03/07/2013

Da história e do historiador

Coragem! A tese está quase na metade!

É difícil falar sobre a História, porque o termo em si é muito abrangente. Posso, em um simples texto, apenas verter um pouco do que acumulei em meu cabedal, que infelizmente é bem limitado.

Para começar, chocarei os fãs ainda iniciantes da ciência, afirmando que a história não é confiável.  É necessária, mas nem um pouco confiável. O que esperar de uma actividade intrinsecamente humana, senão um mar de dúvidas com uma ilhota de pistas concretas? Pois é o que é a história.

Em primeiro lugar, a história é a interpretação de seu investigador sobre os factos. Ainda que ela viesse por inspiração divina, quando na verdade vem às custas de muito labor, freqüentemente solitário e ingrato, caberia ao pesquisador o trabalho de interpretar o que lhe foi passado. É aqui que os erros acontecem, porque a interpretação dependerá do cabedal e da formação moral do historiador.

Vocês devem ter, pelo menos, ouvido falar que o ângulo de uma photographia pode arruinar ou salvar uma cena. Com a investigação histórica é a mesma coisa. Aquilo que ao historiador parece mais digno de ser enfatizado, pode mudar completamente o que os estudantes aprenderão sobre o episódio. Aliás, de factos distorcidos por imagens editadas, às vezes de modo quase imperceptível, a imprensa nacional está repleta.

Por exemplo, muito em voga, uma manifestação. A quem é contrário, não interessa mostrar a multidão inteira, nem sempre por má fé, mas por desagrado mesmo, assim registra algumas imagens sem muito cuidado, dando a entender que o público foi pequeno, apático e depredador. A quem é radicalmente a favor, interessa tanto divulgar, que nem sempre há o cuidado de ver se algumas imagens mostram ângulos diferentes da mesma cena, fazendo assim uma pequena multidão parecer metade da população e São Paulo. E, claro, há os de má índole, especialmente os que fabricam factoides por encomenda.

Daí vem a necessidade que a muitos, inclusive a mim, soa muito desconfortável, a do trabalho em grupo. À parte a moda infame de se discutir prolixamente até o bocejo do colega, um grupo de pelo menos três te garante que pelo menos um dos outros terá percebido nuances de tu deixaste passar, seja por desconforto subconsciente quanto àquele tema, seja por cansado pelas horas infindáveis de trabalho intelectual.

Por tolo que pareça, muitos aspirantes a historiador desistem, às vezes ainda no começo do curso, por medo de descobrirem que suas crenças mais arraigadas não são o que pensavam, não raro para não correrem o risco de descobrirem que seus pais não são os heróis infalíveis e oniscientes que lhe pareciam até então.

Sim, cari leitori, ainda há adultos que mantém sobre seus pais, o pesado e injusto fardo de serem semi deuses, quando são apenas humanos e, um dia, podem precisar dos mesmos cuidados que lhes dispensaram na mais tenra idade. Para retardarem essa decepção egoísta, e tenho notícias de muita gente que o fez, trocam de curso ainda nos primeiros semestres. Às vezes, até para evitar descobrir que o livro Gênese é uma parábola, não um registro histórico.

Aliás, a parábola é a invenção mais rica e mais mal utilizada de toda a história da história. Ou alguém aí ainda pensa que Jesus falava de um samaritano em específico?

Acreditem, tem gente que pensa que "Samaritano" é o nome próprio de um cristão da época... E gente instruída... Percebem o que quero dizer com ter que interpretar os factos?

Sim, há a opção de simplesmente ler resumos desprovidos de interação subjetiva, mas não seria história. Dizer que Getúlio Vargas suicidou, não quer dizer absolutamente nada, além de que ele jamais passou a faixa presidencial ao sucessor. E não explica absolutamente nada sobre os motivos que teriam lavado ao suposto suicídio, e suas conseqüências para o país inteiro por décadas. Porque muita gente graúda, tem quase certeza absoluta de que ele foi assassinado.

Ler sem interpretar, é agir como um observador superficial, que vê a água se movendo, mas se torna incapaz de tirar proveito de sua força. Se os engenheiros fossem assim, não estaríamos com usinas de energia movidas pela maré, sendo construídas ao longo de todo o nosso litoral; que é imenso!

Ainda sobre o historiador, e a amiga Graça, que pediu este texto, ficou brava comigo, a mim parece mais um delator da humanidade do que um cientista propriamente dito. Não que não seja um cientista, ele é, afinal precisa seguir regras e limites éticos, para ter um mínimo de credibilidade para seus artigos. mas ele é, na maioria das vezes sem perceber, um delator. Quase ninguém gosta de delatores, além deles mesmos e suas mães.

Acontece que mostrando factos, motivos e consequências históricas, ele acaba desmentindo muitas pessoas, às vezes bem intencionadas, deixando-as em saias tão justas, que precisam se despir para conseguirem andar e não cair. Sim, a expressão foi proposital, porque o que o historiador faz, em sua delação, é mostrar a intimidade geralmente vergonhosa de nossos heróis, e às vezes virtudes nobilíssimas de quem odiamos. Ele, sem querer, na maioria das vezes, nos aponta o dedo para o nariz e diz "Cresça e apareça! Tome vergonha e deixe de ser infantil, que essas fraldas estão deixando tudo à mostra!" sem piedade... e às vezes sem querer toma um murro nas fuças.

É aqui que cabe ao historiador uma carga ética e técnica. ética para evitar causar dores desnecessárias, que fariam todo o seu trabalho ser um tiro pela culatra, transformando uma opinião contrária em fanatismo cego, ganhando inimigos poderosos que não lhe acrescem cousa alguma. Técnica porque, ainda que não esteja em sala de aula, ele é um professor. Um bom professor deve ter didática, saber falar de modo que o aluno compreenda na medida de seu necessário e seus limites. Um milímetro além disso, tudo pode ruir como um castelo de areia sob um surfista desajeitado.

Perceberam como este campo é minado? Notem que eu não citei, não explicitamente, casos de ditaduras que forjam livros de história e calam à força os historiadores, se vendo obrigadas a manter vigilância rígida e a reescrever essa "história" de tempos em tempos, para evitar que seu tecido frágil se rasgue. Só que essa vigilância, como a interpretação humana, é imperfeita. E a força que a mantém, também humana, tem limites e prazo de validade. Por isso mesmo o ditador tem o cuidado de fantasiar, à moda hitleriana, o que foi feito em sua gestão, colocando pontinhos de chocolate vagabundo em um bolo de polvilho, para dizer que no seu tempo o povo tinha chocolate em abundância... E muita gente, décadas depois, acredita.

Por que? Porque usa a interpretação literal do que lê, como guia de seu juízo. Por isso digo que não sou sapato alphabético, para meus textos serem levados sempre ao pé da letra. Por isso é tão importante ler com senso crítico, mesmo com os riscos de nossa deficiente capacidade de interpretação à espreita. Interpretando, pelo menos temos o benefício da dúvida, a tendência de acreditar que se tem a verdade definitiva diminui muito. Afinal, quem vê uma bola, geralmente só vê 90° de sua superfície, nunca chegando aos 180°, daí precisar de mais gente para ver os outros ângulos dessa bola, porque cada um verá uma coisa, e todas essas coisas são partes da mesma bola. Não são várias verdades, é uma só, mas somos muito limitados e precisamos de ajuda para percebê-la.

Assim, podemos imaginar que o trabalho do historiador, ainda que solitário, é um trabalho em grupo. Ele depende vitalmente do que outros historiadores, vivos ou não, já fizeram ou estão fazendo. Aliás, todo e qualquer cientista sério se apóia e dá crédito ao trabalho já feito, sem acreditar que isso diminui seus méritos. Ensinar humildade aos leigos, é conseqüência natural de um trabalho bem feito.

Aliás, duas coisas que um pesquisador jamais, sob hipótese alguma, nem que a vaca tussa em aramaico de trás para frente na língua do pê, pode acreditar: Que o trabalho é impossível, e que vai conseguir fazer tudo sozinho. Se os outros fecharem acesso ao seu material, baby, sua tese já era. Assim como o "não consigo" mata teu trabalho antes de ele nascer.

Um erro crasso que ideologistas radicais, fanáticos dogmáticos e simplórios arrogantes cometem SEMPRE, é limitar a poucas as suas fontes, quando não a uma só. A empatia é confortável, da mesma forma como a picada do morcego também é. Em vez de procurar evidências de que o outro está errado, porque quem quer encontra indícios de chifre em testa de cavalo, o historiador sério se pergunta o tempo inteiro onde o outro acertou e onde ele errou... E assim, contrariando certezas absolutas de criaturas altamente relativas, ele ganha inimigos apenas por ter exposto os resultados de seu trabalho.

Profissão espinhosa, não? É por isso que o historiador deve ver todos os ângulos possíveis, para conseguir retirar o máximo possível de espinhos, antes de colher a sua rosa histórica, porque por menos que doa, alguns menores ficarão e vão cutucar, mas o cuidado devido evita que a dor seja grande.

Finalizando, o historiador deve ter consciência plena de sua missão, sua responsabilidade para com toda a humanidade, e disponibilizar o quanto antes os resultados de seus estudos. Uma pesquisa não publicada não é história, é apenas uma hipótese restrita à pessoa de quem a produziu, porque é a apreciação dos pares que mostrará onde o historiador errou e onde logrou êxito. Por isso, mais uma vez recomendo que tenham humildade, mas não se subestimem sob hipótese alguma.

Em tempo, de alguém de conhece um pouco do universo místico, unicórnio não é cavalo, da mesma forma como golfinho não é peixe.

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