17/02/2007

Vovó

Vovó estava tão linda! Aquela expressão tão serena e delicada que só ela para ter mesmo. Lembro que ela me ensinou a fazer bonecas de pano, quando eu ainda tinha meus cinco ou seis anos. Foi bom ter aprendido isso tão cedo, não fui seduzida pelo apelo das bonecas de plástico.
Quando completei dez anos ela, que já tinha me ensinado a remendar minha própria roupa, me deu a máquina de costura à qual trabalhou na juventude. Alguns acidentes, algumas coisas inindentificáveis e aprendi a usar aquele aparelho. Foi bom ter aprendido isso tão cedo, fiz eu mesma as roupas que queria, pela décima parte do que minhas amigas gastavam com as suas.
Quando debutei... Meu Deus, aquela mulher não era mais louca por falta de uma irmã gêmea. O Fusquinha 1960 com forração vermelha, tirado novo pelo meu avô. Ela me entregou as chaves e disse "Vai treinando, quando tirar a carta, já vai ter o seu carro". Claro que as garotas zombaram, dizendo "Ou é carro ou é Fusca", mas eu tinha meu Fusca, elas nem isso. E tenho até hoje. Foi bom ter acontecido tão cedo, aprendi a valorizar as coisas mais simples e não ser fisgada pelo luxo.
Quando fiz dezoito tirei a carta... e apresentei o homem que se tornou meu marido. Imaginem a reação quando cheguei em casa com um negro, sendo eu a oitava geração de uma família ítalo-germânica. Não fosse a vovó, teriam escorraçado ele de lá, e o rabugento do meu pai teria perdido seu parceiro de filatelia.
Mas há uma coisa que Graça Patrícia Bayern me ensinou e que valeu por tudo o que sou hoje: Desapego. Não pensem que todos aqueles presentes vieram de graça, fiz por merecer cada um. Neta de berlinenses, teve uma educação austera e disciplinadora que não conseguiu passar para os filhos, mas me ensinou na íntegra. Aprendi desde cedo a dar valor a cada pequena coisa, cada momento, cada palavra. Mas também que nada disso me pertencia de verdade, como quando meu avô morreu e ela disse "Viu? Se fosse realmente meu, não teria ido embora" com aquele sotaque que não sei como conservava em tanto tempo de Brasil. Não diluiu meu luto, mas encurtou muito. Quando todo mundo ainda chorava abraçado no meu Fusquinha, eu já tocava a vida. Pois se parasse para lamuriar pelo que foi, perderia o que estava sendo e ficaria ainda pior.
Contam que quando ela estava em uma praça, levando meu pai para tomar ar fresco, soltaram o boato: "A princesa Grace de Mônaco está no Brasil!". Dizem que a verdadeira achou graça dos jornalistas, só o meu avô que perdeu as estribeiras. As photographias não deixam dúvida quanto às semelhanças, linda de morrer. Mas assim como o marido não pertence à esposa, a avó não pertence aos netos. Foi bom ter aprendido isso tão cedo, mais do que qualquer outra coisa que ela me ensinou até ontem.

FELI$ NATAL

Feli$ Natal.
Heim? Já passou? Não, não passou, ainda está por vir.
Não, não é uma daquelas philosophias complicadas que dão sono até na guarda do palácio. Enquanto vocês estão contando os tostões para gastar em ovos de chocolate, a indústria e o comércio já estão de olho na próximas datas comercialmente apelativas. Neste exacto momento há um batalhão de marqueteiros planejando a campanha para o Dia da$ Mãe$, quando este estiver se aproximando o dos namorado$ começa a ser planejado e assim por diante. Ou seja, daí para o natal é um pulo, ou uma verba publicitária. Só me adiantei um pouco às agências de propaganda.
O povo reclama muito desse aspecto tão materialista que imprimem nessas datas, que em tese deveriam ser sagradas. Concordo plenamente. Entretando devo fazer as vezes de advogado do diabo. Por mais triste que o excesso seja, o trabalho em si é bom. Não vou discorrer sobre a exploração da mão-de-obra e a mercantilização (esta citarei mais adiante) dos sentimentos envolvidos. Vou falar das pessoas que, muitas vezes, não têm conseguido sobreviver sem essas datas. Emprego está difícil até na Alemanha, imaginem aqui, onde o governo já comemorou quedas insignificantes do desemprego. Não são só pais de família, como também idosos e adolescentes.
Os primeiros geralmente têm urgência em encher a despensa, depois de enviar currículos até para sósia do Bin Laden, porque a barriguinha do bebê não conhece indicativos econômicos, ela reclama com ou sem emprego.
Os segundos eu retificaria, qualquer pessoa acima de quarenta anos é preterida pelos empregadores, apesar da experiência que trazem e da capacidade de motivar a equipe que só a idade lega. Mas na hora de comprar, aha, até Matusalém serve.
Os últimos são alvos da falta de experiência. Fazem um estardalhaço para promover productos de mau gosto e aspecto chamativo, atraindo a atenção e a mesada, mas na hora de pagar salários, querem que nasça pronto.
Essa gente só tem essas datas para garantir uma situação menos sofrida. Se de uma hora para a outra as pessoas decidissem não gastar mais um centavo sequer em comemorações, o tecido social não se rasgaria, seria feito em trapos imediatamente. É aqui que começo a falar da mercantilização dessas datas. Há responsáveis que ganham com isso, que ganham muito com isso. Por conta desses responsáveis, a indústria deixou de investir em mão-de-obra talentosa para investir em mão-de-obra especializada; se sair um milímetro do que aprendeu na faculdade, trava. Hoje esses artesãos são escassos, por isso mesmo ficaram caros e agora os meios de produção em massa estão com imensas dificuldades em reaver seus préstimos, e sendo poucos a formação de novos artesãos também é dificultada. Mas não é só, esses responsáveis agora estão correndo atrás do prejuízo que causaram em nome da eficiência e da lucratividade, o ar que respiram e a água que bebem estão comprometidos. Estão investindo pesado agora em algo que deveria estar pronto há décadas. Esses responsáveis, caríssimos, estão em escritórios refrigerados, em chalés aquecidos, em campos de futebol, em botecos, furando o sinal vermelho, cozinhando o jantar, pedindo uma pizza, et cétera.
Não reclamemos. Nós todos somos responsáveis pela mercantilização do sagrado. Ainda que só há pouco tempo estejamos começando a nos dar conta disso. Não existe "O" mercado; NÓS somos o mercado. Se as pessoas supracitadas estão nessa situação ruim, é porque NÓS permitimos que nos manipulassem. Ao contrário do que os inescrupulosos pregam, NÓS-MERCADO temos coração sim, só não temos juízo, se nós quisermos que os especuladores que ganham com o sofrimento alheio saiam do páreo, eles saem. Mas para isso precisamos sair da letargia em que nos encontramos e começar a pensar com nossas próprias cabeças, prestando atenção naquilo que compramos, de quem compramos e porque compramos. Há países que usam mão-de-obra escrava, sob os mais diversos eufemismos, por isso vendem bugigangas a preço de banana. Há países onde a manifestação popular é crime, por isso os especuladores pagam o que querem e os empregados ainda se dão por satisfeitos, de onde também se conseguem preços muito baixos.
Na próxima vez que quiser protestar contra uma data comercial, proteste sabendo o que vai comprar. Escolha de quem vai comprar, não se deixe levar pela pechincha. Agindo assim, quem sabe, possamos tornar os comerciais apenas um detalhe das datas comemorativas, e dizer ao fim de dezembro FELIZ NATAL. Mas isso não se dará tirando o meio de vida de gente em dificuldades. Antes de falarmos em salvação da alma, teremos que matar a fome do indigente.

03/02/2007

Talvez

Talvez não seja exactamente aquilo que gostaria de ser, mas quem é? Oxalá fosse um oitavo do que poderia ser.
Talvez não deja exactamente aquilo que os outros gostariam que eu fosse, mas quem é? Oxalá tivessem uma razão razoável para exigirem isso de mim, ou de qualquer outro. Exijam de si mesmos.
Talvez não goste da vida que levo. Por mais resilente que seja, sempre há um desconforto agudo que não consigo solucionar. Mas por que me culpar? Ainda se a culpa resolvesse algum problema.
Talvez não devesse menosprezar o mundo. Mas não gosto dele, o que hei de fazer? Acho-o grosseiro demais, feio e desnecessariamente agressivo. Tolero.
Talvez devesse me esforçar mais para saber o que as pessoas esperam de mim, isso melhoraria minha sociabilidade. Mas não consigo saber nem o que eu espero de mim! E não devo coisa alguma à sociedade.
Talvez eu esteja envelhecendo mais depressa do que seria desejável. Ou será que tenho razão? Deus queira que não, detesto ter razão. Quando acerto é porque se trata de alguma tragédia ou um prejuízo, então fico o dia todo a ouvir aquela ladainha: "Você tinha razão", como se isso ainda adiantasse de alguma coisa. Não quero ter razão, quero resolver o problema!
Talvez não tenha sabido perdoar as pessoas a contento, ainda que elas me infrinjam uma ferida sem nem dar tempo de a outra cicatrizar, para depois virem me pedir ajuda na primeira crise. Afinal, se pedem ajuda é porque precisam, ainda que suas consciências digam que não merecem.
Talvez não tenha sabido me perdoar. Meu caminho parece ser muito íngreme e inóspito para a maioria. Essas duas qualidades não admitem muita margem para erros, mas eu erro, ou não estaria aqui. Aliás, estou aqui a contragosto, reencarnei com solenes protestos.
Talvez nem goste de mim. Pode ser isso. Olho no espelho e raramente não me entristeço com o que vejo, minhas photographias sempre me deixam mais estúpido do que realmente sou, com cara de vítima.
Mas não tenho certeza nenhuma.