31/10/2018

Epitáfio de um vivo



  Não lamento as perdas ditadas pelo ciclo do inevitável, cuja vacância resultante abre a porta para o novo; sem a respiração deste ciclo a vida estagna e apodrece.
    Não lamento as perdas mais caras que cumpriram com seu dever, cuja dor resultante empunha a forja do caráter; sem os golpes deste ciclo o espírito enfraquece e sucumbe.

    Lamento somente a porta trancada que não permitiu a entrada do novo, deixando a perda crua e seu ônus descoberto sem a bonificação.
    Lamento silente a perda que em vão deixou sua vaga vazia e ressonante nas quatro paredes duras do vazio que se estabeleceu perene.

    De tudo o que perdi, vi cego em flashes fugazes a fuga do que fazia a diferença, levando consigo seu valor. Ainda que tudo perdesse havia então a esperança de tudo recobrar, ainda tinha eu a vontade pujante de viver.

    De tempos em tempos mais um pedaço que tinha morrido deixava o vazio maior, evaporando no nada em que as lembranças de apoiavam; Era duro sustentar tanto peso no vazio.
    De tempos perdidos eu já tinha um cervo que adoçava com a calda da esperança, evaporando as lágrimas vertidas das dores lavadas; Era duro perceber que ainda assim a dor aumentava.

    Cantei silente a melodia que aos poucos se desvanecia da memória sobrecarregada, deixando em brumas tudo o que tinha nitidez.
    Cantei inocente a esperança de que toda perda eu recobraria no fim da estrada, mas a força pujante sem reposição um dia se esgota.

    De tudo o que perdi, vi já não tão cego, mas ainda nebuloso a fuga da esperança remanescente, levando consigo seu calor. Ainda que tudo perdesse havia então a decisão de tudo recobrar, ainda tinha, petulante, a firme decisão de viver.

    Já havia mais passado do que porvir, o prazo escasseando indiferente ao que eu sonhava ou deixava de sonhar, e o sonho perdeu as cores como uma photographia exposta à chuva e ao sol; É duro perceber que só lembro o que sei, que o sentimento desapareceu com os rostos.
    Já havia mais pesares do que sorrir, os olhos secando pela lágrima faltante hoje dificultam dormir, e dormindo não há mais sonhos que refaçam a lucidez perdida, somente monstros das lembranças distorcidas; É duro enxergar mais do que pelo espelho se vê.

    Chorei mudo o choro seco que a meus olhos irritava, vindo então como única certeza o campo estéril que meu trabalho não foi capaz de fertilizar.
    Chorei alheio ao mundo em meu mundo fechado para não ser incomodado, vendo minha distopia desmoronar e revelar a areia suja do tempo de quem sofre só.

    A inércia mantém o movimento, Deus sabe até quando. A estrada não parece ter fim, o aclive mais íngreme a cada passo, mas parar não me pouparia do cansaço, só aumentaria a dor da fadiga. Não viria o desenlace para tudo terminar, só aumentaria o sofrimento da dor crescente. Músculo quente dói menos, músculo só se aquece em movimento.

    De tudo o que perdi, vi então ante minha cegueira moribunda, nada mais fazia diferença, nada mais tinha sabor. Ainda que tudo recobrasse nada mais serviria em meu favor. Já tinha eu, sem perceber, perdido a mim mesmo.

23/10/2018

Cartilha do que é Pedro


Isto é Pedro / Não é mais.

Segundo as definições acadêmicas, catedráticas e intelectuais sobre Pedro, Pedro é um homem de barba cheia com olhar vago e cabelos longos. Pedro usa camisa xadrez verde e jeans índigo tradicional, com sapatos marrons de bico largo. Ou seja, isto é Pedro! Pedro tem barba, assim ele foi definido e só assim será reconhecido e devidamente tratado. Está claro e inequivocamente descrito em nossos conceitos escritos em linguagem adequadamente academizada e prolixa, com os neologismos pertinentes.

Isso é parte dos cânones dos anais retóricos de nossa conceituologia amplamente debatida democraticamente enquanto empoderamento ao nível de contribuição acadêmica a uma sociedade que deve se adequar ao decidirmos que assim seja. Foi decidido e aceito por ampla maioria e decretado que todos deve aceitar que assim o é. E “TODOS” inclui VOCÊ, seu subversivo! Foi decretado democraticamente em reunião da qual só nossos membros foram avisados, portanto TODOS DEVEM SE SUBMETER democraticamente às definições do colegiado!

O que temos aqui NÃO É PEDRO! Não tem barba! Todo o resto coincide, mas NÃO TEM BARBA! Portanto NÃO É PEDRO! Pare de insistir que esse aí é Pedro, seu ignorante sem pompa universitária! Seu disseminador de fake news! Seu inimigo de tudo em que eu acredito! Vai estudar Pedro, vai! Sua marionete de interesses estrangeiros enquanto neocolonialismo globalista!

Quem você pensa que é para contrariar meus filosofinhos de estimação? Eles disseram que esse aí não é Pedro, portanto NÃO É PEDRO! NÃO É PE-DRO! Você só lê coisas de exactas, coisas de matemática, que é inútil! Eu li Nietzsche! Eu rinite! Tendinite! Portanto eu sou intelectualmente superior e você é hierarquicamente inferior, portanto tem que calar a boca e respeitar minhas deliberações!

Veja aqui, seu ignorante sem argumentos! Aqui está escrito o que é Pedro! Você sabe ler? Sabe, seu ignorante? Então leia o que está escrito aqui! Pedro tem barba! Não me interessa o que essa cara aí faz, ele não tem barba, portanto ELE NÃO É PEDRO! Sua falta de intelectualidade canonicamente aceita em nossos manuais te fez aceitar idéias que estreitaram sua visão crítica, que só existe dentro do meu círculo! Aceite e se submeta, se sabe o que é melhor pra você, seu sabotador!

Validação? "VALIDAÇÃO"? O que você quer dizer com isso? Você devia ser morto por acreditar nessas coisas! As deliberações de nossa entidade não precisam de validação externa, nós somos autovalidantes! Nós temos os intelectuais! Nós temos a literatura! Nós não precisamos resolver problema nenhum, nossa existência se basta! Você é que tem OBRIGAÇÃO de seguir o que decidirmos! E nós decidimos que se não tem barba, não é Pedro! Só será Pedro quando a barba voltar a crescer e tiver o corte determinado por nossos manuais!

Enfia esses documentos no rabo! Você nem devia estar aqui, num lugar de intelectuais imprescindíveis ao mundo! E joga essa p@##* de documentos fora agora! Isso não vale nada! Nossa cartilha decretou que Pedro tem barba, então ele não é Pedro! Enfia a constituição lá também, só seguimos as deliberações do comitê, essas leis aqui a gente usa pra limpar a bunda! Vai se #*@& babaca! E sai logo da nossa área senão vai ver, a polícia ainda não pode entrar aqui!

- Ok, Pedro, vamos oferecer os estágios remunerados com casa, comida, roupa lavada e passeios turísticos em Michigan para outro grupo.

- Aqueles ali, conversando alegres com quem não concorda com eles, deve aceitar.

P.S: Texto curto baseado no que eu já li, vi e ouvi... e ainda ouço.