30/04/2022

A pergunta do espelho

Margarita Terekhova em Mirror 1975


             Quem é você? Não estou perguntando pelo seu nome, isso é mais frágil do que pensa, ele pode mudar de acordo com o idioma, até mesmo o sotaque de uma cidade para a outra! De um Estado para o outro seu nome pode perder o "S" e ganhar um "X" na pronúncia de uma pessoa comum, e lá pode ser que ninguém consiga pronunciá-lo como foi registrado, com o tempo alguém de fora que te conheça não saberá de quem eles estarão falando. Seu nome aqui pode ser comum, até bonitinho, mas em alguns lugares pode ser a coisa mais feia para se dizer, não raro até obsceno! Experimente, por exemplo, dizer "Rui" na Rússia, quando pedirem que se apresente, especialmente se houver crianças no ambiente! Vão te levar preso, depois de algumas bordoadas. Sua carteira de identidade é posterior à sua existência, não o contrário, então guarde seu registro geral e pense de novo em minha pergunta.

            Quem é você? Não, sua profissão também não conta. Ela é aquilo que você conseguiu, ou o que alguém conseguiu para você se manter e não depender tanto das pessoas. Digo "tanto" porque até mesmo as pessoas mais independentes dependem de prestações alheias, ainda que seja o simples acto de fazer seu pedido à atendente da loja. Hoje és um motorista, amanhã podes vir a ser o gerente de frota, um dia quem sabe largar tudo e abrir uma lojinha de doces a granel, então não importa! Assim como a identidade, o profissional depende do que você for, não o contrário, isso é apenas uma função para lhe servir de esteio, com muita boa vontade também para evolução moral. Para quem aprende sobre os melindres da vida em sociedade, é muito fácil montar um personagem para cara ambiente e ocasião e pode ser que NENHUM deles sequer represente o que ou quem é você. Nem mesmo nas festas de confraternização da empresa uma pessoa se apresente realmente como é, não se deve levar em conta o estado de embriaguez porque ele á uma caricatura tosca da pessoa, não ela em si.

            Quem é você? Criatura, de todas as coisas da vida, poucas são mais supérfluas e voláteis do que sua imagem social. Seu status nem começou pela sua vontade, lhe foi dado por seus pais assim que deste seus primeiros berros neste mundo. Só depois é que suas ações construíram a armadura de papel que, se fosse efetiva, não precisaria ser defendida, ela te protegeria, mas não é assim que funciona. Pode-se ter uma alta reputação vivendo de rendas modestas, assim como ter todos os bens que se sonha e ninguém ser capaz de não cuspir ao ouvir seu nome; bem como sua figura pode inspirar medo, admiração ou escárnio sem que qualquer uma dessas reações seja a justa. Não, definitivamente seu status não diz quem és, porque os motivos de o ter podem ser totalmente opostos aos que lhe são atribuídos. Seja um plebeu sem eira ou o imperador, essa imagem não vai refletir o que ela guarda.

            Quem é você? Muito menos o que as pessoas pensam a seu respeito. Como já dito, o público só poderá fazer juízo do que lhe for apresentado, e isso é demasiadamente submisso aos interesses do apresentador, cuja imparcialidade não pode ser fiel de balança nenhuma, afinal ele é humano! Mesmo que a tarefa seja dada a uma máquina, ela terá sido construída por um humano, cujo julgamento de sua pessoa vai influenciar pontos nodais de sua apresentação ao público, não importa o quão justo ele tente ser. Conhecer toda a sua história e ter acesso até a pensamentos que lhe são involuntários, é o mínimo que outra pessoa precisaria para fazer um julgamento confiável a seu respeito, e assim ter um pensamento minimamente justo, o que já deve ter percebido ser mera quimera. Quem o preza tenderá a compensar qualquer agravo exagerando algo que considere ser uma virtude sua, e que pode ser uma característica que em seu íntimo considere um defeito, mas parecerá ser uma qualidade aos olhos das pessoas.

            Sei que posso parecer arrogante ou cruel, mas é imperioso que nesta altura da vida você tenha um pouco de noção de quem realmente você é. Não peço que sejas ciente plena e em toda a vastidão, porque isso é tarefa para deuses, não para um reles mortal. Ter essa noção mínima já te imuniza contra uma miríades de mazelas da sociedade, não só a desta época, mas as de qualquer uma no espaço-tempo. Tendo o norte de quem você é, te desvia automaticamente de tentações que te induziriam a escapar da realidade como modo de vida, te arrastando não só para longe das feridas como também de sua cura, te vestindo com máscara sobre máscara até que a quantidade delas seria tão grande, e sua acomodação à fuga tão arraigada, que não conseguiria mais voltar a encarar sua vida como ela se apresenta, quando muito procurarias um culpado para o que deu errado, recorrendo aos inimigos do grupo que ora integrasse para ser o bode expiatório.

            As conseqüências disso eu não precisaria, mas lembrarei brevemente o que suas curtas meditações já explicaram. É como uma ovelha que é criada com cães e acaba acreditando ser uma deles. Enquanto o perigo real não vir, ela até pode ser útil ajudando a guardar a casa, alertar audivelmente a qualquer tentativa de invasão, até mesmo afugentando invasores de baixo calibre, mas ela jamais poderá comer da mesma ração dada aos cães, o que seria um risco quando não houvesse grama fresca, como em tempos de seca, mas o perigo real viria quando com eles precisasse enfrentar invasores realmente perigosos, como os lobos. Lobos respeitam cães, não ovelhas, e eles sabem muito bem diferenciar um do outro, sabem que cães são ameaças, mas ovelhas são refeições, não importa se ela credita ser um leão, vai virar a caça do dia... infelizmente o condicionamento a impelirá a atacar a alcateia, levando seu frágil pescoço directo para os caninos do inimigo. Da mesma forma um cão que pense ser uma ovelha morrerá rapidamente de inanição por comer grama, e fugirá dos lobos que em situações normais seria capaz de enfrentar.

            A única coisa certa do que sabes, é que és aquela pessoa que vem diariamente ao lavabo, dar de cara com um espelho para jamais se olhar nos olhos, centrando-se na higiene matinal e na estética para ser mais agradável do que repulsivo. Eu sei, todas as manhãs tens que ser ágil e prático, do cumprimento de sua rotina depende o sucesso da rotina de mais pessoas, nada há de errado nisso, é louvável sua consideração para com os outros. Entretanto, nos momentos de folga, em vez de fugir da realidade fingindo vê-la em telejornais, seria bom se encarar de vez em quando, por poucos minutos que fossem. Nem precisa vir ao lavabo e dar de frente para o meu painel de prata sob vidro fixo na parede. Desligue o que não for necessário, peça que só te liguem quando for realmente necessário, deixe o ambiente arejado, mas com a luz estritamente necessária, fique em silêncio na posição que achar melhor, por mais ridícula e impublicável que seja, e deixe os pensamentos fruírem. Apenas deixe fluir e não tente mudar de assunto quando um deles te encarar. Vai ser rápido. Com o mundo alheio lá fora, sem poder entrar, em pouco tempo não vou mais precisar repetir a pergunta: Quem é você?