27/07/2020

Se doer, doe-se


        Desde o suicídio do neto de Elvis tenho testemunhado uma avalanche de jovens repentinamente atormentados pelos mesmos pensamentos autodestrutivos. Inclusive, em especial, por lutos recentes e muito caros, principalmente quando os que os cercam não compreendem e tampouco respeitam esses lutos. As pessoas não compreendem que no vale profundo de um luto, a última coisa que uma pessoa precisa é ter sua dor reduzida a um capricho; ainda que seja, é a única coisa que não deve ser feita. O luto de um depressivo, aliás, pode ser a única coisa que o mantém do lado de cá da vida, porque ao lamentar e velar intimamente sua perda, estará se apegando ao fio da lembrança da vida que se foi. Ainda que esteja no passado, aquilo É uma vida e é nisso que o jovem se apoia para manter-se na sua própria. Se não tiver algo de bom ou mesmo um silêncio acolhedor para oferecer, apenas retire-se sem abrir a boca.

        Aos jovens hora em desespero, ávidos por um alívio em seus pesares, ofereço minha experiência e palavras práticas de como lidar com isso. Eu não tenho discursos prolixos e palavras espirituais para este caso, porque sei por experiência que às vezes elas são um tiro pela culatra, e não sou crentelho nem espiritonto para tentar forçar o deprimido a olhar os lírios do campo de Jesus! Aleluia, salve, salve. Me baseio no exemplo prático de Audrey Hepburn e na sabedoria maternal que ela deixou, que no final das contas é um legado maior do que sua gloriosa carreira. Foi no Congo Belga, durante as filmagens de "Nun's Story" que ela vislumbrou seu real papel no mundo, papel que levou até o fim de uma vida que muitos acreditavam que seria mais curta. Não, não farei um texto sobre celebridades, fiquem sossegados.

        Quando alguém se doa a quem REALMENTE precisa, e isso exclui paixões, mesmo que com a imensa dificuldade que eu conheço de ainda estar atado ao luto doloroso, está também tecendo o primeiro fio de salvação que o manterá vivo, simplesmente porque agora há um motivo mais do que razoável para isso. Ainda que repita a si "Eu sei que depois desta ajuda eu não vou resistir em matar", o acto de se doar torna a pessoa mais receptiva a doar-se novamente, e com isso torna também mais apta a enxergar assuntos e pessoas que realmente precisam de sua atenção. É como artes marciais, que torna o corpo e a mente mais aptos e desejosos de ir além, quanto mais se pratica, até o ponto em que todos os movimentos são feitos naturalmente e o aprimoramento se torna cada vez mais rápido e consistente.

        Não é preciso ter recursos financeiros para se doar, na verdade sequer é preciso ter coisas a doar. Na maioria das vezes, tudo de que uma pessoa precisa é sentir que alguém sabe que ela existe, e nem sempre é um pedinte maltrapilho que precisa disso. Às vezes, sob o tailleur bem cortado, sob o penteado bem feito, sobre os sapatos de fino design, está a criatura de espírito mais desgastado e desesperançado do mundo. Sim, os mais pobres precisam de nossa ajuda, e quase sempre na forma de pão; demo-los e saciemo-los. Entretanto, umas moedas dadas com um olhar sereno e bondoso, já que estamos na era dos mascarados compulsórios, dá ao cidadão negligenciado mais fibras para se apegar à vida do que aquela nota de vinte que fora simplesmente jogada a ele; muitas vezes a diferença entre comprar o que comer e gastar tudo numa garrafa de destilado. E dando de bom coração as poucas moedas que pode dar, sentindo-se mais necessário e mais necessidade de fazer mais, mais alguns fios são tecidos no seu apego à vida, não simplesmente à sobrevivência.

        Não estou copiando isso de um livro de auto estorvo, falo de minha experiência e do cabedal recebido de pessoas que me fazem parecer um tolo egoísta. E vejam só, graças a esse hábito de doação eu já excedi a cota de textos que esperava escrever durante o ano todo. Mas vamos voltar à rica dama de espírito mendicante, porque às vezes é para receber atenção que elas despendem grandes vultos em salões de beleza. Não, não é crime e NÃO é errado gastar com estética, o problema vem quando a aparência é um contrapeso ao vácuo interior. Infelizmente as pessoas AINDA acreditam que ter recursos materiais imuniza contra a depressão, mas eles podem ser um tiro pela culatra, bem na testa, directo à pineal. Se aquela dama perceber que pode mudar a vida de outrem, a estética será um adereço e não uma psicotrópico, mas ela não perceberá isso enquanto for elogiada por sua beleza e seus recursos. Quando o elogio for por sua postura e por sua companhia agradável, ainda que esta se dê em princípio por protocolo social, algo começará a mudar, e o autor terá tecido mais uma fibra em seu benefício próprio.

        Compreendam que dar o primeiro passo não é fácil, não é simples e NÃO É INDOLOR! Mas precisa ser dado. A dor vem da condição cristalizada de luto misturado com auto piedade, que cedo ou tarde trava a vontade de viver de modo praticamente irreversível. No começo tudo parecerá ser em vão, suas modestas contribuições parecerão ser inúteis e seus esforços, por mais que tente, infrutíferos. Mas é só impressão. A sua condição de deprimido, e digo isso de dentro de uma condição de depressão extrema praticamente ininterrupta, te deixará imenso em uma ansiedade que fará cada segundo parecer um ano, cada grama parecer uma tonelada e cada indivíduo parecer uma multidão. É como se um liliputiano enfrentasse Godzila, mas é tudo mera impressão, um subterfúgio da depressão para sabotar sua recuperação. Não é inimigo pior, porque não se pode simplesmente afastar-se dela, às vezes nem se pode curar, porque pode ser a depressão justo o que te mantém de pé. Mas em vez de ir para o abismo, a decisão de se doar te leva para o lado oposto, e a depressão torna-se sua aliada. De tristeza crônica, que de vez em quando ainda fará estragos, tornar-se-á um facilitador para introspecção e meditação.

        Eu sei, tudo seria menos penoso se a família NÃO ATRAPALHASSE, mas ela atrapalha e nem sempre há como deixá-la, até porque às vezes é ela quem mais precisa de sua doação, e a covardia não faz parte dos procedimentos de um depressivo reverso. O que aconselho nesse caso é criar seu canto e seu momento de depressão. Exponha sua carranca, mostre seu mau humor, não censure seus resmungos, que embora sejam socialmente desagradáveis até para nós mesmos, são o mal menor com o qual conseguimos lidar melhor. Afinal, precisamos estar fortes e centrados para a missão a que nos propusemos, e nunca se sabe quando alguém precisará de nossa humilde ajuda. Se posso dar um conselho, e já paguei caro por ele, é abster-se de "causas" que apregoam o coletivo e desprezam o indivíduo, porque grupos assim são grandes impulsionadores de suicídios. Fazer a pessoa acreditar que sem "a causa" ela não é nada, cedo ou tarde a fará ver que nada construiu, acreditar que realmente não é nada e que a alternativa ao grupo (político, ideológico ou religioso) é a morte. E novamente, se a família não atrapalhasse tanto a maioria dos casos, ninguém cairia na conversa desses grupos, que virtualmente não existiriam. Grupos que formam coletivos para amparar cada indivíduo, esses sim merecem sua atenção e eventualmente sua adesão.

        Com o tempo, a perseverança e a prática, a dor do luto se transforma em empatia pela dor do outro, que já não é então "o outro", é o seu irmão; mesmo que às vezes se tenha vontade de torcer-lhe o pescoço, é absolutamente natural. A cada eclosão de sua dor virá a lembrança de que outros também penam suas dores, e que um simples emoticon na caixa de mensagens pode ser suficiente para essa dor ser suportada. Não espere por gratidão, espere por correspondência. Se a pessoa for minimamente rude ou arrogante, lamento, mas não estará pronta para ser ajudada. Toda semente que jogar naquele solo, morrerá seca. Concentre-se em quem, se não dá respostas privadas, pelo menos te trata com respeito em conversas públicas. Parece pouco, mas às vezes é tudo o que se faz necessário. Assim, quando maior for a sua dor, maior será o empuxo para doar seu tempo, suas palavras, talvez algum recurso material. Aquela conversa de que "se alguém não começar, nunca será terminado" é a mais pura verdade, um chapéu com poucas moedas chama mais atenção do que um vazio. Assim como uma pessoa que recebeu uma ínfima dose de ânimo, chama mais atenção e está mais pronta a ser auxiliada do que quem já tiver perdido toda a vontade de viver.

        Repito que tudo isso é cabedal próprio, de quase meio século expiando neste mundo rude e cínico. Não sei se há compêndios acadêmicos dedicados a isso, sei que funciona. Funciona a ponto de eu já ter testemunhado um traficante se regenerar. E o que eu sou? Um velho funcionário público ferrado e sem ter onde cair morto... se bem que... depois de morto, que me importa o que vai acontecer com o corpo? Às favas! O facto é que eu era um nada ainda menor do que sou hoje, mesmo assim ajudei uma comunidade a bancar a pedra filosofal. E fiz isso dedicando minutos do meu tempo a uma carinha triste, um suspiro de descrença, um bombom barato dado de surpresa, um aperto de mão em um trabalhador braçal que não teve tempo de voltar pra casa, coisas simples. Com isso se teceu uma teia cujos fios evitaram que aquele indivíduo caísse em definitivo no abismo. Sim, às vezes precisei ser duro, casca-grossa, mas tudo dentro dos limites do necessário, sem exceder um grau sequer.

        Isso se incorporará aos seus gestuários, como se incorporou ao meu. E sempre que vejo uma criança necessitando de ajuda, vem à minha mente "É obrigação do mundo ajudar crianças em dificuldades, todo resto é luxo", frase dita e levada a termo, até o último suspiro de vida, pelo Anjo das Crianças Audrey Hepburn, que se esmerando em curar a dor do próximo, viu suas próprias e profundas feridas se cicatrizarem com o passar dos anos. Eu atesto, porque como vocês eu tenho as minhas, e elas já estariam infeccionadas se eu tivesse escolhido o caminho oposto, de me fechar em meus lutos e igorar os do próximo. Ainda que ciente de que eu sou pequeno, feio e sem perspectivas sólidas, sei que absolutamente nada disso me impede de dar a alguém o bálsamo de que disponho. Não salvarei o mundo, isso é uma ambição louca que somente os aloprados que se levam à sério têm. Eu foco em fazer o que precisa ser feito, no momento em que precisa ser feito, dando meu melhor o tempo todo, até que o que eu puder ter feito, feito estiver.

        Parece árduo? Não é tanto quanto parece, não é um paredão a ser escalado sem cordas e picaretas, é uma escada. Uma escada que aparentemente não tem fim, com sua estrutura varando as nuvens, mas é uma escada, com degraus que podem ser alçados um de cada vez, no seu tempo, no seu ritmo, com as pausas que necessitar para se refazer, mas sempre com a firme decisão de avançar e aliviar a dor do seu irmão. E de dor, amados, eu sei bem que vocês entendem como ninguém. Vocês sabem reconhecer e sabem que, às vezes, apenas dizer "obrigado, bom dia" por ter-se lhe dado passagem, mesmo que não tenha realmente dado passagem, que tenha sido pego de surpresa pela sua necessidade de passar, pode ser o suficiente para que aquela pessoa adie por ais um dia, apenas mais um dia os planos de dar cabo de si, e um dia a mais pode ser o prazo que a providência necessária seja tomada. E um gesto como esse terá sido toda a providência de que vocês necessitam para viver mais um dia e, como Audrey, protelar os maus prognósticos por muitos anos.

23/07/2020

Uma Tóquio charmosa

Cena tirada do vídeo no fim do texto.

        Eu raramente vejo um vídeo com mais de dez minutos, se não for dos meus canais já assinados, e mesmo neles eu hesito de vez em quando. Não se trata de preguiça, embora às vezes eu mesmo me pergunte se não é, mas de cansaço. Não apenas físico, que consome a glicose que deveria ser todinha do meu cérebro lesado, mas também mental, porque o dia actualmente parece ter menos de dez horas, e eu precisaria ao menos de dezoito horas de sono por noite para me refazer.

        Não bastasse isso, a ladainha incessante da imprensa me faz querer enfiar a cabeça no liquidificador... enfim, estou um caco. Na maioria das vezes eu procuro coisas bonitas para ver, mas aliar beleza com bom gosto tem sido uma tarefa ingrata. Costumo ver a descontração do canal Dancing Bacons, de um casal japonês muito fofo que viaja pelo oriente para comer... é, para comer. Experimentar comidas prontas, semi-prontas, feitas na hora, de rua, de restaurantes, de máquinas automáticas de venda... É comida? Estão dentro... e passam para dentro. Deste canal eu acabei descobrindo mais gente que usa o Youtube mostrar ao mundo um mundo que vale à pena ver. Os vídeos não são muito longos, mas um ou outro passa de meia hora, o que é raro.

        Eis que hoje, em um momento de esgotamento e desinteresse pré-depressivo, vejo na lista um vídeo com mais de UMA HORA de duração. olhei para aquilo, pensei "No!!!!!", respirei fundo, olhei de novo, pensei "Jura que querem que eu veja isso?", dei uma olhada no título despretensioso, pensei cá com meus botões (eu uso camisa de abotoar) que nada tinha conseguido prender mina atenção, e que minha capacidade cognitiva já estava um pouco comprometida, então não adiantaria eu procurar vídeos com temas profundos, densos e enigmáticos. Cliquei para ver até onde eu agüentaria e me surpreendi com um vídeo SEM EDIÇÕES, que me fez descansar o espírito, entre uma emergência e outra, por mais de uma hora.

        Não é nada mais do que um cidadão japonês andando por todo esse tempo por ruas de uma Tóquio que pouca gente conhece. O passeio une o moderno ao tradicional, o que quase todo mundo já sabe da capital japonesa, mas ele entra por vielas e becos estreitos que as câmeras internacionais simplesmente não mostram. Ele revela uma cidade charmosa e encantadora, surpreendendo ao permitir que ouçamos risos espontâneos dos concidadãos, inclusive mostrando acidentalmente duas moças rindo soltamente diante de uma lanchonete com uma máquina de venda automática na porta.

        O passeio vai do início de fim de tarde até o anoitecer, permitindo ao espectador paciente conhecer uma cidade arborizada e repleta de lugares que fazem qualquer um ter motivos para, algum dia, visitar e conhecer não só o lugar, mas também os actores daqueles cenários que às vezes chegam a ser bucólicos. Acredito que mesmo os leitores habituais de mangás vão se surpreender e se encantar com este vídeo do canal Rambalac. Sem mais delongas ou spoilers, vamos ao vídeo. Quem tiver banda larga e estável suficiente, vá ao link e escolha um formato mais pesado e refinado, ao demais podem ver o que eu compartilhei aqui. Bom passeio.


22/07/2020

Pandenóia

Arte de Banksy, exceto a máscara, Inglaterra


            Eu limpo e esterilizo a sala logo na primeira hora em que chego, e sou sempre o primeiro a chegar. Depois vem alguém e passa álcool novamente, mesmo eu já tendo alertado que o fizera, mas a pessoa retruca “Antes pecar pelo excesso do que pela falta”. Dez minutos depois a mesma criatura refaz o procedimento na mesa inteira, mesmo que não tenha utilizado o aparelho, e assim vai durante todo o expediente. E cada vez que o telephone é utilizado, mais uma camada de álcool é passada, felizmente as janelas daqui são relativamente grandes e estão sempre abertas. Mais do que esse comportamento obsessivo, que já vai às raias da higiopatia, chama a atenção o facto de todos os outros acharei isso normal; ou “novo normal, como reza a nova idiotice do vocábulo midiático repetido à exaustão pelos paranoicos passivos. Há muitos anos que as vendas por internet crescem vertiginosamente, em alguns setores já superaram as lojas físicas correspondentes, em especial no mercado editorial. É incomparavelmente mais barato e o alcance é inimaginavelmente maior, isso já acontecia inclusive nas vendas de automóveis.

            A falta de hábito, ou até desconhecimento de sites especializados em economia e tecnologia corrobora para isso, porque neles os leitores habituais já estavam de sobreaviso para o novo mundo nascente, que agora sai por cesária. Infelizmente os paranoicos não vêem esses canais, na maioria das vezes os rejeitam, porque eles jogam na cara a fragilidade das informações de que se gabam em seus proclames simplistas e decorados por retóricas vultuosas. É na forma que se concentram e com ela que se deslumbram, o conteúdo geralmente lhes é indigesto. Às vezes, tão somente às vezes e não em todos os casos, dizem que não estão a par para terem opiniões, mas opinam subliminarmente assim mesmo, depois voltam a repetir “Currupaco! Pandemia! AAAAAAAAH!!!” para todo mundo ouvir. Acreditar que tudo isso é novidade dá a sensação de que estão na vanguarda e, de alguma forma, no controle de uma situação totalmente descontrolada, que é a própria vida.

            Em primeiro lugar, todas as mudanças econômicos que estão acontecendo JÁ VINHAM ACONTECENDO desde o início do século, algumas desde os anos 1990. O que essa pandemia fez, como toda crise global, foi acelerar tudo e fazer gente tirar projectos que jaziam em suas gavetas.
            Em segundo lugar, micro-organismos não são gatos de senso comum, eles só morrem uma vez, lavar e esterilizar alguma coisa obsessivamente não torna o ambiente mais saudável, pode até mesmo estragar tanto os utensílios quanto a própria pele do indivíduo, pele que é a primeira barreira contra contaminações.
            Em terceiro, mas não menos importante lugar, o foco monopolizado induz à displicência para com as outras actividades, que não por acaso são os fins de um ambiente de trabalho, às vezes até mesmo o doméstico; como deixar computadores freqüentemente ligados e abertos na senha do funcionário, não raro varando a noite assim, à mercê de espertos e de hackers. Vi agora a pouco um caso desses com a cafeteira nova… que passou a noite ligada… agora estão limpando a bagunça. Imaginem isso no trânsito. Imaginaram? Pois já vi também.

            A voracidade com que devoram notícias repetitivas, que falam a mesma coisa com sotaques diferentes sobre a pandemia, sempre noticiadas como se TODOS os locutores tivessem exactamente o mesmo texto em mãos, não se repete na indignação que deveriam ter com as notícias de abusos das castas do judiciário e do legislativo. Tentar mudar de assunto é quase infrutífero, sempre voltam repetindo a ladainha “A pandemia do covid 19 do novo coronavírus” como se tivessem memorizado um script de filme B, não raro perdem as estribeiras ao menor desvio de tópico, te acusando de negar a crise sanitária e de ser uma ameaça epidemiológica para toda a humanidade, acrescentando “você não é epidemiologista” a cada frase dita com rudeza. Após destilarem sua raiva, voltam a conversar como se nada tivessem feito, ou pior, como se estivessem em seu direito régio de fazê-lo, o que é muito comum. Depois de te irritarem, pedem calma… Dão a entender que querem que essa situação dure para sempre.

            O comportamento se assemelha ao que me acostumei a ver em dependentes químicos, mas ao avesso, porque aqui a pessoa se tranca em uma bolha de realidade pior do que a própria realidade, e não tolera receber uma boa notícia a respeito que não venha acompanhada de um alerta de que todos vamos morrer. Eles simplesmente QUEREM ver notícias ruins, contando infecção por infecção, morte por morte, caçando canais e sites que repitam cada má notícia a respeito; paralelamente minimizam qualquer bom progresso. Ainda em comum, eles defendem os fornecedores de suas drogas com unhas de dentes, como se fossem seus únicos elos com a vida. Essa auto-obsessão já seria suficientemente ruim se estivesse limitada ao indivíduo, mas ele insiste que todos devam agir como peru de natal. Manter a calma não é um problema, se você conseguir NÃO aparentar estar mais calmo do que eles, porque isso pode soar-lhes como inapropriado ou até ofensivo para uma época de emergência sanitária. Não obstante, os profetas apocalípticos oportunistas ganharam mais um tijolo para servir de palanque, para alardearem que a humanidade não presta e que o mundo está se livrando de nós, tudo salpicado de discursos antissistema que saíram de moda nos anos 1970; as grandes extinções, que me conste, não afetaram seres humanos.

            Eu não contesto a necessidade de evitar aglomerações, mas não é exactamente isso que eles têm feito, porque mesmo Róbinson Crusoé corre o risco de multa e detenção. Tirar a máscara por uns minutos para comer ou beber, já pode render cliques convenientes para postagens acusatórias, que só mostram aquele momento de rosto nu, como se fosse um atentado ao pudor. Usam flagrantes desrespeito aos decretos para isso, em seus discursos generalizadores, quando se dão o trabalho de se explicar. Muitos desses pandenoicos já se vêem como autoridades, ou mesmo como reserva moral da humanidade, e eu gostaria muito que isso fosse apenas um exagero ilustrativo, como recurso didático, mas não é. Não usar máscara dentro do carro, mesmo apenas com o motorista, já é risco de autuação. Se deixarmos, tomar banho e dormir sem máscara será crime. Não basta ser doente ou dependente, é preciso que todos ao redor o sejam também.

            O caso mais icônico foi um fiscal de Poços de Caldas ter interrompido uma missa que estava sendo transmitida pela internet, com a igreja vazia, com portas fechadas (ver aqui) violando a própria constituição, que para os cleros tornou-se apenas um detalhe a ser ignorado ou levado ao pé da letra, de acordo com a conveniência de múltiplos pesos e medidas... e o papa pandenoiado simplesmente não tomou conhecimento… ou deu de ombros, que é o mais provável. Reações do público? Praticamente nenhuma, além dos católicos mais tradicionais, cuja indignação não constou nos pasquins de pandenóia. Novamente o comportamento típico de viciados, que minimiza ou mesmo justifica prolixamente os abusos feitos em nome de seu vício. O que deveria ser apenas o monitoramento de uma crise sanitária, com as devidas correções onde realmente se fizesse necessário, tem se tornado um punhado de Estados policiais paralelos espalhados pelo país, não raro Estados paralelos dentro do próprio Estado e financiados pelo erário, como o caso de Poços de Caldas.

            Vocês podem imaginar até onde isso vai, não podem? Vocês, meus poucos leitores habituais, sabem o que acontece quando o oprimido se dá conta de que é mais numeroso, mais forte e que neste caso até financia o aparato opressor… cortar o patrocínio seria a primeira coisa a fazer. O bordão “vá estudar história” deveria servir de lição aos próprios pandenoicos… e principalmente aos parasitas oportunistas.

14/07/2020

A escolha de um transporte


   
Boston, 1920s
         Em primeiro lugar deixo claro que existe um abismo imenso entre os discursos das salinhas fechadas e a realidade, simplesmente porque mesmo o estudo mais bem-intencionado, que a maioria não é, não consegue abranger todas as nuances de um tópico, na verdade a falta de ensaios não permite sequer observar o básico. É, por exemplo, muito simples atravessar o Atlântico em um veleiro altamente equipado, monitorado e cercado de precauções, isso alimenta uma narrativa de ser possível cruzar os mares sem poluição, pois lá estaria a prova cabal de que os aviões e os gigantescos navios cargueiros são dispensáveis. Mas eu digo sempre que ideologia é dogma, e é só nisso que se baseia uma narrativa dessas. Os custos (sim, custos, não existe gratuidade no universo real) seriam astronômicos e as perdas seriam imensas, obrigando a aumentos de produção simplesmente para reposição, fazendo qualquer saco de batatas custar o mesmo que custa um estoque industrial custa hoje. Acreditar nessas conversas é, na melhor das hipóteses, inocência de que pensa ser consciente, mas não passa de gado.

            Comece pensando na tua vida real. Os seus pés são o único meio totalmente natural e ecológico de transporte, todo o resto é conversa para boi dormir. Uma bicicleta demanda extração, processamento a altas temperaturas, manufatura sofisticada e logística muitas vezes complexa para ser entregue ao consumidor. Em muitos casos, mas muitos mesmo, o trajeto e a disponibilidade de tempo, fora as intempéries, podem contraindicar o uso de um veículo aberto, especialmente não motorizado. Então procure ajuda psicológica para qualquer indício de culpa a esse respeito, ela só serve para alimentar o ego de pseudointelectuais que se levam a sério demais. Há cálculos para estimar se determinado meio de transporte é o mais adequado ao seu caso, e capacidade de proteção do veículo é um dos componentes; pedalar de madrugada, sob frio ou chuva, em lugares ermos, por longas distâncias e com hora certa para chegar, não deveria estar em seus planos.

            Outra dificuldade está na falta de infraestrutura do transporte público. Goiânia espera há mais de trinta anos pela linha de metrô pela qual pagou, e a linha de trem, que cortava a cidade de leste a oeste e poderia ajudar a atenuar o problema, não existe há uns quarenta anos. Esse drama seguramente se repete em muitas cidades médias e grandes pelo país, não só em metrópoles. Não adianta protestar contra tudo isso que aí está gritando “Quero melhorias com tudo de graça” porque nem pagando caro o Estado tem feito o que deve, sequer o básico. Lembro ainda que nem todas as cidades subsidiam o transporte público, provavelmente a maioria não o faz. Assim a arrecadação não tem planejamento para esse tipo de gasto e nem terá, porque todo o orçamento já está comprometido mesmo antes de ser votado pelas câmaras de vereadores, estas que consomem em supérfluos boa parte do erário; ou seja, podem esquecer, mesmo que os prefeitos quisessem um auxílio para as tarifas, e não me refiro aos gastos com “gratuidades” não viria tão cedo. Simplesmente se recusar a adaptar-se para “obrigar o estado a fazer sua parte”? Jura?? Teu esqueleto será encontrado por arqueólogos na mesma posição. Então temos um gargalo que reduz as escolhas reais de transporte.

            Some-se a isso o fator capilaridade, que o itinerário rígido das linhas de ônibus precisam ter para contenção de gastos, manutenção da segurança e padronização dos serviços, em trajetos e horários, precisa ter. Isso pode obrigar o usuário a caminhar por alguns quilômetros, ou mesmo pegar várias linhas de ônibus para chegar ao seu destino; é por isso que em algumas cidades o cidadão passa literalmente horas no trajeto, no anda-pára-anda quase sempre repleto de curvas e trechos retrógrados, casa-trabalho e trabalho-casa. O tempo para percorrer de dez a quinze quilômetros pode ser maior do que o necessário para ir de Goiânia a Brasília em velocidade moderada. É essa falta de capilaridade que mais faz o usuário tirar seu veículo da garagem. Às vezes, senão quase sempre, esperar meia hora ou mais pelo próximo ônibus não é uma opção. Às vezes, como em caso de enfermidade, o transporte público pode simplesmente não ser uma opção. Apelos pró climáticos e preservacionistas ficam em segundo plano quando a vida e o bem-estar estão em xeque. Apontar o dedo e tentar incutir culpa, só piora tudo.

            Não que o uso do veículo particular não deva ser, mas utilizar o transporte público demanda um planejamento a que nossa população não está acostumada a fazer, e que as circunstâncias habitualmente sabotam; tal qual é com as finanças domésticas. Apesar de em tese os ônibus e trens, estes onde os há, tenham horários fixos, estão sujeitos a incidentes e acidentes de percurso, eles podem se atrasar significativamente a comprometer seu compromisso. Mesmo que haja um ponto de ônibus ou estação de metrô bem em frente à sua residência, no mesmo lado da rua até, o transporte não estará lá te esperando para quando precisar dele. Mesmo nos países onde esses serviços funcionam bem.

            Por partes:

    O transporte público pode e deve ser utilizado. Na maioria dos casos de uso INDIVIDUAL, ele é suficiente. Onde há metrô e trem urbano existe uma vantagem que seus usuários nem imaginam o quanto faz falta, e os que não têm nem imaginam o quanto ajuda. Apesar das desvantagens de demora e desconforto geral, os ônibus têm mais capilaridade e uma flexibilidade que os trilhos não permitem, o motorista pode simplesmente pegar um desvio se perceber algum problema, ou for informado com a devida antecedência de um congestionamento; ao menos DEVERIA ser informado. Mesmo os alardeados “BRT’s” sofrem com isso porque, apesar do corredor dedicado, cedo ou tarde eles também passarão por um cruzamento, então a vantagem desaparece. Saber que pode ser necessário pegar mais de uma condução é o ônus, o que pode gerar gastos de tempo e dinheiro que podem pesar no fim do mês, fora o problema da violência crônica em que estamos imersos. Então o uso recreativo deve ser muito bem planejado e, claro, não pode ser freqüente.

    A bicicleta é o meio mais vulnerável de transporte que existe. Skate e patins são muito compactos e praticamente não atrapalham, se precisar pular em uma emergência, já a bicicleta te obriga a ficar em uma posição muito passiva em acidentes e assaltos, tentar simplesmente pular dela pode ser um tiro pela culatra, sua perna pode se prender no quadro e o eventual ferimento se agrava. Há ciclovias pelo país, mas as cidades que as têm são exceções, e mesmo as que têm não as têm em quantidade e qualidade suficientes. As pessoas já se esqueceram de que bicicletas um dia foram obrigadas a serem emplacadas, como as motos, mas mesmo hoje são obrigadas a utilizar equipamentos de segurança altamente necessários que quase ninguém tem, e às quais as autoridades municipais fazem vistas grossas; como farol, retrovisores e refletores. Evitar pedalar antes da alvorada e depois do crepúsculo é meia apólice de seguro de vida, o que nem todos podem fazer, daí a necessidade desses acessórios obrigatórios de segurança. “Bicicleta eléctrica” é uma mina de ouro, o povo cobra o preço de uma moto pequena por uma bicicletinha que mal roda 30km a baixa velocidade. É mais negócio comprar uma boa bicicleta simples e pedir a um técnico para colocar uma boa bateria e um bom motor de furadeira, que tem peças de reposição em caso de necessidade.

    A motocicleta ainda é a menina dos olhos dos muquiranas. Um veículo que leva duas pessoas e ainda pode fazer até 70km/l em velocidade de cruzeiro, em uma rodovia, com custos ínfimos de manutenção, é tudo o que Tio Patinhas sonha. Mas, não tanto quando a bicicleta, é um veículo muito vulnerável, e mais do que aquela muito visada por criminosos. A economia generalizada combinada a um desempenho invejável no trânsito pesado sustenta suas vendas. As opções são fartas e a maioria dos mecânicos consegue colocar suas mãos na maioria delas. Para mero transporte, os gericos Honda Pop e seus genéricos bastam. Mas as vantagens delas são também seu calcanhar de aquiles, porque mesmo as maiores, mesmo uma Amazonas ou uma Goldwing não se presta para uso familiar; quem casa quer casa, quem parir quer carro.

    O grande vilão dos ecoxaropes, o carro particular mais humilde e rústico só pede uso comedido e responsável para ser sempre o amigo de todas as horas. Temos que ter em mente que um carro é uma máquina altamente complexa, especialmente os mais modernos, e qualquer falha na manutenção pode custar caro, tanto em dinheiro quanto em tempo de espera, no caso dos que têm mecânica importada; são mais do que vocês imaginam. Mas com tudo em dias, até mesmo um Opala seis cilindros pode ser exequível para uma família, ainda ais que esse motor quase não quebra. A desvantagem é a dificuldade em encontrar estacionamento em dias úteis, às vezes até em feriados, especialmente se for uma cidade turística, então vão mais gastos com estacionamentos privados. Um erro que as pessoas cometem muito é comprar um subcompacto, como o Mobi, pensando em economia para a família, se esquecendo que com o caro lotado o motor vai queimar muito mais combustível e todo o conjunto vai sofrer mais e se desgastar mais cedo; carro leve, cada ocupante ou mala faz mais diferença no rendimento. Se a família for de dois adultos e dois adolescentes, já não basta um ovinho de rodas com motor de dentista, é preciso algo mais espaçoso e pesado, com vários cavalos a mais, o consumo final pode ser até mais baixo do que o do pequenininho super básico. Quem sabe realmente dirigir, sabe do que estou falando.

    Não posso deixar de fora os aviões. O novo bode expiatório dos radicais de extrema alienação pseudointelectual tem dado com seus flaps nas caras deles. Transportar gente e insumos médicos a grandes distâncias em pouco tempo, é só com eles mesmo. Os custos operacionais são sua única desvantagem, o que inclui a infraestrutura necessária à operação, como longas pistas para pouso e decolagem, embora alguns poucos modelos possam decolar entre dois semáforos. A urgência e a intransponibilidade de alguns relevos por água e terra são o que os torna indispensáveis. Se tem pressa e a distância é longa, nem tente acelerar teu carro, vá de avião.

            O mais sensato, porém, é que seu planejamento possibilite utilizar mais de um modal e mais de uma modalidade de transporte, especialmente para quem mora longe do destino. Usar seus pés por um ou dois quilômetros se inclui nisso. A disseminação desse hábito desafogaria um pouco o trânsito e baratearia suas opções por vagas, bem como tornaria o transporte público menos lotado. Como ter dois bons veículos ainda é um luxo no Brasil, uma boa opção é deixar o carro próximo ao centro nervoso da cidade e usar o ônibus mais conveniente para o restante, se não for possível carregar uma bicicleta no carro; na moto é quase impossível e dá multa pesada. Da mesma forma, esqueça o veículo muito pequeno se morar sozinho não for o seu caso. Um carro maior consegue levar todo mundo sem muito aperto, o que inclusive desafoga o transporte público, deixando-o para quem realmente não pode arcar com o carro próprio. O Smart não saiu de linha à toa, ele é bom, mas tem utilidade muito limitada.

            Tenha sempre em mente que a sua parcela de realidade pode não ser, e quase sempre não é compatível com a do outro. Pouca gente tem uma garagem com espaço pra uma picape ou um (eeeek!!!) SUV grande, da mesma forma as necessidades de transporte de uma família quase sempre são incompatíveis com o amor de alguns com carrinhos de dois lugares, ou mesmo com a aversão de certas pessoas ao automóvel. O facto de ter funcionado para o SEU caso, não significa que dará certo para outros, e de jeito nenhum o será para todos. Se chegar a alguém que está tentando suprir as próprias necessidades, apontando o dedo e entoando um discurso acusatório, não importa o quão nobre seja (quase nunca é) a sua causa, ela terá ganho um inimigo.