22/08/2009

Como pode ser tão ruim?

A propaganda oficial brasileira é um dos maiores ralos do erário público. A linguagem é quase sempre vaga, parece que os publicitários em questão têm medo de passar a mensagem que precisam passar. Se bem que na política o medo de expor a opinião tem o amparo da realidade.
Certa tarde (inteira) em uma fila do hospital Juarez Barbosa, me deparo com um cartaz (pretensamente) de esclarecimento a respeito da Hepatite B. Como não tenho a imagem no momento descreverei; Um cartaz horizontal com seis elementos principais, da esquerda para a direita: um rapaz negro dançando break no chão, uma garota cadeirande com uma bola de basquete na mão, outra garota fazendo pose de "gatinha", um enorme sinal de proibido pintado no muro já pixado, um surfista fazendo pose e sinal com a mão como se estivesse na praia, uma skatista fazendo pose com o veículo aos pés. Esclarecimentos a respeito da doença? Não. Instruções claras sobre como evitar a doença? Não. Um texto, ainda que rápido, mostrando as diferenças entre as hepatites? Não. Uma legenda dizendo o que aquela garotada fazendo poses estereotipadas têm a ver, directamente, com a prevenção? Não.

No decorrer das várias horas em que esperei para ser atendido, me perguntei o que era aquilo. A única conclusão a que cheguei, e que descartava o uso indevido e descarado dos impostos que eu pago, é que se tratava de um preenchimento de cotas. Porque a maior preocupação na formulação de uma propaganda oficial, já ficou claro, é ser politicamente correcto, ainda que o resultado final mate a mensagem a ser passada. Informar corretamente, de modo directo e claro a população é muito arriscado. Se o povo começa a pensar, logo começa a questionar, então políticos e programas de televisão perdem seus públicos.

Um exemplo recente de propaganda televisionada, é a que alerta para o excesso de elocidade nas estradas. Estereotiparam o motorista de tal modo, que em vez de engraçado ou carismático ficou canastrão. Ter graça ou carisma ajuda a fixar a mensagem na coletividade, ser canastrão, bem, quem entrou em uma sala de cinema e se esqueceu do filme meia hora depois do fim, sabe do que estou falando. A mensagem final foi "Foi a última vez que ele ouviu sua música preferida", a música era um rock pesado... Eu gosto de rock e não dirijo daquele jeito. Nada foi mostrado de modo claro, apenas sugerido, e muito mal sugerido. Não que eu queira ver aquele erro crasso do Detran, mostrando gente completamente desfigurada na televisão, sem maiores explicações. Só quero profissionais competentes trabalhando livres da censura política e partidarista politicamente patética. Mostrar o carro sendo abalroado de frente por um caminhão, por ter feito uma ultrapassagem perigosa, teria custado pouco e passado a mensagem.

As campanhas sobre medicamentos, então, me ofendem com tamanha incompetência. Digo "incompetência" porque não sou leviano de pensar primeiro na única outra hipótese, a da corrupção. Dão a entender que os laboratórios as encomendaram. Photographei algumas na Vigilância Sanitária Municipal de Goiânia, e minha chefe concordou comigo. São desenhos muito mal feitos, infantilescos, parecem ter sido coloridos com giz-de-cera vencidos. A intenção de quem idealiza as campanhas, quase sempre médicos, é das melhores, mas infelizmente na esphera pública uma idéia precisa passar por muitos filtros e muitas pessoas, muitas delas ocupando cargos de confiança sem ter conhecimento de causa para tanto. É aqui que dana tudo, que conceitos pessoais de certo e errado interferem directamente no trabalho. Notem que em momento algum eu me referi a interesses torpes, estou deixando tudo no ameno orbe da incompetência, que não é crime... Pena.

Cito duas propagandas oficiais que foram directo ao ponto e deram seu recado. Uma de Moçambique mostrando um caminhoneiro descendo do caminhão, já em casa, sendo acolhido pela família. É uma campanha contra a aids, que incentiva o caminhoneiro a pensar na própria família. Outra é nacional, uma pérola. Mostra um senhor já maduro na sala de cinema, com os traços endurecidos pela vida, começando a lacrimejar de emoção pelo filme. Se não me engano era uma campanha pela saúde do coração e a frase no fim era "Chore se for homem". Acreditem, esta propaganda tão liberal e avançada até para os dias de hoje, se deu durante o governo do Presidente Figueiredo. Oh, ja, mein herr. Uma propaganda da ditadura combatendo o machismo, algo que a nossa democracia bêbada nunca fez de verdade. Que ironia. Certo que o Figueiredo, em matéria de ser democrático, dava de dez na maioria dos caciques políticos hoje em liberdade, mas já faz um quarto de século que ele colocou um fim no regime, e as propagandas oficiais só pioraram com o tempo. Há uma diferença entre colocar em discussão e simplesmente discutir.

O que sugiro? Dusas cousas: Deixar publicitários tratarem de publicidade, existe já uma entidade própria para a regulação da propaganda, não precisamos de um doutor bacharéu com cargo de confiança dando pitacos; Olhar par trás, para ver o que e porque deu certo, e o que e porque não deu certo. Se o Estado se empenhasse no esclarecimento da população como se empenham seus dirigentes em suas campanhas eleitorais... Deixa, é utopia. Apenas dê uma olhada na ilustração e veja o quanto eles se encheram de dedos e medos de ofender, na hora de elabora-lo. Para quem não tem muito discernimento (o grosso da população) dá a entender que se medicar é legal.

15/08/2009

Vários pesos, várias medidas

Tenho uma colega que puxa o filho para trás, enquanto o pai puxa para frente com o pronto apoio da família.
O moleque mal sabe diferenciar protocolo de preto-no-colo. Pois certa feita, em uma feira agropecuária, ela o flagrou aos beijos com uma menina. Não beijinhos, mas daqueles que a molecada vê na televisão e vive querendo alguém para praticar. Nada de errado, se o malandrinho nada fizesse além de estudar e existir. Se algo acontecer, ele não tem como arcar com as conseqüências, nem no financeiro, nem no psicológico. Nem falarei em moral e espiritual porque é exigir demais.

Hoje há um pé de guerra na casa dessa colega, porque o pai quer espalhar pelos quatro ventos que o filho "é macho e sabe agarrar", enquanto ela quer dar-lhe a dose diária de safanões. Até a irmã dela apóia, deixa o filho livre e a filha presa. Homem pode, mulher não pode.

Vamos à contradição. Querem que o filho seja macho, mas querem que a filha seja pura, casta e virginal até o suspiro final, dando à luz por concepção do Espírito Santo.

Se eles podem, mas elas não, eles vão poder com quem? Não vai dar para ser macho, porque só vai restar homens nas ruas (que visão mais horrorosa, heim!) e terão que se virar entre si. Ou seja, por esta análise, essa mentalidade é um estímulo ao homossexualismo, embora este seja rechaçado com violência por muitas famílias. Rechaça, mas planta e cultiva com esmero.

Noutra análise, há a mulher para casar e a para transar. Então vem outra mazela, pois para manter essa mentalidade é necessário e vital que alguém expulse a filha de casa. Ou seja, a felicidade do homem é necessariamente a infelicidade de uma família inteira. Não há meio termo, se é preciso haver mulheres que jamais poderão se casar, porque em uma sociedade assim elas jamais se casariam, elas têm que sair de algum lugar, de mulheres que deram à luz. Ou estas mulheres seriam filhas de prostitutas, perpetuando um mundo de miséria e frustração, ou seriam filhas expulsas de casa, tendo causado uma dor que raramente um homem é capaz de conceber.

Não há meio termo aqui. Notem que em ambas as possibilidades, é preciso desgraçar a vida de alguém para manter os prazeres masculinos.

Agora vamos para as rodinhas de discussões mais reincidentes. Elas discutem política. Mais do que isso, falam mal de políticos. Com que moral? Alguém que incentiva o filho a abusar de outra pessoa mas não admite sob hipótese alguma que aconteça consigo, é em quê diferente dos políticos mal falados? Em nada.

Ambos só se importam com seus prazeres, não lhes interessa se a outra parte se sente bem; ambos não dão a mínima para quem venham prejudicar por seus interesses, pois se acham no direito de usar a outra pessoa para alcançar seu objectivo; ambos são capazes de matar uma pessoa para tirar satisfações de seu prestígio ferido, pois exibir e aprimorar a fama conquistada lhes é mais caro do que todo o resto.

Sim, há a questão cultural, que é difícil remover. Muito difícil. Dificílimo, aliás. Mas não é impossível. Ninguém adere a uma idéia, por mais pressão que sofra, se não lhe for simpática.

É muito cômodo poder esvair suas más tendências em alguém e ainda obter aprovação do grupo, pois a fama de bom pai de família e cidadão honrado fica preservada, apesar de falsa.

É muito cômodo poder fazer algo que incomoda, mas ter a certeza de que o mesmo não poderá ser feito impunemente consigo, fica preservada da máscara de cidadão calmo, equilibrado e civilizado.

No primeiro caso acima será preciso inventar uma mentira mais a cada dia, pois sempre haverá uma geração que quer saber os motivos disto e daquilo, e as explicações dadas a uma não servirão para a outra. Mas nós sabemos o quanto isso sai caro, estamos pagando o preço há alguns anos, mis precisamente desde Setembro de 2001.

No segundo caso acima, ficam confinados a agressividade e o rancor. Ambos crescendo com o tempo e um dia investindo contra as portas, até que estas sejam postas abaixo e eles se enfrentam. É o que está acontecendo hoje. Ser cortês e educado se tornou símbolo de hipocrisia, ser honesto é se arriscar a perder o respeito do grupo, não querer ter tudo aqui e agora é se arriscar a te virarem as costas.

Hoje em dia os filhos não respeitam os pais. Certo, meia verdade. Afinal, foram os pais que ensinaram seus rebentos a se colocarem acima do outro. Se o garoto transa é garanhão, se a garota transa é piranha? Então ele vai concluir que é melhor do que ela, que tem mais direitos, que é privilegiado. Um dia isto se vira contra quem não pode mais se defender, como um pai idoso. Não adianta reclamar, ele se acha superior a quem não pode se defender, lhe foi ensinado isto desde a mais tenra idade.

Depois de falar mal dos políticos e defender a pena de morte até para quem rouba para comer, ele vai entrar em seu carro, dar ré sem ver o trânsito, disparar, furar sinal, entrar na contramão, estacionar em cima da calçada e agredir quem achar ruim. Reconhecem a cena? Pois é, não saiu do nada, pois o nada não existe. O vácuo não existe. Se falta algo, outro algo toma seu lugar, e nem sempre esse outro algo presta. Começou quando colocaram o menino em posição de superioridade a alguém, seja uma menina, seja um empregado, seja um animal de estimação, seja quem for. Ele foi recompensado por agir como se fosse superior, quando adulto já não tolera mais não ser recompensado por isto. Ser punido, então, é jurar alguém de morte.

Nem todos chegam a tal extremo, mas todos o que compactuam com essa mentalidade corroboram para que tal extremo seja alcançado. Vão deter o extremista com que argumento? Toda agressividade que usarem para tanto, será vista como permissão para agredir em nome do que se acreditar, pelos mais jovens.

Gritar "Fora Sarney" e cochichar "Coma todas elas" é usar vários pesos e medidas, ensinando à criança que sua conveniência é mais importante do que a necessidade comum. Pois o pai já idoso e ranzinza pode ser muito inconveniente.

Para a colega de quem falei, aconselhei plantar uma marmeleira, que dá varas finas, fortes e flexíveis. Uma medida extrema para uma situação extrema. Infelizmente ela mora em apartamento, mas já cogita a idéia de pisar no chão e não pagar condomínio. Ela já percebeu que não está sozinha e que, na falta do amparo familiar, terá o dos amigos. Porque de pouco adianta incentivar e virar as costas, isto é hipocrisia. Ela sabe que se tentarem estragar o menino, terá a quem pedir ajuda para que volte a prestar. Isto é usar um peso e uma medida, não gerar contradições e cortar um mal pela raiz.

07/08/2009

Grisalhos

Entra naquele salão, como tem feito nos últimos vinte anos, todos os sábados. Mas hoje tem uma novidade, não consegue mais disfarçar os cabelos brancos.
Todas as amigas, e até alguns maridos, lascaram tinta antes que o primeiro fio ficasse totalmente albino. Pensou seriamente no assunto, o cabeleireiro há anos a incentiva, mas o que parece ser uma decisão banal e óbvia lhe soa estranha.

As mesmas caras de sempre estão lá, mas as cabeças, quanta diferença! Louras-mel da semana passada estão ruivas, ou castanho-dourado, todas eram morenas há não mais que sete anos. Há cinco a melamina avisa que vai se aposentar.

Lhe soa simpático encurtar os cabelos, deixando algum volume para manter a feminilidade. Não um chanel, mas um curto volumoso e vivo, mas nada de luzes, nada de tinta, nada de química de espécie alguma. Sempre foi uma mulher moderna, activa, atenta ao mundo mutante à sua volta. Sempre foi independente financeiramente e ainda guarda traços nítidos de sua juventude. Mas não vê nisto, motivos para querer enganar o espelho. Pode tratar de manter a cintura, o tônus muscular e redobrar os cuidados com a voz, mas a pele e os cabelos só podem ser disfarçados. Tem horror a artificialidades, suas amigas não são as mesmas desde que começaram a lutar contra a ampulheta. Parecem estar sempre querendo mostrar que não são velhas, uma delas se divorciou porque o companheiro de trinta anos de matrimônio não quis sequer pintar os cabelos, hoje sumiu de sua convivência, dorme durante o dia e badala à noite, geralmente com garotões. As outras não seguiram esse extremo, mas quase todas passaram a ter phobia do tempo. Foi verem as "melhorias" no espelho e ter medo de perdê-las, passando a gastar somas maiores no salão. A única exceção é uma amiga de infância, que ficou ruiva, mas se limitou a isto. Devaneia e medita enquanto folheia, sem ver do que trata a revista, esta dando destaque para uma actriz que se vende e é vendida como "gatona" que namora um rapaz diferente a cada semana. Melhor para ela não ver mesmo. Chamam-na, é sua vez...

- Lave, hidrate e Corte três dedos abaixo da nuca.

Ele festeja e estende a comemoração às outras dependências do salão, mas não ouviu as palavras mágicas...

- Blonde Marylin Monroe ou Grace Kelly?

Se lembra de ambas. Era criança quando Marylin faleceu, mas o velório da princesa ainda é nítido em sua memória. Foi sua época de juventude, quando ainda namorava despreocupada com o futuro...

- Deixe como está. Só lave, hidrate e corte.

- Com esse rosto de artista...

- Não quer fazer o serviço?

Ele obedece, mas não perde as esperanças de ela sair à rua com a cabeça dourada, quem sabe um louro bronze bem sóbrio. Começam lavando. Já passou por apertos financeiros sérios, foram épocas em que precisou usar curto para não gastar com a manutenção. O falecido não fazia objeções, mas a festividade da esposa não o enganava, sempre foi uma mulher austera, embora ousada. Naquela época não havia muito mais a fazer do que pintar o cabelo e caprichar na maquiagem. Às vezes até lhe vem à mente recuperar o tempo perdido, fazer o que não pôde, reaver as chances de que abriu mão pela família. Mas já lhe disseram desde menina que o tempo é como catraca de bicicleta, só gira para frente.

Não voltará a ter vinte e seis anos, os amigos mortos não vão levantar dos túmulos (graças à Deus) onde jazem, sua viuvez não pode ser revertida, os filhos não voltarão a ser crianças e não poderá mais ser jogadora de vôlei. Nem seus pais, nem seu marido, nem o esporte, nem cousa alguma que tenha perdido ou deixado de fazer voltará.

Não tinha muitos brinquedos em meados dos anos 1960, mas nem precisava. Conseguia se divertir com praticamente tudo, ainda que ficasse só olhando e adimirando. Se lembra de cada surra que levou e os motivos da maioria delas, algumas ela não mereceu e renderam inversões de papéis, com seus pais cabisbaixos e chorando de vergonha pela injustiça...

- Pronto, agora vamos hidratar.

- Mas já?

- Menina, onde você está com a cabeça? O tempo já passou, queria.

Passou. Se dá conta de que passou até muito depressa. Era uma menina decidida no que queria ser, uma médica advogada formada em administração e enfermagem, com uma carreira vitoriosa no vôlei. Às vezes queria ser a quarta Pantera do seriado, mas já quis ser freira por um curto período. Mas seguiu seu desabrochar entre minissaias e bocas-de-sino. Foi nesta época que conheceu sua amiga mais arraigada, praticamente a única que restou de então. Namoro era aquela cousa de garotos que tremem para um simples beijo...

- Acorda, Bela Adormecida. Vamos fazer uma massagem.

- Posso acompanhar?

Sua velha amiga. Poucas pessoas a conhecem como ela. Uma já cuidou dos filhos da outra em diversas ocasiões, têm certeza de que já foram mãe e filha noutra encarnação...

- Tô divagando, sonhando aqui.

- Parece que está é hipinotizada. Que foi?

- Lembrando... Lembra quando anunciaram que o Fusca ia sair de linha?

- Mesmo dia em que sua avó caiu doente. Quem diria que os dois iam sair de cena?

- Mesmo com toda aquela idade... Ela ainda tinha força pra me dar bronca, porque eu tava chorando junto dela.

- Não é só isso.

Não, não é. Ninguém imaginava que a avó dela fosse morrer algum dia, pensavam que a morte já a tinha esquecido. Mas ela veio e a levou. No ano seguinte se casava, depois começou a vir a ninhada, três rebentos que hoje vivem suas vidas e fazem festas temáticas "Anos 80" uma vez por ano. Pelo menos esta vitória arrasadora pode contabilizar, criou a todos com um sucesso raro, manteve todos na linha até que pudessem voar com suas próprias asas. E voaram longe...

- Mas, apesar de tudo, a senhora ainda queria ter feito todas aquelas coisas que a gente não conseguiu...

- Culpa minha. Mas não me arrependo, faria tudo de novo. Eu fiz minha escolha, ninguém me forçou a nada.

- Então por que essa cara, mulher?

- Entre não me arrepender e não sentir falta tem uma distância grande.

Viagens adiadas por causa do trabalho, dos cursos e dos estudos dos filhos. Amigos de cujos óbitos só souberam semanas mais tarde, alguns íntimos, mas de quem a correria acabou afastando. Foram quase vinte anos em um ritimo frenético, sem tempo para entretenimentos, que acabaram em um infarto fulminante. Só a viuvez conseguiu lhe mostrar o estrago que estava se causando, mas ainda foram alguns anos para conseguir parar...

- Vamos cortar?

- Vamos.

- Amiga, o tempo é uma catraca de bicicleta, só gira pra frente, ela não dá ré. Vem com a gente fazer aquela viagem, nós três.

- Eu vou aceitar. Desta vez eu vou aceitar. Só deixa eu organizar a minha agenda, em um mês eu tô livre.

- Aêêêêêêêêêê! Gostei de ouvir. Ainda tá uma mulher bonita, gostosa, cheia de vida pela frente...

O século não começou bem para ela. Custou a conseguir equilibrar as finanças e os súbitos aumentos de taxas da prefeitura levaram suas economias. Fora que a filha e seu marido ficaram quase um ano desempregados, precisou amparar os três por quase um ano. Se pergunta se meio século de vida lhe dá perspectivas. Sempre chamou de "novas" as pessoas com cinqüenta anos, mas agora é ela quem tem cinqüenta. Olha para trás e vê uma estrada longa, talvez mais do que o que tem pela frente. Aposentar está fora de seus planos, foi no trabalho que encontrou amparo para as mazelas que sofreu. Sinceramente, só queria ter uma chance de recomeçar a vida, ou o que acha que resta de vida, porque juventude...

- Juventude é cabeça, criatura! Você mesma vive falando isso pra todo mundo. Olha essa molecada careta, preconceituosa e reacionária que tá lá fora. Eles têm medo da própria sombra e se escondem entre ruínas do mundo já demolido. Minha mãe é mais jovem do que eles, você é uma menina perto deles.

- É, você tem razão. Marca a viagem, vou comprar um maiô.

- Cara, o Julierme ia adorar ouvir isso!

- E quem garante que não tá ouvindo?

- Você jura que não vai pintar? Não quer aproveitar esse rejuvenescimento de dentro pra fora e mostrar pro mundo? Mulheres bem mais maduras, de família, já fazem muito mais que isso.

- Respeita meus cabelos grisalhos. Eu não quero mostrar que tô bem, só quero estar bem.

- Deixa ela. Eu só queria tirar ela desse casulo e já consegui.

- Deixa eu envelhecer com dignidade.

Saem. Os cabelos brancos que só se vêem de perto continuarão brancos, os outros ainda serão. Volta a fazer planos; conhecer Santa Catarina, fazer um doutorado, deixar as marcas do tempo só no corpo, quer a mente lúcida até o último segundo, como sua avó era.

04/08/2009

Professora demitida

Após anos de dedicação quase sacerdotal, ela não suportou e começou a dar as notas que os alunos mereciam. As reclamações, claro, emergiam aqui e ali, logo se generalizando. O ápice veio com a demissão por ferir o mais valioso princípio de uma faculdade moderna: Pagou, passou.

Porém, e sempre há o porém, ela sempre foi uma profissional talentosa e escancaradamente vocacional, pelo que a administração sabia o que estava perdendo. Pedindo então, mediante uma paga generosa, que formulasse um guia para orientar seu substituto. Vendo que também três (os únicos) bons alunos declararam que se transferirão para onde ela for, notou que ainda gozava de relativo prestígio, mesmo entre aqueles filhinhos de papai inúteis, que eles rezam para que jamais lhes recebam em seus futuros consultórios. É negociada uma minuta de despedida e orientação para os discentes. A paga que exige é uma só: a redação, em português correcto e enxuto, dos reais motivos da demissão. Alguns minutos de discussão e concordam. Ela ainda corrige muitos erros crassos, que reprovariam até mesmo no primário, mas a carta de recomendações fica a contento. Ela se põe a redigir, com sua tinteiro Pelican, as orientações em primorosa caligraphia para o coitado que mandarão para o pelourinho;


A minuta ao substituto;
Caro colega, lamento deveras que precise deste emprego. Em poucos anos a sua juventude se esvairá como areia fina entre dedos abertos. Advirto, porém, afim de que atenue a degradação e mantenha sua sanidade mental, que considere isto um mero comércio; você dá o que eles querem e recebe dinheiro em troca. Encontrará dois ou três trabalhadores que não puderam pagar cursinho, e hoje penam para pagar as prestações do diploma, a estes você poderá se dedicar com alegria professoral. Quanto ao resto, dê provinhas medíocres de múltipla escolha que não excedam a escassa intelectualidade reinante.
Considerações de Fräu Schroeder.



Pensa um pouco no que escreverá aos ex-pagantes, pois alunos nunca foram. Decide seguir os próprios conselhos e não super estimar suas inteligências...


A carta aos ex-alunos:
Execráveis bosquímanos, a vocês que um dia passarão fome, pois não conseguirão tocar os negócios de seus pais irresponsáveis, dou as últimas lições, que deveriam ter aprendido no primário; 


1- Nome próprio não é o mesmo que propriedade. É uma convenção milenar para diferenciar pessoas de coisas, uma das regras básicas é usar maiúscula para iniciar cada nome próprio.

2- Milenar é relativo a milênio, que é um espaço de tempo igual a mil anos.

3- Se vocês soubessem falar português, saberiam também ler e escrever português, então perceberiam que é mais natural dizer "embrulho" do que "enbrulho", logo "embrulho" é a forma correcta. Lição: não se usa "N" antes de "P" e "B". Exceção feita a nomes próprios.

4- Exceção é o que não faz parte de uma regra onde deveria estar, em princípio, inclusa.

5- Inclusa é o mesmo que incluída, fazer parte do conjunto.

6- Nenhum idioma terrestre faz uso de emoticons, deve-se então limitar-se ao uso dos sinais gráphicos convencionais, salvo em mensagens infomais e de internet, mas somente dentro das turmas de vocês.

7- Terrestre é o que pertence à terra, o mesmo que terráqueo.

8- Oxítona é uma palavra com a última sílaba tônica, paroxítona é a que tem a penúltima sílaba tônica, proparoxítona é a que tem a antepenúltima sílaba tônica.

9- "Última" é a primeira no fim, "Penúltima" é a segunda contando do fim, "Antepenúltima" é a terceira contando do fim.

10- Relembrando: oxítona, paroxítona e proparoxítona não são personagens de anime, nem baseados sintéticos novos, são itens básicos e regentes da gramática.

11- O facto de as letras serem padronizadas, embora permitam grandes variantes, se deve à necessidade de uma nação se comunicar eficientemente, sem o quê ainda estaríamos na idade da pedra. Letras não são, portanto, propriedades de quem escreve. Se querem ser entendidos, podem até florear as letras, mas que continuem parecendo letras e não os rabiscos pueris que vocês costumam apresentar.

12- "Variante" é o que varia, o que permite mudança, e o único carro que consegui comprar com a merreca que ganhava aqui, mas é minha e eu mereci cada ponto de solda, em vez de ficar esperando o papai dar um novo no natal mesmo não tendo aprendido lhufas durante o ano todo.

13- "Nação" é como uma evolução de "comunidade", um grupo "que tem a ver", com língua, costumes, leis e história próprios.

14- A Baía da Guanabara fica no Rio de Janeiro, não em Salvador.

15- São Paulo não é a capital do Brasil.

16- Não existem ursos, elefantes, tigres ou qualquer animal de grande porte na Amazônia.

17- Não sei se lhes contaram, mas Papai Noel moraria na Lapônia, então foi perda de tempo mandar cartas para Belém do Pará.

18- Coelhinho da páscoa não é uma ave.

19- Ser ecológico não é usar casaco de pele de foca, mesmo sendo cem por cento natural.

20- Última lição: "Hiato" é o que há entre suas orelhas.

Cola as abas de ambos os envelopes, devidamente endereçados e segue à sua Variant 1979 bege. Nunca pensou que uma demissão lhe lavaria a alma. Sente-se livre, leve, solta. Entra na velha companheira e vai passear, amanhã pensa no resto.

01/08/2009

Exposição de arte

Maria foi ao museu de arte moderna. Logo na entrada é recepcionada por uma sineta de vacas e uma buzina, ao lado uma longa placa explica os conceitos e as implicações inerentes às metáforas implícitas, et cétera, et cétera, et cétera. No rodapé um convite para o motel. Segue ao salão.
Dá de cara com uma bicicleta velha e enferrujada, que tem tênis no lugar das rodas e uma jarra em forma de abacaxi no lugar do selin. Ao lado uma plaqueta onde se lê "Assim pedala a humanidade". Duas jovens se aproximam com olhares de superioridade sobre Maria, e começam a discutir as implicações daquela obra. Citam de Saramago até a Torat, mas elas mesmas não têm certeza do que estão dizendo. Maria se afasta.
Logo adiante cinco manequins de plástico com frutas no lugar das cabeças. Até imagina a que se refira o artista, embora acredite que um texto ou uma charge desse melhor o recado. Na plaqueta lê apenas "Desfrute". Se ao menos as frutas fossem de verdade...
Anda mais um pouco e encontra mais gente compenetrada em discutir sobre algo na parede. Ela se aproxima e descobre o que é: o extintor de incêndio. Um barbudo fala sobre sexualidade reprimida, enquanto outra afirma que é sobre a super valorização do volátil em embalagens chamativas, um grupo à parte busca referências bibliográphicas a respeito. Maria vê e comenta, inocente, que precisa ser recarregado. Então se forma um fórum sobre a brilhante observação sócio-política. Ela se afasta, assustada.
Em uma sala vê dezenas de bonecas com barbas postiças. Só isso e nada mais. Nenhuma plaqueta, nenhuma informação. Cerca de setenta bonecas enfileiradas. São bonecas ordinárias, que se compram em sacos transparentes e ainda têm algumas rebarbas de plástico. Aparece uma criança, esta olha e solta "Que bonecas feias!" e volta para a mãe, esta envergonhada pela falta de cosmopolice e intelectualidade da pequena.
Noutra sala vê uma banca de revistas montada, onde só se pode ler, não levar. Só vê mangás. Abre um e vê todos coloridos por dentro, com os balões de fala preenchidos com termos chulos. Detalhe: Tudo colorido com lápis de cor, de modo que uma criança pré-escolar não faria pior.
Logo em frente uma velha balança de feirante com o mapa do Brasil na bandeja. Ela se aproxima e um artista de terno e cara pintada de branco não permite que ela se aproxime, sempre alertando para os trâmites, os regulamentos e as legislações vigentes. Maria concorda, melhor não se aproximar, aliás, melhor ir embora. Mas antes vai ao banheiro.
Entra em um box, levanta a tampa e vê um pênis plotado na parte de dentro. Decide segurar até chegar em casa.
Pelo caminho, consegue a boa vontade em uma lanchonete e se esvazia lá mesmo. Aproveita que não almoçou e come algo. Toca o celular. Já que está perto, busca um poster com uma cena do último passeio da família.
Escolhe a moldura, paga e leva. Pendura na sala de estar, que rapidamente se enche de parentes e amigos expondo lembranças do evento. Lembram ainda que foi naquele passeio que Maria aceitou o pedido de casamento, que não tarda a acontecer. Passam o resto da tarde falando a respeito, com um álbum de photographias no colo. Imagens que quem já se foi, de quem está fazendo vestibular para ir e de quem acabou de chegar. Combinam outro passeio para outro álbum e, quem sabe, outro poster.