24/03/2021

Dos bastidores tão distantes

 


            Enquanto a maioria se contenta em assistir ao espetáculo, alguns se perguntam o que teria acontecido ou ainda estaria acontecendo detrás do cenário, aquele fundo geralmente pintado ou encoberto por uma espessa cortina que separa os actores dos trabalhadores de suporte. Esse lugar oculto aos olhos do público chamamos de bastidores. Em princípio eles não teriam importância, e para o fim a que se destina a compra do ingresso, realmente raramente tem, a maioria das pessoas tem uma idéia básica do que acontece lá e crê que isso não afeta suas vidas; quando o teatro em questão é realmente só um teatro cenográfico, geralmente não mesmo… mas às vezes o teatro é a metáfora da realidade que se desenrola em nosso cotidiano, então as actividades dos bastidores importam sim ao cidadão comum, que como no espetáculo, nem sempre se importa com o que seus olhos não podem ver. À amiúde, esse cidadão acredita que os funcionários desses bastidores devem simplesmente fazer seu serviço e quer que esteja pronto quando precisar dele, mas nem sempre é assim e nem sempre esse “pronto” é o pronto que gostaria que fosse, ou deveria ser.

 

            Comecemos pelo conceito errôneo que temos de “bastidores”, que para a maioria se aplica àquele espaço oculto ao público já citado. É oculto, mas não inacessível. Na realidade tampouco são os bastidores da peça. Podem ser considerados os bastidores da ação em andamento, até certo ponto, com influências de precedentes sem os quais o suporte a essa ação não teria sido possível. Começando pelo prédio, ou seja lá qual for o espaço do teatro, existe um comando para que todos os detalhes aconteçam a contento, ou para que dêem o menos errado possível. Esse comando geralmente inacessível ao grande público precisa de um lugar privativo e com o mínimo de interrupções possível, para poder planejar o espetáculo e resolver os problemas que sempre aparecem, tudo em tempo hábil e de modo suficientemente bom. Inclusive o planejamento dos bastidores da ação, que então já não merecem ser “os bastidores”, eu chamaria aquele lugar de “conta-palco”, já que mesmo o que acontece lá é tão efêmero quanto o espetáculo ao qual dá suporte. Entretanto ainda não temos os reais bastidores da peça, porque aquela pessoa com as decisões em suas mãos não fará tudo sozinha… quase nada, na verdade, nem mesmo a totalidade das decisões imediatas cabem a essa pessoa.

 

            Sairemos do prédio do teatro. Aqui chegamos aos personagens menos considerados pela grande massa que paga pelos ingressos, e que por ser o sustento do teatro, mesmo alienada, merece o devido respeito. Primeiro a peça precisará de corpos que se emprestem às personagens, então pode ser necessário que agências de artistas entrem no jogo, ou, pelo menos, olheiros que indiquem as pessoas certas. Por mais profissionais e racionais que sejam, estamos falando de seres humanos, e mesmo inteligências artificiais precisariam aprender conosco a fazer o serviço, então será preciso negociar e talvez os artistas desejados não estejam todos no elenco. Se isso às vezes é uma janela para a exibição de novos talentos, é um contratempo que pode comprometer a execução do espetáculo justamente porque estamos falando de seres humanos, ou de softwares que agem dentro de parâmetros criados por humanos. Se vocês não conhecem o show business, não sabem os problemas que artistas veteranos podem dar a novatos que demonstrem algum talento consistente. É hora de conversar e tomas as decisões menos ruins para o andamento dos trabalhos. Uma vez postos os pingos nos is, vamos viabilizar a realização do espetáculo, enquanto os actores estudam seus papéis.

 

            Chegou a hora de deixar o amor pela arte um pouco de lado, porque é das raízes feias e sujas que tiramos as mais belas e suculentas maçãs. Precisaremos de patrocínio. Pode ser uma tarefa mais ou menos árdua, dependendo da credibilidade e da popularidade dos productores do espetáculo, SEMPRE NESTA ORDEM porque ninguém dará um centavo a um sujeito popular com fama de arruinar tudo. Seja como for, é sempre uma tarefa árdua que demanda tempo, paciência e muita diplomacia. Por exemplo, os patrocinadores almejados podem simplesmente não ter interesse em vincular suas marcas àquela peça em questão, por melhor que seja a argumentação do negociador, em alguns casos o empresário pode até temer que aquele roteiro arranhe a imagem pública que ele levou anos, talvez décadas para construir. Também complica se o cacife dos produtores não lehs der acesso a grandes patrocinadores, o que os obriga a gastar mais tempo, combustível e sola de sapato para viabilizar tudo. E aqui estamos falando de um empresário, que pode ser demovido por números, resultados, garantias e ofertas de bons espaços publicitários, as coisas complicam e muito quando os únicos patrocinadores a que se tem acesso, em princípio, não teriam ou não almejam retorno financeiro, porque aqui a subjectividade canta de galo.

 

            Uma igreja pode simplesmente vetar tudo assim que seus titulares virem o título, como aconteceu no clássico do cinema trash “Plano X do Espaço Sideral”, que originalmente seria algo como “Plano Satânico do Espaço Sideral”. Fora que cenas mais quentes foram sumariamente suprimidas. Mas não sejamos injustos com os religiosos, a maioria não age com tamanha tacanhez, só faz exigências pontuais e pedidos a membros da paróquia ou congregação. Só isso… mas mesmo “só isso” pode desagradas deveras tanto o elenco quanto outros patrocinadores, então meus amigos, vai mais sapato, mais combustível e mais tempo, o que pode comprometer o cronograma e aumentar os custos da empreitada. E por falar nesses outros patrocinadores, há os que simplesmente não aceitam participar do mesmo projecto que determinados outros, especialmente se forem empresas concorrentes ou, pior, se forem pessoas inimigas… e ninguém vem com “eu odeio aquele fulano” tatuado na testa, então é um risco real e iminente… e uma tentativa de conciliação pode resultar na perda de ambos.

 

            Não fica mais simples quando o patrocinador é o erário. Mesmo que o contribuinte raramente ou nunca possa definir onde o dinheiro resultante de seu árduo trabalho será aplicado, fica a cargo de um funcionário público interpretar as regras quase sempre prolixas e mal escritas, repletas de vícios de linguagem que permitem fazer do lobo mau uma vítima da sedução da maldosa Chapeuzinho Vermelho. O patrocínio pode nunca sair e, dependendo das regras, o produtor é obrigado a não buscar patrocínio privado até todo o processo ser concluído, o que pode levar meses, anos talvez, e sua conclusão pode simplesmente não ser comunicada. O interessado então precisa fazer o trabalho que meus colegas de serviço público são pagos para fazer, mas não sofrem nenhuma represália se o serviço não feito não afetar seus chefes. Infelizmente a liberação ou não é mais independente das regras propostas pelos idealizadores da lei do que vocês imaginam, pelos motivos já citados neste parágrafo. Mais uma coisa, se um político influente dentro da repartição não for com a sua cara ou com o seu projecto… já sabe… É como se houvesse, e há, bastidores paralelos a todas essas camadas de que estou falando, eles mesmo com suas próprias camadas obscuras.

 

            Espero ter até agora dado uma idéia clara do que quero dizer. Temos uma camada de bastidor que vai além das paredes do teatro, então seriam três camadas de bastidores, se fose simples assim. Tanto com empresas quanto com entidades sem fins lucrativos e o serviço público, isso é como uma cebola que sempre tem várias camadas, e cebolas podem ser enormes! Tanto maiores quanto mais antigas e bem nutridas forem antes da colheita. O CEO de uma corporação não estará à sua espera no departamento de marketing, no máximo o director de marketing daquela filial vai atender o interessado, após o agendamento devidamente formalizado com a assessoria. Então, durante a entrevista, por mais liberdade que tenha, existe uma cadeia de hierarquia que o director ou a directora de marketing precisa obedecer para não perder seu emprego, eu diria pelo menos mais duas camadas nesta cebola. O que dá, sem contar o contra-palco, uns cinco ou seis bastidores, mesmo no caso de pessoas e entidades sem fins lucrativos.

 

            Agora chegamos ao que pode ser a última camada de bastidores, mas às vezes não é: o autor to texto. Mesmo que haja mais de um autor, um deles vai preponderar, por mais sutil que seja. Por exemplo, simplesmente não dá para adaptar O Guarani de José de Alencar para se passar em um convento de carmelitas descalças com foco na cultura hiphop, por mais boa vontade e talento que o escritor tenha, por mais inspiração divina que receba simplesmente não vai funcionar! Todas as adaptações possíveis respeitarão os personagens, o enredo e o roteiro básico da obra, o que torna evidente qualquer adaptação desejada, especialmente quando se trada de uma obra clássica consagrada. Não, simplesmente não funciona se o autor não for rigorosamente obedecido, é ele o mestre e condutor de tudo por detrás de todo o trabalho pós texto, mesmo que já esteja morto. Ainda que não tenha sido reconhecido em vida, diga-se de passagem. Assim, mesmo que pareça que o ciclo esteja fechado, ainda não está. A obra que sair da mente do escritor terá recebido influência de muita gente, mesmo que não directametne. Pessoas do convívio ou que serviram de inspiração estão lá, mesmo que ocultas em frases que seus entes achariam familiares, mas também há outro caso, o de a obra ser encomendada.

 

            Um autor em crise financeira não pode deixar de comer e morar, assim como nem todos os autores têm vocação para criar do zero um texto novo e dependem de demandas para seu processo criativo, e mesmo os que têm não são obrigados a assinar tudo o que escrevem. Nesse caso a obra estaria subordinada às exigências de quem a tiver encomendado, tocando ao escritor o trabalho de colocar no papel o que lhe for ordenado. Por mais estilo próprio e de sua linha de pensamento que consiga colocar nas páginas, é basicamente por esses dois quesitos que o cliente o terá escolhido. Se ele quiser demonizar alguém e santificar outro, por ter concordado e aceitado o serviço o autor deverá desenvolver um roteiro que faça isso, mesmo que suas opiniões sejam completamente contrárias a isso. Não cabe ao autor questionar os motivos e os anseios por detrás daquela encomenda, neste momento ele é só um soldado com uma missão a ser cumprida, cabe ao contractante fornecer todas as informações de que ele necessitar, nada além disso.

 

            E por falar em contractante, ele pode não ser o autor da demanda, mas um intermediário trabalhando para terceiros, talvez um grupo. Nem todos querem ou podem se expor ao público, por ais glórias que o espetáculo lhes rendesse se o fizessem. Medos, interesses, necessidades ou simplesmente opção de vida influenciam muito mais do que vocês imaginam. Eu poderia encher lingüiça com um texto prolixo e divertido para falar de cada uma das possibilidades de motivações e camadas dessa cebola de bastidores, mas eu me irritaria muito me me daria um murro no nariz. Assim como acontece com uma simples peça de teatro, acontece também no mundo que o sustenta, desde as tarefas da escolinha primária até as mais emaranhadas entranhas da geopolítica mundial. Os bastidores, os verdadeiros bastidores de um acontecimento podem estar extremamente longe do teatro em que a ação se desenrola, e os motivos primários de tudo aquilo geralmente estão muito longe do óbvio, geralmente longe também dos noticiários generalistas, às vezes até dos especializados. Não raro, meia dúzia de pessoas decide por seus próprios critérios os destinos de um bilhão de indivíduos inocentes de tudo, apenas a aplaudir o espetáculo que se desenrola no palco, sem nem imaginar o que acontece no contra-palco.