27/08/2020

Zezinho e a pandenóia

 

                                                                           Norman Rockwell

       Zezinho se senta à mesa da lanchonete em que é cliente desde, bem, desde que era pequeno, porque criança ele ainda é. Aguarda com a paciência que seus maduros oito anos lhe ensinaram a ter, mas da qual é bom não abusar, até vir o milkshake de chocolate com mel. A garçonete asperge um pouco de álcool no tampo de madeira reaproveitada, ele faz aquela cara de quem quer acender um isqueiro, ela põe a taça na mesa e ele se acalma, então saca o canudo que cedo ou tarde vai virar peça de algum brinquedo que ele mesmo fará, põe uma ponta na bebida e tira com cuidado sua máscara com a frente malvada do Cadillac 59 estampada, suga o primeiro gole e então fica feliz… mas por pouco tempo. Logo ouve o som insistente e irritante daquele esguicho fazendo “fish! fish! fish” logo atrás, se vira e vê um sujeito atarracado insistindo para o garçom borrifar várias vezes cada milímetro da mesa, repetindo “tem certeza de que matou o vírus?” ou “acho que ele pode se esconder numa fresta e pular, olha ali”, continuando com “ALI! O VAPOR DO ÁLCOOL NÃO ENTROU ALI!!!!” até empestear todo o ambiente com vapores etílicos. É um custo acalmá-lo quando alguém abre uma janela para dispersar o cheiro, ele alega que os vírus vão entrar.


        Na mesa ao lado uma adolescente tira e põe a máscara a todo momento, para comer o sanduíche, no final das contas a máscara fica com as bordas cheias de maionese, ketchup, mostarda e sazón, mas não tem problema, ela encharca com álcool e acende o isqueiro, então tira uma nova da bolsa, de dentro de um saquinho esterilizado e faz tudo de novo. Na mesa ao fundo alguém conseguiu uma máscara articulada, que se abre com a boca em um efeito medonho, mas funciona na hora de comer o sorvete, apenas tem o cuidado de ninguém mais perceber, para não ser politicamente incorrecta em tempos de enfrentamento da pandemia causada pela Covid 19 do Novo Coronavírus. Ao balcão um rapaz asperge álcool em cada ingrediente do sanduíche, esperando evaporar e aspergindo de novo, vai que o vírus ressuscita, nunca se sabe; o gosto horrível que fica é um preço módico na luta total contra a pandemia da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus! Diga não à contaminação!


        Uma adolescente com roupas desengrenhadas, também borrifando um álcool de cheiro estranho, com uma máscara com folhas de canabis, chega apontando o dedo para ele, acusando-o de ser o assassino da fauna marinha, por causa do canudo. Ele responde educadamente que reutiliza e recicla, que não se pauta pelo mau comportamento público do brasileiro, mas ela continua com seu discurso exaltado exigindo que ele use um canudo de aço inoxidável, ouvindo “Que consome megawatts de energia para ser produzido e é embalado com plástico suficiente pra produzir uns vinte canudos”. O discurso de abolição dos polímeros dura até ele apontar em suas roupas e na tintura de cabelo a quantidade de plásticos que ela usa. Sem se dar por vencida, alega que quela é a verdade dele contra a verdade dela, no que ouve “Eu não sou Deus, minha opinião não vira Cadillac 59 só porque eu quero, então eu não chamo isso de verdade, o mesmo pra sua”. Ela simplesmente tenta pegar o canudo, ele passa o dedo na língua e passa no ombro dela, que corre desesperada tentando se desinfectar. Zezinho suspira, lamenta, pensa “este lugar já foi melhor freqüentado” e volta ao seu lanche.


        Entra um sujeito franzino de óculos, portando uma cara de pesca bem longa. Ele evita tocar e ser tocado, parece que flutuaria para não tocar o chão, se pudesse. De máscara, protetor de rosto, boné, mangas longas, bota de cano alto sobre as calças e luvas, ele chega ao balcão pedindo o que tinha encomendado, com o dinheiro no anzol com uma caixinha estranha logo acima. O balconista pega o dinheiro, confere e pendura a marmita, caixinha libera álcool aspergido e o cidadão vai embora como se fosse derreter ao menor contacto. Deixa cair uma nota de cem, mas prefere sair sem tocá-la, já está contaminada com vírus, bactérias, bacilos, retrovírus, adenovírus, amebas, parasitas, fungos tóxicos, síndromes e atestados de óbito prévios. A faxineira varre a nota para dentro da área de funcionários e some, abandonado não é roubado.


        Suspira fundo e tenta se concentrar em seu acepipe preferido. Volta à sua solidão voluntária para saborear lentamente o milkshake, uma sugada de cada vez, ouvindo baixo o tema principal do Super Homem. Eis que aquele homem atarracado decide ir ao banheiro e borrifa tudo por onde passa, inclusive Zezinho, que se indigna e tem “Cala boca que cê tá errado, a pandemia existe e o corona mata sim! E põe essa máscara senão te denuncio”. Zezinho pensa “Dou um boi pra não entrar numa briga” e aguarda. Quando o sujeito volta, finge que espirra e o deixa desesperado, se borrifando até tomar um banho de álcool, reclamando de tudo e borrifando mais a mesa que usa. Olha para Zezinho e borrifa no milkshake dele também, no que o garoto pensa “mas nem uma boiada me tira dela”. Chama a garçonete, pisca e diz “Vocês limparam a parte de baixo das mesas?” e o desaforado fica de butuca. Ele olha por debaixo do tampo e vê tudo seco, então começa a borrifar e Zezinho continua “Sabia que algumas bactérias estão ficando resistentes ao álcool?” e ele começa a jogar goles de álcool sob a mesa, vê suas mãos empoeiradas e as encharca também, borrifa nos braços e vai subindo até chegar à camisa, logo tem mais álcool nele do que no tanque do Opala do pai de Zezinho, que pede outro milkshake a assiste a tudo com olhar de triunfo.


        Chega o milkshake novo e o desaforado já foi embora, com medo de contrair câncer de escamas. Agora ele põe Silêncio de Beethoven em baixo volume e saboreia seu lanche. Olha com carinho para a bebida, quando vê um ponto vermelho sobre a mesa se movendo rapidamente na sua direção, olha para frente e vê uma mulher com um termômetro infravermelho. Ela testa sua temperatura e depois sai pela lanchonete testando todo mundo, testa até a dos banquinhos, para se certificar de que foram higienizados, pela temperatura mais baixa. Senta-se de termômetro empunhado, como se fosse uma arma, encarando todo mundo. Ele pensa “Não, isso não está acontecendo”, funga um pouco e volta a sugar, então vê aquele ponto de laser de novo sobre sua mesa e diz “Moça, estou tomando um milkshake, posso? É bebida gelada, claro que a mesa e eu estamos mais frios”. Ela faz seu pedido, mas ainda o encarando, como se o que ele disse fosse uma confissão de ilícito, Zezinho suspira e completa “Moça, essa coisa aí mede a temperatura, mas não informa a causa! Se eu estivesse contaminado, isso não daria um teste diagnóstico, e também não mede a temperatura de vírus e bactérias! Tô falando aqui e um monte de micro-organismos (prestou atenção às aulas de ciências) tá saindo pela minha boca de caçapa, do mesmo jeito que saem do seu nariz de tartaruga ninja quando espira! E eles estão vivos”. Ela pára, pensa, olha o salão e começa a ver germes gigantes se avolumando nas mesas e no balcão, se desespera e sai correndo. Zezinho vê a banana split que ela nem tocou, olha para o balconista, pensa na própria mesada e assume a conta, pede que a traga. Pensa também em seu trato digestivo ao ter que ingerir tudo aquilo.


        Entra no recinto uma figura alva e esguia com seus curtos cabelinhos louros estilo Joãozinho, com seus olhos verdes serelepes vasculhando o ambiente. A máscara com logos da Varig não esconde a identidade da menina de óculos finos, que já está mais alta do que ele; é Mariazinha, por cuja simpatia recebeu muitos ataques e acusações de racismo. Ele se levanta bruscamente, chamando sua atenção e ataca “Mademoiselle, sua banana split já está paga” fazendo-a corar e rir daquele jeito que só ela sabe fazer. É a criatura por debaixo daquela adorável aparência que faz seu jovem coração reger rapsódias. Ela aceita o convite e ele, que esperava desfrutar de momentos de solidão, aceita de bom grado uma invasãozinha tão adorável. Falam com brevidade dos dissabores de hoje, que no caso dela vêm se arrastando pela semana. Suas jovens vidas têm recebido apresentações rudes e precoces do mundo adulto.


        Enquanto consomem seus acepipes e se acalmam no decorrer da conversa, aquele sujeito atarracado chega com um policial. Ele aponta para Zezinho e dispara “Ele não acredita que estejamos diante do enfrentamento da pandemia mundial da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus e que o distanciamento social seja uma prática avalizada pela Organização Mundial da Saúde para conter a onda de contaminações diante do novo normal”. O policial faz cara de “hein”, Mariazinha faz cara de “ã” e Zezinho faz cara de “PQP, QUE P@##@ É ESSA”. O acusador arreganha um sorriso de triunfo debaixo da máscara cheia de cerquilhas e palavras de ordem, certo de que haverá punição exemplar e será aclamado como herói da saúde pública, enquanto borrifa tudo ao redor, mas o policial retruca “mesmo que seja verdade, o que não me parece, o Brasil ainda não tem crime de opinião previsto em lei”. Ele fica indignado, a pressão sobe e o tom também, o que lhe rende uma prisão por ameaça e desacato, então Zezinho, com o canudo na boca para poder exibir o sorriso de quem riu por último, dá tchauzinho e volta à sua afável companhia.


        Eles trocam olhares e, de repente, uma bolha mágica os isola do resto do mundo e os dois aproveitam a solidão compartilhada em paz.

12/08/2020

Formiguinhas gringas pelo Brasil

 

Clara Nunes

            Dizia-se nos anos 1980 que o estrangeiro gostava mais do brasileiro do que o próprio brasileiro. Elke Maravilha ia além ao afirmar que, segundo seu pai, brasileiros não gostam uns dos outros. Tudo isso é verdade, seguramente não toda ela, mas é. Antes de culpar os outros países por isso, devemos lembrar qual é a educação que o brasileiro recebe desde a mais tenra idade, que inclui philosophias torpes bem exploradas por Machado de Assis. Uma delas é o tal “jeitinho”, que implica basicamente em burlar as regras de modo simpático, para que não pareça ser algo ruim, mas é. Outra é a máxima do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, na verdade isso se aplica mesmo quando sobra farinha, então muda-se para “a farinha é minha e ninguém tasca”, depois faz-se caridade dando migalhas aos outros, posando de bom samaritano. Tudo isso se reflete na política e na mídia, que não têm como agir sem o aval de seu público, mesmo que implícito ou involuntário, mas involuntário não significa fora de sintonia; colocar as lentes da religião, da ideologia, das convicções ou mesmo de meras opiniões com rótulo de “verdade” ajuda a aceitar aquela imagem horrorosa que está bem à frente, mas que as distorções ajudam a tornar no mínimo aceitável; às vezes fazendo a Sofia do Nazareno ter ares de Ava Gardner. O brasileiro tem orgulho de coisas absolutamente supérfluas, como futebol, ou mesmo erradas, mas não dá a mínima para o que seus compatriotas fazem de útil, como tecnologias altamente versáteis que saem de nossos laboratórios públicos e privados. Mas mesmo essa distorção de caráter pode ser desviada para algo bom, como a empatia.

 

            O mesmo vale para os orgulhos nacionais, para os quais o brasileiro de chinelo, regata made by slave e calção “abajur de quenga” bate no peito e exibe a banguela em um sorriso largo. Um deles, em uma relação de amor e ódio epático, é o SUS. Eu lamento informar, mas ele NUNCA foi pensado para atender a toda a população, ou não seria tão perverso na hora de conceder aposentadorias. Foi pensado para a propaganda estatal do governo fascista de Vargas, e acabou dando mais certo do que o esperado, ainda assim MUITO aquém do que seria necessário a uma rede de saúde totalmente financiada pelo erário, com alguns pontos de referência e excelência, utilizados para alimentar nossa fantasia de saúde pública. Sim, a idéia é boa, mas o conceito está longe de ser realmente bom, porque foi pensado para ser centralizado, sob as rédeas do ministro, com uma burocracia gigantesca que consome grande parte dos recursos. Entretanto, estando a população de acordo com o financiamento dessa saúde subsidiada, e foi aqui que Obama pecou crassamente com sua proposta em seu país, uma estritura descentralizada, enxuta e bem gerida de saúde pública é algo próximo do paraíso. Feitas consultas públicas para alterações importantes, mesmo que informais, algo expressamente proibido pelos idealizadores do serviço, bem como o estudo de boa vontade das queixas e sugestões populares, o SUS, ex INPS (para quê mudar nomes, senão para propaganda própria?) beneficiaria até quem não se utiliza dele.

 

            Ainda nos anos 1970, dizia-se que as porcarias enlatadas do estrangeiro sufocavam a música nacional, o que era mentira, pois na época os músicos eram quase deuses para seu público, eram explorados sim por outros brasileiros, que os amarravam em contractos sinistros que, em caso de saída do selo, praticamente impediam o artista de trabalhar. Daí nasceu o ECADE, que só serve para arrecadar e amarrar tanto a produção quanto a execução e a reprodução musical. Bem, hoje sabemos que podemos fazer lixos que fazem o lixo deles parecer música erudita, e se tornou mais um “orgulho nacional”, de gente que bate no peito para exaltar sua miséria generalizada, não importa quanto dinheiro tenha. Ah, claro, morar em áreas de risco, dominadas por facções criminosas, se submetendo a ser fantoche midiático desses grupos, também virou motivo para… orgulho… com quilômetros de discursos prolixos e cheios de referências para exaltar e eufemizar tudo isso… estão chamando gato selvagem de bichado geneticamente alternativo, como se isso tornasse seguro sua posse doméstica. Sejamos honestos de verdade, morros íngremes e desprovidos de infraestrutura não são lugares para pessoas viverem, e ninguém está (cof, cof) lutando para tirar aquelas pessoas de lá e realocá-las em lugares dignos, quem sabe até imóveis públicos não utilizados, simplesmente porque Elke estava certa, eles não se importam com essas pessoas, não dão a mínima para elas, estão se lixando até que uma tragédia aconteça e possam fazer palanque de seus caixões. O que isso tem a ver com a música ruim? Dê uma olhada nas letras de apologia ao baixo-ventre e à violência contra a polícia, que o filho de um amigo policial adorava há até não muito tempo… Mas ninguém chama o Batman, quando precisa de ajuda.

 

            Com tudo isso, apesar de tudo isso, a despeito de todas as conseqüências com trema que é o jeito certo de escrever, o país tem virtudes sim. Sabiam que a Vale está testando a primeira locomotivatotalmente eléctrica, sem fio, alimentada apenas por pesadas baterias, fabricada aqui mesmo com tecnologia nacional? Pois sim, é um veículo de manobra, não para longas viagens, mas ainda assim seus 4400cv dão-lhe um poder de tração invejável, força bruta absurdamente grande, muito além do mais poderoso trator de esteiras do mercado. A configuração é prefeita para economizar com infraestrutura de longas, caras e dispendiosas torres de alimentação, além de ser imune a eventuais cortes de fornecimento. Ainda cito o bruto e quase indestrutível Agrale Marruá, nascido da finada Engesa, pensado para a vida militar, que faz o legendário Land Rover Defender parecer um frágil SUV de boutique, tamanha confiabilidade e aptidão para o fora-de-estrada. Temos tecnologia de ponta no Brasil, sufocada por tudo o que escrevi nos primeiros parágrafos, que poderia nos tirar fácil e rapidamente do buraco financeiro em que estamos desde o fim do império. O que resta então ao pesquisador, ao empreendedor e ao artista sério, é buscar ajuda e oportunidades lá fora; inclusive em lugares que a intelectuália retorista abomina. Nem vou me aprofundar no uso de biocombustíveis e nos motores multicombustíveis, área em que somos o ÚNICO país que leva a termo E tem sucesso na aplicação da tecnologia, isso já inclui a aviação experimental. Neste caso, são os outros países que estão fazendo corpo mole. Preciso falar da Embraer? Não, não preciso. As dificuldades pelas quais passa, passarão, ela passarinho a jacto.

 

            São coisas que a mídia faz de conta que não existem, e quando mostra é de forma tão superficial quanto tendenciosa, se preocupando mais em tornar os responsáveis celebridades, do que informar e incentivar a população à ciência e ao desenvolvimento tecnológico. Vamos deixar claro que, apesar de o povo idolatrar celebridades, não dá a menor bola quando elas falam sério, só querem delas ouvir bobagens sem sentido para mero entretenimento. Entenderam agora a fuga de cérebros? Tudo isso alimenta estereótipos, como os de que o Brasil se resume ao Rio de Janeiro e que ele fica dentro da floresta amazônica. Felizmente alguns estrangeiros se decidiram a conferir até que ponto isso é verdade, e estão fazendo questão de mostrar ao mundo que é tudo falso, inclusive os estereótipos sobre a pessoa do brasileiro, desfazendo as generalizações perversas que denigrem, mas são fáceis de vender. São, embora haja até russos saracoteando por aqui, especialmente americanos e coreanos, que muitas vezes até fixam residência, não raro em definitivo. Alguém há de perguntar qual a novidade, posto que temos imensas colônias estrangeiras, no Brasil, inclusive a maior colônia japonesa do mundo em São Paulo. A diferença está nos seguintes pontos, um minutinho que já explico!

 

            Primeiro que quase todos os imigrantes dessas colônias já jazem. Vieram em outras e remotas épocas, noutros contextos e por outros motivos, estavam demasiadamente preocupados em sobreviver para se aprofundarem na cultura de cada Estado em que se fixaram. Também sofreram o trauma das condições de trabalho precárias em um país que se acostumou a fazer as coisas nas coxas, literalmente, o que é inaceitável para povos de países onde o trabalho é não só levado a sério, mas uma honra para quem o abraça. Apesar de falarem das belezas e potencialidades em correspondências, que podiam levar meses para chegar aos destinos, se debulhavam em saudades da terra natal, muitas vezes explicitando o desejo de retornar em definitivo; a maioria não o conseguiu. Mais ou menos como degredados romantizando um paraíso perdido, que no fundo sabiam que não era, mas a visão romântica agia como um bálsamo e nutria as esperanças, encorajando ao trabalho árduo para permitir o retorno em condições melhores do que as da partida.

 

            Segundo que o turismo internacional recreativo só se tornou acessível depois dos anos 1950, e mesmo assim aos poucos, e é esse tipo de viagem que dá início ao aprofundamento de interesses em indivíduos por países estrangeiros. Gente disposta a sair do roteiro de Hollywood só começou a proliferar recentemente, ainda ais com espírito desarmado e disposição a se misturar aos nativos. Mesmo assim, como a maioria de vocês já se deu conta, leva anos para surtir efeitos consistentes e duradouros. Alie-se a isso o advento muito recente da internet, e ainda mais recente a proliferação de canais pessoais com alcance relevante. Foi só de então em diante que esses estrangeiros começaram a falar com propriedade daquilo que viram e viveram. A maioria absoluta, embora não feche os olhos para as mazelas, é muito elogiosa, especialmente no tocante ao tratamento humano que nossos compatriotas lhes dispensaram, e falo especialmente dos americanos, segundo alguns dos quais o Brasil simplesmente os fez mudar para melhor, como pessoas. E não se limitam a rasgar seda, eles divulgam em seus países nossas culturas, nossas peculiaridades e especialmente nossa culinária. Um deles chegou a servir coxinhas em Manhattan, com explicações devidas e saneando os mitos que seus pares tinham a nosso respeito. Mesmo no estigmatizado continente africano estamos arregimentando simpatizantes, gente que vê vídeos sérios sobre o Brasil e fica de queixo caído, pois pelos noticiários se davam conta de que seríamos uma ilha tropical devastada, mas vêem nosso poderio econômico (apesar de tudo) e militar, a imensa diversidade de climas, culturas e paisagens, e passam a ter pena de quem apenas tentar se meter a besta conosco. Ainda entre eles, são muito elogiosos quanto à maneira com que foram tratados, em detrimento de ditaduras em que infelizmente precisam, de vez em quando, fazer escala nas viagens de retorno. Mesmo os portugueses fazem caras de perplexidade e assombro, quando descobrem o que perderam quando deixamos de ser sua colônia.

 

            Mesmo sem virem, eles estudam com afinco e ficam perdidos em meio à grandiosidade do que encontram, especialmente nossos hinos, e alguns estranham termos mais de um, arrancam suspiros pela competente composição. Isso se soma à estupefação quando descobrem que samba é apenas um dos ritmos que temos, e que há mais de um tipo de samba, portanto também mais de um tipo de carnaval, portanto mais manifestações culturais públicas do que suas emissoras seriam capazes de mostrar em um ano inteiro. Quando podem vir, descobrem que uma vida humana inteira não bastaria para conhecerem tudo, ao contrário do que acontece na maioria dos países, minúsculos se comparados ao nosso território. Alguns minúsculos mesmo para os padrões europeus; ou seja, para qualquer país é uma péssima idéia tentar invadir o Brasil.

 

            Na realidade se deu uma explosão de brasilismo que está se alastrando rápido, praticamente todos os gentílicos que o podem, estão exportando uma imagem positiva aos seus países, até mesmo chineses. A quantidade de estrangeiros que fazem boa propaganda do Brasil lá fora, consertando o serviço porco da Embratur, que só mostrava bunda e caricaturas baianas de Carmen Miranda, cresce mais rápido do que eu consigo acompanhar. Eles falam bem, alguns chegam a ser generosos com nossos patrícios, ajudando como podem e divulgando seus pequenos negócios para potenciais clientes conterrâneos que vierem depois, o que é particularmente valioso nesta época de crise profunda. Notei particularidades de alguns gentílicos que falam muito de seus países;

 

            Os moçambicanos em especial são extremamente curiosos e entusiasmados, como o Aurélio. Eles agem como crianças, no bom sentido, esmiuçando tudo o que podem e aceitando com humildade, nossas correções e sugestões. A simpatia e a simplicidade de linguagem, e a mania de falar “mano” como interjeição para tudo, já arrebanhou fãs e até amigos entre os seguidores brasileiros… uhm… será que Moçambique é um pedaço perdido de São Paulo? Alguns deles ficam pasmos quando descobrem que há negros no Brasil. Basicamente, há pessoas por lá que pensam que só existem negros na África… pois é. Eles querem aprender tudo o que puderem, são divulgadores perfeitos e engajados das coisas do Brasil, então peço que sejam solícitos, eles saberão agradecer revertendo a péssima impressão que as instituições carimbaram em nossas testas.

 

            Os americanos querem se enturmar, fazer parte da nossa bagunça e se sentirem brasileiros, por mais espantoso que isso possa parecer; isso é um poderoso antídoto contra os estereótipos que a mídia dissemina. Eles gostam de usufruir de nossa hospitalidade, que para eles é coisa de outro mundo, com elogios rasgados para os mineiros, e fazem questão de alardear para o mundo inteiro que somos o melhor tipo de pessoa do mundo… não, não é piada. Eles vêm e fazem questão de retribuir aos brasileiros que vão para lá. Eles tentam nos fazer ver o lado mais sombrio dos Estados Unidos logo de cara, mas com isso só conseguem fazer os nossos ficarem tão encantados quando eles ficaram aqui, pois logo em seguida nos apresentam aos melhores lugares para brasileiros, inclusive redutos brazucas no quintal do Tio San; eles são mais piegas do que admitem, e nós conseguimos extrair isso comendo pelas beiradas. Nosso idioma é uma armadilha para eles, especialmente por causa dos verbos. Por exemplo, eles têm “you”, para esta palavra temos tu, te, ti, você, vocês, vós, lhe e lhes, piorando a confusão quando descobrem que o nosso português não é parecido com o de Portugal, como o cinema lhes dizia ser. São de longe os mais numerosos obreiros desta senda. Vale à pena conhecer o canal do Tim, o mais brasileiro dos americanos.

 

            Os coreanos quebram o estereótipo de frieza e distância social que atribuímos aos ocidentais, fazem questão de proximidade e de experimentar nossa culinária. Às vezes chega a ser hilário, mas na maioria delas eles surpreendem. É sério, eu vi coreanas fininhas comendo feito um pedreiro que fez hora extra, sem almoço, e a barriga continuava chapada! Garçons olhavam incrédulos sem saber aonde tinha ido tanta comida, e estou falando de coisas como feijoada, farofa, dobradinha, churrasco raiz, entre outras tonelagens estomacais. Como é de regra, eles acham o nosso café forte demais. A eles chama atenção em especial o baixo número de fumantes, que nós achamos alto, isso já rendeu um vídeo inteiro da Coreaníssima. Ela, aliás, é precursora de uma série de coreanos que se dedicam a conhecer e falar do Brasil, eles já se deram conta de que juntando todos os compatriotas, ainda não conseguirão conhecer tudo, viajar mais de 1000 km dentro de um único país é estranho para eles, mesmo acostumados com o gigante chinês bem ao lado, mas a imagem que tinham daqui era de uma ilha tropical,,. Pois é., dona Embratur...

 

            Os russos são figuras! Estranham tudo a ponto de parecer que desceram em outro planeta, mais ou menos como “Moscou! Encontramos vida alienígena, não temos certeza de que seja inteligente, mas é divertida”. Como os demais, o nosso idioma intrincado os confunde muito, mas nossos hábitos chegam a ser bizarros, alguns chegam a perguntar se temos problemas bucais crônicos, pela freqüência tremada com que escovamos os dentes. Eles, reis da excentricidade, nos acham malucos! Oh, honra suprema, tidos como esquisitos pelos mestres da arte! A dramaticidade com que falam pode assustar os desavisados, mas só terão sido gentis; eles são dramáticos em tudo. Um mito que ainda têm na Rússia é que somos uma ilha tropical na América Central, choca quando chegam, descobrir que mal cabemos na do Sul… e que temos colônias russas no Brasil! E que sabemos localizar a Rússia no mapa! Então eles tocam de roda feito crianças descobrindo a casa nova, querem conhecer a tudo e a todos, demonstrando uma incrível capacidade de entrosamento. É bom lembrar que o idioma pode gerar constrangimentos; por exemplo, “olá” soma como Ola, diminutivo de Olga, e Rui soa como “ruy” que significa literalmente “pênis” … Tomando cuidado com perguntas delicadas, mas sem hesitar em fazê-las, a convivência é até festiva.

 

            Estes foram apenas os principais e mais freqüentes exemplos, e impressões que me deixaram, não haveria páginas suficientes. Eles deixam claro que o Brasil não é para amadores, não é para covardes e, principalmente, não é para invasores. O certo é que são pessoas comuns, não ONGs ou autarquias que agem sob ordens de sabe-se lá quem com sabe-se lá que propósitos, que vão nos ajudar a sair do buraco, e essas pessoas já assumiram a seara em um trabalho de formiguinhas pelo mundo inteiro… que tal as formigas daqui cooperarem?