09/04/2014

Estes Anos Setenta


   Ontem mesmo vi no jornal uma charge satirizando o governo. É ridículo, o presidente vai todo ano ao FMI quase que literalmente como a ilustração mostrou, mendigando empréstimos a juros extorsivos. E quem emprestaria dinheiro barato a um país tão instável? A inflação é bem maior do que a divulgada, os chargistas demonstram didaticamente todos os dias em todos os jornais do país! Fazem rir pra não se chorar. Mostram correndo riscos de serem hostilizados, porque corrupto não gosta que seus podres sejam levados à público! O dinheiro vem, mas ninguém sabe onde é aplicado, o governo trata isso como se fosse segredo de Estado, dá status de confidencial a algo que vai sair do meu bolso!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   Eu até me comovo com pedidos de artistas pelos flagelados da África, de verdade, mas todos os dias os jornais mostram o menosprezo do governo federal para com os flagelados do nordeste! Gente, as pessoas estão morrendo de fome e sede, estão sendo literalmente liofolizadas vivas, e aquela região é toda comandada por aliados do Planalto! Em vez de construir aquedutos, contractam caminhões-pipa imundos que se abastecem sabe-se lá em que fontes, a preços altíssimos, e sempre priorizando quem declara votar no prefeito. E as ajudas que o pessoal do sul e sudeste manda? Parece que somem no meio do caminho! Os jornais todos os dias denunciam essa situação calamitosa, mas o governo discursa como se fôssemos país de primeiro mundo! O pior, o revoltante mesmo, é ver nos jornais denúncias nunca investigadas de prefeitos dando esmolas, com o erário, em troca de votos, dando ao povo a entender que sem eles, morrerão todos de fome.

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   O governo mostra escolas de grandes centros como se todas as escolas públicas fossem limpinhas e arrumadinhas! E isso depois de uma demão de tinta vagabunda! De vez em quando os jornais mostram claramente, a verdade é outra! Portas rangendo ou mal fechando, cantinas sujas, falta de merenda, professores mal pagos, desvios de verbas, alunos desinteressados e apadrinhados políticos incompetentes ocupando cargos de responsabilidade! O governo faz de tudo para encobrir, mas está escancarado! O cinismo é tamanho, que o governo coloca suas propagandas mentirosas bem embaixo das notícias de descaso! E ainda tem que defenda!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   O pior é o eleitor votar em canalhas, alegando que “roubam, mas fazem”! Alguns até te agridem se começares a citar as acusações que eles enfrentam, te xingam e gritam que ”O doutor Alamuf é um homem íntegro, não tem uma prova sequer contra ele, é um coitadinho que sofre perseguição de inimigos”. Claro que não tem, ele distribui o que rouba, para calar bocas! Obras que custariam menos de um terço com acabamento muito superior, algumas até desnecessárias, diante de outras tão urgentes! O cara é tão canalha, tão pilantra, que quase ninguém da política aceita aparecer com ele em uma photo. Não é o único, mas é o pior deles! Ele é a prova viva de que esse governo não presta, pois nenhum governo honesto se aliaria a um cafajeste tão extremado, que sorri diante das câmeras negando que a imagem filmada e bem clara seja a sua! Só um presidente filho de quenga se aliaria a ele. Um governo que passa mais de dez anos no poder, sem resolver de modo perene os problemas básicos do país, é um governo de incompetentes ou de corruptos; ou ambos!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   Os jornais todos os dias mostram a escalada da violência! Mostram que a polícia só prende pobre, principalmente se for preto! Os grandões, principalmente se tiver costas quentes, ficam livres! Matam, roubam, até estupram e fica por isso mesmo! Tem falanges criminosas pipocando pelo país e os governadores fingem que não ouvem as reclamações! Não, imagina, está tudo bem, tudo Beg, we live in England! Vamos colocar os pés no chão! Experimente sair à noite com um relógio bom no pulso! O ladrão te segue até o primeiro lugar discreto, te bate e leva o relógio! Quando é preso, vira coitadinho! Ele se debulha em lágrimas pelo filho doente, pela mãe que já matou umas mil vezes, pela esposa grávida e até pelo time que perdeu de virada. E quando o delegado tenta enquadrar! Caramba! O meliante conhece de cor até a constituição dos Estados Unidos! Uma coisa impressionante! O pior, porém, é que o safado sai da cadeia poucos dias depois, para voltar a incomodar os cidadãos que pagam seus altos impostos!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   E por falar em impostos! QUE ROUBO! Se comparado ao governo, o ladrão de relógio realmente é um coitadinho! Nem por isso quero ver o safado nas ruas de novo, mas... Todos os dias os jornais anunciam um imposto novo, taxas novas, tudo provisório com intenção de virar permanente. Não só impostos, mas burocracias novas e absolutamente inúteis, que só servem para dar emprego aos apadrinhados da base aliada. Vejam só, são apenas empregos, trabalho é outra conversa! Depois aparece deputado safado da base aliada perseguindo jornalista que denuncia o desmando! E os cartórios? Ah, essa máfia satânica! São os que mais lucram com essa safadeza toda! O dono do pardieiro fica lá, na sua cadeira, vendo o pobre cidadão de bem que é mal atendido, simplesmente porque não tem escolha, ele é obrigado a pagar para ser maltratado. Um governo que não acaba com isso é uma fraude!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   Vocês já viram a quantidade de obras inacabadas que há pelo país? São muitas! É dinheiro público jogado fora, para enriquecer financiadores de campanhas que fazem isso pelo prazer de saírem impunes. Não é só dinheiro, que é muito, é também pelo prazer de poder humilhar a população e tudo ficar por isso mesmo! Humilhação porque dói no coração de um pai de família, vendo os filhos passando necessidades enquanto uma obra faraônica fica inacabada. São pontes construídas só no meio, escolas que mal saem do alicerce, estradas que deveriam ter quatro pistas e só acomodam um Fusquinha de cada vez, enfim, a lista é interminável. Até hoje estamos sentados na infraestrutura que ganhamos de presente no pós-guerra! Só que ela não vai durar para sempre, nem ela nem os recursos que trouxeram! Aeroportos são poucos pelo país, e quase todos entre Minas Gerais e Rio Grande do Sul, praticamente só com Rio e São Paulo capazes de receber as aeronaves gigantes que já cruzam os céus de outros países. E ainda tem gente sonhando com copa do mundo no Brasil!

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   Quem nunca passou na porta do INAMPS, até acredita na conversa fiada do governo. As pessoas estão morrendo nas malditas filas! Tem médico de sobra querendo trabalhar, mas o governo só emprega quem não está nem aí, quem só bate o ponto e vai embora; às vezes nem isso. As autoridades abafam, mas tem gente morrendo nas filas! Onde já se viu, esperar dois meses por uma consulta com o ginecologista? A menstruação não espera dois meses, ela não espera nem um mês direito! Se houver algum problema grave, a mulher morre sem ser atendida! E o desconto vem todos os meses, os impostos pagam todos os dias, mas vai falar isso, vai! Alguém lá dentro grita que o meu IPTU não paga coisa nenhuma, que eu sou burro e não sei o que pago, que vai me processar, mandar me prender...

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente.

   A censura diz que não tem perseguição, mas tem sim! Já não é raro saber de jornalistas que foram agredidos, presos ou até mortos porque contrariaram algum figurão. Eles inventam desculpas na hora, não raro acusando de subversão, na falta de uma acusação realmente grave. Os governistas, é claro, colocam a culpa na vítima, que estava no lugar errado e na hora errada, ou ainda dizendo que era um vagabundo golpista sem nem terem conhecido o cidadão. É a tática de gritar mais alto para intimidar e parecer que o outro é que procurou a morte. Um país onde jornalistas são atacados por causa de suas opiniões, é uma ditadura, não importa que eufemismo inventem. Se alguém se sente ofendido, o que faz? Manda censurar, mas não dizendo que é censura, inventa um retórica qualquer para fazer parecer que não é. Ir à justiça? Não, nem pensar! Há o risco de ser dada razão ao réu. Às vezes há a certeza de que o réu terá razão, porque geralmente o jornalista só diz que está revoltado com o que aconteceu e que o governo não honra a posição que ocupa. Em países civilizados, as leis valem para todos, não se inventam leis específicas para fazer parecer que não é perseguição e que não há crime de opinião, muito menos para safar a cara de protegidos. Mas se ser processado por expor seu ponto de vista, às vezes até ser perseguido por correligionários do reclamante, não for coisa de ditaduras, o dicionário perdeu sua utilidade.

   O povo tem esperanças de que no século XXI estará tudo diferente. Afinal será diferente, não será? Se não nos primeiros anos, quem sabe no raiar da primeira década estaremos no primeiro mundo, já seremos uma democracia plena... Não seremos? Quem quer trabalhar terá pleno apoio do Estado, as obras públicas serão de boa qualidade e concluídas no prazo, a saúde pública fará jus aos impostos que recebe, as escolas serão verdadeiros templos de sabedoria, os políticos de hoje sequer terão direitos eletivos, a burocracia será reduzida ao mínimo necessário e o norte do país receberá investimentos para se equiparar ao sul. O povo tem esperanças de que será assim. Pelo amor de Deus, seja!

   Mas não é. Infelizmente não é.

04/04/2014

Memórias de uma gente


    Foi uma despedida melancólica. Em alguns havia a esperança de finalmente poder dormir em paz, pelo menos à noite, sem trânsito pesado e carros tocando porcaria no último volume. Para outros a tristeza estava estampada na cara, por terem que deixar um bairro onde décadas de suas vidas aconteceram de forma até bucólica. Em todos a frustração de ver um bairro aconchegante se tornar hostil em poucos anos.

    Chegaram mesmo a acreditar que poderiam e seria bom viverem o resto de suas vidas por lá. Que talvez até pudessem ver mais uma ou duas gerações crescerem naquelas ruas. Só o que queriam era fixar raízes e ter uma tradição para repassar. Não deu. O prefeito fez misérias com aquele bairro, apoiado na omissão de seus correligionários, que aos anteriores apontavam seus dedos e exigiam cassação por muito menos.

    Quando chegaram lá, estavam cercados de vizinhos por todos os lados. Era um bairro bucólico, com movimentação grande apenas na avenida principal, negócios pequenos predominando nas outras ruas, quase totalmente tomadas por residências.

    Era possível atravessar até a avenida principal, com o devido cuidado, sem riscos sérios de atropelamento. Isso não era saudosismo cego, eles atravessaram todas aquelas avenidas e ruas, nos tempos em que o bairro era dirigido aos seus habitantes. Sacoleiros vinham de fora para se abastecer nos atacadistas, mas estes eram apenas um dos muitos tipos de comércio local.

    Mesmo quem conhecia poucos vizinhos, conhecia muita gente. Conhecia e freqüentava suas casas, quando havia casas. Mesmo os vizinhos mais socialmente distantes, de vez em quando davam as caras e conversavam com os outros, todo mundo sentado em cadeiras à porta de casa, à noite. Ainda se podia ficar na calçada à noite, com o portão escancarado. Não faz tanto tempo.

    Ir até os extremos do bairro, mesmo alto da noite, para comprar alguma coisa, era relativamente seguro. Faz pouco tempo, eles ainda se lembram da época. Longe de ser abastada e dourada, era uma época de residência viável, quando não se precisava dizer que morava entre a zona e a boca de fumo.

    Havendo população, havia demanda, também assim havia um comércio de secos e molhados para suprir essa demanda. Era muito fácil sair de casa e encopntrar rapidamente onde comprar um pacote de bolachas, um saquinho de biscoitos ou mesmo suprimentos para um jantar de emergência, sem precisar atravessar a avenida principal; mas especialmente, sem precisar sair do bairro, ele supria todas as necessidades de seus moradores.

    Mesmo sem jamais ter sido prestigiado pela prefeitura, era um lugar agradável para se viver. As linhas de ônibus, por exemplo, eram das melhores, mesmo não sendo um bairro nobre. Eram muitas linhas, que raramente lotavam. Como o trânsito tinha viés para civilidade, os ônibus iram rapidamente de um extremo ao outro da avenida principal. Compensava mesmo deixar o carro em casa, se fosse sair sozinho.

    Não foi de uma vez. A deterioração começou devagar, com a prefeitura permitindo obras grandes onde não deveriam ser construídas, obstruindo o trabalho da secretaria de meio ambiente, permitindo carros de som que eram proibidos no bairro, enfim. Em poucos anos a vida começou a ficar difícil, o bairro sendo jogado aos cuidados do acaso e os marginais se aproveitando disso.

    A ausência do Estado é pior do que a miséria, ela fabrica miséria e fomenta a violência. Foi assim que o pior prefeito da história tornou aquele bairro quase inabitável. Com o acúmulo de ações meramente burocráticas e desdém, tudo o que ele tinha de bom ficou na memória. Tudo o que ele poderia oferecer aos moradores, se foi com eles para outros bairros.

    Sem pequenos comércios, com obras grandes entulhando as calçadas, com caminhões gigantescos atrapalhando o trânsito, com marginais passando com o som automotivo no último volume a todo momento, com o horário do rush se estendendo por horas antes e após o que era habitual, com a infraestrutura recebendo maquiagens vagabundas para disfarçar a deterioração, com o asfalto desaparecendo, com o serviço de ônibus se tornando um dos piores do país, com o bairro sendo destinado a sacoleiros que não têm compromisso algum com a cidade... Não dava mais.

    Eles colocaram o que lhes restava no caminhão e foram embora, esperando que o mesmo não aconteça com o outro bairro.