainda pensa que Jesus falava de um samaritano em específico?

Acreditem, tem gente que pensa que "Samaritano" é o nome próprio de um cristão da época... E gente instruída... Percebem o que quero dizer com ter que interpretar os factos?

Sim, há a opção de simplesmente ler resumos desprovidos de interação subjetiva, mas não seria história. Dizer que Getúlio Vargas suicidou, não quer dizer absolutamente nada, além de que ele jamais passou a faixa presidencial ao sucessor. E não explica absolutamente nada sobre os motivos que teriam lavado ao suposto suicídio, e suas conseqüências para o país inteiro por décadas. Porque muita gente graúda, tem quase certeza absoluta de que ele foi assassinado.

Ler sem interpretar, é agir como um observador superficial, que vê a água se movendo, mas se torna incapaz de tirar proveito de sua força. Se os engenheiros fossem assim, não estaríamos com usinas de energia movidas pela maré, sendo construídas ao longo de todo o nosso litoral; que é imenso!

Ainda sobre o historiador, e a amiga Graça, que pediu este texto, ficou brava comigo, a mim parece mais um delator da humanidade do que um cientista propriamente dito. Não que não seja um cientista, ele é, afinal precisa seguir regras e limites éticos, para ter um mínimo de credibilidade para seus artigos. mas ele é, na maioria das vezes sem perceber, um delator. Quase ninguém gosta de delatores, além deles mesmos e suas mães.

Acontece que mostrando factos, motivos e consequências históricas, ele acaba desmentindo muitas pessoas, às vezes bem intencionadas, deixando-as em saias tão justas, que precisam se despir para conseguirem andar e não cair. Sim, a expressão foi proposital, porque o que o historiador faz, em sua delação, é mostrar a intimidade geralmente vergonhosa de nossos heróis, e às vezes virtudes nobilíssimas de quem odiamos. Ele, sem querer, na maioria das vezes, nos aponta o dedo para o nariz e diz "Cresça e apareça! Tome vergonha e deixe de ser infantil, que essas fraldas estão deixando tudo à mostra!" sem piedade... e às vezes sem querer toma um murro nas fuças.

É aqui que cabe ao historiador uma carga ética e técnica. ética para evitar causar dores desnecessárias, que fariam todo o seu trabalho ser um tiro pela culatra, transformando uma opinião contrária em fanatismo cego, ganhando inimigos poderosos que não lhe acrescem cousa alguma. Técnica porque, ainda que não esteja em sala de aula, ele é um professor. Um bom professor deve ter didática, saber falar de modo que o aluno compreenda na medida de seu necessário e seus limites. Um milímetro além disso, tudo pode ruir como um castelo de areia sob um surfista desajeitado.

Perceberam como este campo é minado? Notem que eu não citei, não explicitamente, casos de ditaduras que forjam livros de história e calam à força os historiadores, se vendo obrigadas a manter vigilância rígida e a reescrever essa "história" de tempos em tempos, para evitar que seu tecido frágil se rasgue. Só que essa vigilância, como a interpretação humana, é imperfeita. E a força que a mantém, também humana, tem limites e prazo de validade. Por isso mesmo o ditador tem o cuidado de fantasiar, à moda hitleriana, o que foi feito em sua gestão, colocando pontinhos de chocolate vagabundo em um bolo de polvilho, para dizer que no seu tempo o povo tinha chocolate em abundância... E muita gente, décadas depois, acredita.

Por que? Porque usa a interpretação literal do que lê, como guia de seu juízo. Por isso digo que não sou sapato alphabético, para meus textos serem levados sempre ao pé da letra. Por isso é tão importante ler com senso crítico, mesmo com os riscos de nossa deficiente capacidade de interpretação à espreita. Interpretando, pelo menos temos o benefício da dúvida, a tendência de acreditar que se tem a verdade definitiva diminui muito. Afinal, quem vê uma bola, geralmente só vê 90° de sua superfície, nunca chegando aos 180°, daí precisar de mais gente para ver os outros ângulos dessa bola, porque cada um verá uma coisa, e todas essas coisas são partes da mesma bola. Não são várias verdades, é uma só, mas somos muito limitados e precisamos de ajuda para percebê-la.

Assim, podemos imaginar que o trabalho do historiador, ainda que solitário, é um trabalho em grupo. Ele depende vitalmente do que outros historiadores, vivos ou não, já fizeram ou estão fazendo. Aliás, todo e qualquer cientista sério se apóia e dá crédito ao trabalho já feito, sem acreditar que isso diminui seus méritos. Ensinar humildade aos leigos, é conseqüência natural de um trabalho bem feito.

Aliás, duas coisas que um pesquisador jamais, sob hipótese alguma, nem que a vaca tussa em aramaico de trás para frente na língua do pê, pode acreditar: Que o trabalho é impossível, e que vai conseguir fazer tudo sozinho. Se os outros fecharem acesso ao seu material, baby, sua tese já era. Assim como o "não consigo" mata teu trabalho antes de ele nascer.

Um erro crasso que ideologistas radicais, fanáticos dogmáticos e simplórios arrogantes cometem SEMPRE, é limitar a poucas as suas fontes, quando não a uma só. A empatia é confortável, da mesma forma como a picada do morcego também é. Em vez de procurar evidências de que o outro está errado, porque quem quer encontra indícios de chifre em testa de cavalo, o historiador sério se pergunta o tempo inteiro onde o outro acertou e onde ele errou... E assim, contrariando certezas absolutas de criaturas altamente relativas, ele ganha inimigos apenas por ter exposto os resultados de seu trabalho.

Profissão espinhosa, não? É por isso que o historiador deve ver todos os ângulos possíveis, para conseguir retirar o máximo possível de espinhos, antes de colher a sua rosa histórica, porque por menos que doa, alguns menores ficarão e vão cutucar, mas o cuidado devido evita que a dor seja grande.

Finalizando, o historiador deve ter consciência plena de sua missão, sua responsabilidade para com toda a humanidade, e disponibilizar o quanto antes os resultados de seus estudos. Uma pesquisa não publicada não é história, é apenas uma hipótese restrita à pessoa de quem a produziu, porque é a apreciação dos pares que mostrará onde o historiador errou e onde logrou êxito. Por isso, mais uma vez recomendo que tenham humildade, mas não se subestimem sob hipótese alguma.

Em tempo, de alguém de conhece um pouco do universo místico, unicórnio não é cavalo, da mesma forma como golfinho não é peixe.