15/12/2007

Quando criança...


Quando criança, eu sabia que o Oriente Médio estava em guerra, sabia o que era inflação, que os políticos eram odiados, que os militares faziam vistas grossíssimas para a corrupção, que as pessoas morriam e que se precisava trabalhar para ter dinheiro.

Quando criança, eu ficava atento aos noticiários. Via manchetes de atropelamentos, de secas prolongadas no Nordeste, tinha consciência da poluição e de seus efeitos, que as pessoas trocavam gente por dinheiro e que tudo quase sempre ficava por isso mesmo.

Quando criança, eu sabia que haviam pais que não gostam de seus filhos, filhos que odeiam seus pais, de famílias que se desmanchavam na luta pela (quase sempre minguada) herança deixada, que era comum haver uma festa quando um parente abandonava a casa e que não tardavam a encontrar um ocupante para o seu quarto.

Eu gostava de desenho animado. Aprendia a me comportar com as philosophias deles, que eram baratas, mas que funcionavam muito melhor do que as longas e enfadonhas teorias empurristas das escolas actuais. Eu estudava para poder passar de ano.

Eu não me preocupava demais com o futuro, tinha esperanças de que alguma coisa aconteceria para mudar o quadro apocalíptico que eu previa. Acreditava quando diziam que dias melhores viriam, que o passado não servia mais, et cétera. Mas gostava das reprises de "Os Três Patetas", Carlitos, Jerry Lewys, entre tantas. Me divertia com aquelas roupas e aqueles carros antigos.

Eu gostava de desenhar, de ir para a escola, era voluntariamente educado e solícito, ainda que me tratassem com desprezo. Eu sabia que um dia ninguém mais daria importância aos sentimentos alheios, no andar da carruagem. Mas tinha esperanças de que poderia ajudar a mudar isso, pelo menos um pouco.

Eu gostava de brincar sozinho, de imaginar um mundo onde haviam problemas, mas no qual os mesmos eram tratados imediatamente. Nunca de bancar o herói indestructível, tanto que os outros garotos não gostavam de brincar comigo, pois também não aceitava isso deles. Mas eu não esquentava muito, logo estava novo para outra, mas sozinho.

Apesar de ter os pés tão firmes no chão, eu gostava de sonhar acordado. Fazia projectos, esperava ter vida própria quando adulto, uma casinha de muros baixos, uma furreca para passear... Ainda conseguia ficar à parte do mundo horroroso que estava se formando. Adolescentes ainda se encrencavam porque procuravam diversão, não porque queriam causar sofrimento. Bandido ainda tinha medo da polícia, não a população. Mas o embrião da Falange Vermelha já se formava, bem debaixo da negligência estatal. Mas eu ainda consegua ficar à parte do mundo sombrio que se formava. Até porque, se eu falasse de meus temores, ninguém acreditaria. Era criança, achavam que com um pirulito as minhas preocupações seriam eliminadas.

Hoje sou adulto. Um adulto triste. Os conflitos do Oriente Médio se alastraram e atingiram o Ocidente, o fim da inflação galopante não trouxe alívio social, a Terra está reagindo com violência à agressão do último século, acha-se normal mandar pais de família para a miséria para ficar mais competitivo (e ninguém boicota a empresa por isso) em países que usam mão-de-obra escrava, enfim, só vejo alguma beleza quando olho pelo retrovisor.

Eu sabia que isso iria acontecer, que as pessoas menosprezariam uma boa idéia se ela demandasse um pouco de reeducação pessoal, que ser gordo deixaria se ser sinônimo de saúde, que as pessoas pagariam para obedecer capangas de boates, que muitas máscaras cairiam e nem assim os traseiros enormes sairiam do sofá da sala de televisão.

Eu sempre fui uma criança retraída, melancólica e até bucólica, avessa às visitas e insuportavelmente conciliadora. Nunca gostei de photographias, o anonimato me dava mais conforto do que a notoriedade. Ainda que não se tenha dado o devido valor, era obediente e sempre assumia meus actos. Não queria me tornar como o mundo que estava se formando, tinha que me corrigir desde cedo.

Ainda gosto de desenhar, de rever os desenhos antigos (pois os de hoje, pelamor da bicicreta-véia-zangada) pela enésima vez, gosto de desenhar, escrever, de visualizar um mundo com problemas e soluções postas em prática. Não gosto deste mundo que, apesar dos avanços, tem habitantes mais mesquinhos e egocêntricos que os que se foram. Ecologia virou moda, sem isso a militância seria medíocre, bem como as ações sociais. Eu via lotes vazios aos montes e não aceitava que tanta gente precisasse de uma ponte ou uma marquise para dormir. Qualquer um poderia ver que aquilo não se sustentaria.

Nem tudo mudou em mim. Sou um adulto retraído, avesso à notoriedade, não gosto de photographias, adoro aquelas reprises e ainda tenho previsões sombrias.
Quando criança, contudo, eu tinha esperanças de estar errado.

01/12/2007

Camisinhas e camisolas


Esta é uma postagem de caráter coletivo. Uma contribuição singela ao movimento de incentivo ao uso de preservativos como meio de evitar a transmissão, com conseqüente infecção, de doenças venéreas, principalmente a Aids, ou Sida para os irmãos da terrinha.

Antes que achem que estou puxando brasa para a minha sardinha, devo dizer que sou virgem, sexo não me faz a menor falta, logo a camisinha não tem utilidade alguma para mim. Faço este trabalho aqui pelos que precisam dela.

A despeito des alguns sacerdotes e sacerdotisas cristãos que já perceberam que ainda não estão no céu, portanto precisam lidar com as coisas do mundo como quem está no mundo, as altas cúpulas do cristianismo teimam em repetir os mesmos erros de seus fundadores, os romanos antigos e antiquados. Usar a imagem alheia, como o Cristo Redentor, para difundir meias verdades é praxe da política romana.

Não se pode ter a ilusão de que uma juventude (mal) educada pela mídia e pelo mundo, cujos pais acham lindo a filha de nove anos se vestir e comportar como uma dançarina de axé, vai saber esperar que a mente acompanhe a maturidade de seu corpo. A rigidez mental e a arrogância julgadora impedem que o alto clero saiba tratar cada um de acordo com as suas capacidades, não de acordo com o que acham que deveriam ser.

Se é um mal, então que se escolha o mal menor e mais fácil de ser reparado. Abstinência é sim a única forma cem por cento segura de se evitar a gravidez, mas não uma infecção, esta pode ser adquirida em um acidente grave, um exame de sangue ou mesmo no parto. Temos então uma forma razoávelmente segura de evitar a transmissão de uma doença: CAMISINHA. Não é só a deficiência imunológica, toda e qualquer doença viral ou bacteriana pode ser transmitida durante a penetração, muitas vezes é algo que o transmissor não sabe que tem, talvez por ser imune. Todos temos alguma doença em algum nível e não sabemos. Mas é algo que o organismo de cada um tolera sem problemas, o que pode não acontecer com outro, onde o agente infeccioso pode encontrar campo aberto para proliferar e gerar uma doença.

Pés no chão que é onde estamos, por enquanto. Da mesma forma como as pessoas deveriam ser acostumadas desde cedo com a idéia da morte, também para o sexo deveria haver um aprendizado sem barreiras desnecessárias para cada idade. Isso sim seria uma verdadeira matéria de Educação Moral e Cívica, pois gente ciente dos riscos e conseqüências se seus actos, dificilmente se transforma em delinqüente. Ensinar que o outro sente prazer, mas não à força nem à nossa vontade, que o outro tem outras necessidades que não a nossa companhia, et cétera. Mas toda essa mudança passa necessáriamente pela educação sexual (que nada tem a ver com a da tevê) e pela familiaridade com métodos de proteção.

Padres e freiras precisam ter um comportamento muito contido por questões espirituais, que não cabem neste texto, noutro quem sabe. Mas as pessoas comuns, em sua maioria, precisam de uma actividade sexual regular, cada um com seus próprios motivos, mas precisam pelo menos umas três ou quatro vezes ao ano. Não incentivo a promiscuidade, sou muito à moda antiga para esse desespero actual de sair lambendo beiços de qualquer um em uma festa de rua. O que tenho é consciência de que estou em um orbe ainda de aprendizado, no qual as pessoas precisam errar para saber o que não devem fazer, mas sem riscos desnecessários. Não se pode exigir que se comportem como se já fossem anjos, pelas nozes do Boyne! Falar em prevenção sem falar nem permitir a presença de preservativos é estupidez, muito mais do que hipocrisia e irresponsabilidade. Isso aliena. Brasileiro já tem uma resistência cretina à camisinha, não precisamos que estraguem mais o quadro já difícil.

Vamos viver, patota, escolham seus pares, sejam fiéis, mas não confiem que a fidelidade os protegerá de uma doença que o outro desconhece ter. Se não quiserem ter filhos, usem camisinha, cantem como o Chacrinha: "Bota camisinha, bota, meu amor. Hoje está chovendo, não vai fazer calor...". E olha que ele cantava isso nos anos 1970! Um escândalo para a época.

Antes que alguém rasgue as próprias vestes, fingindo horror e dizendo "no meu tempo não tinha isso", saibam que camisinha é mais antiga do que se imagina. Os egípcios antigos usavam, mas não as de látex, eram de tripa de bode costurada. Era para não dar bode para o faraó. Então é melhor a Senhora ensinar à tua filhota, antes que a rua o faça de modo totalmente deturpado e incompleto. Porque se a Senhora não o fizer, eles só ensinam (e vão ensinar se houver omissão) a parte da festa, não ensinam a arrumar a bagunça. Adolescente só tem tamanho, vocês pais deveriam estar carecas de saber, eles precisam de sua orientação, ainda que seja um acompanhamento até o profissional de saúde competente, e esse profissional vai falar em camisinha. Sim, minha Senhora, não tem jeito mesmo, teus lábios imaculados terão que falar em coisas como sexo, dst, gravidez e muito mais. Mas não fique triste, quem sabe a confiança gerada faça tua filha se interessar finalmente pelo livro de receitas que tua bisavó começou. Sim Senhora, quem fala responsavelmente a esse respeito com os filhos ganha sua confiança, não são só espinhos.
Para terminar, uma orientação da Vigilância Sanitária: Todo e qualquer preservativo deve ter o selo do Inmetro e registro no Ministério da Saúde. Não poupem centavos comprando uma camisinha contrabandeada que faz "fon-fon" a cada movimento, pode ser engraçadinha, mas não serve para o sexo.

02/11/2007

Mudar? Não; Evoluir




Saudações, caros leitores. Este blog já tem um ano e meio.


Não fiz absolutamente nada de especial por motivos próprios, coisas de Nanael mesmo.


Gosto muito de melhorar a mim e ao que me cerca, mas mudar é outra história. Parto do princípio de que nós nunca conseguimos usufruir de tudo o que o mundo consegue oferecer, de que sempre há um ponto de vista que não experimentamos, enfim, sempre haverá algo a aproveitar para um bom observador. Ao contrário do que pode parecer, querer usufruir de tudo ao mesmo tempo, como está muito em voga, é não aproveitar coisa alguma do que se poderia em doses bem pesadas. O corpo humano não suporta excessos, na verdade não consegue detectar muitos estímulos simultâneos, se atendo aos mais urgentes.


Primeiro vamos ao meu conceito de mudar. Mudar é modificar a essência da situação; Quem muda de casa estará trocando completamente o endereço, qualquer carta que seja enviada para lá, não encontrará o destinatário; Quem muda de comportamento altera até mesmo o modo como as pessoas a enxergam, levando muitas a se afastarem e outras a se aproximarem, modificando completamente a vida da pessoa; Quem muda de aparência estará trocando de identidade, pois as pessoas vão sempre associar o visual anterior ao comportamento que vêem agora, por mais que tentem não ficarão indiferentes à novidade.


Agora a evolução. Evoluir é aprimorar, tornar mais apto; Quem aprimora sua casa poderá continuando a receber as cartas no mesmo lugar, só que vivendo melhor; Quem aprimora seu comportamento poderá não só continuar com os amigos antigos, como ganhar novos; quem aprimora a própria aparência está reafirmando o que é, deixando claro que a efemeridade do mundo não vai lhe afetar tão facilmente.


Tanto a mudança quanto a evolução podem ou não ser boas, mas quando uma coisa é boa eu prefiro aprimorar a modificar. Este blog, por exemplo. No começo eu sequer colocava títulos nos textos, agora têm até ilustrações! Foi um aprimoramento. Sim, não sou um sucesso de acessos, como essa patota aqui:




Entre outros que minha pérfida memória não me permite enumerar. Mas a minha proposta nunca foi ser um campeão de visitas e ganhar dinheiro com isto aqui, foi simplesmente apresentar minhas idéias do melhor modo que eu puder. Tanto que ainda nem sei embutir o endereço das páginas em uma palavra-link. Mas isso é para uma evolução já agendada.



A questão é que, para mim, mudar sem haver o firme propósito de melhorar é nocivo. Eu não sei simplesmente colocar uma figurinha legal lá em cima, na cabeça do blog e ficar rindo de como ficou bonitinho. Eu preciso de uma função para a mudança, ainda que seja facilitar a leitura ou apenas tornar o aspecto mais agradável. É isso que chamo de evolução. Para muitos a simples troca do nome de apresentação já causa um bem-estar imenso, mas não para mim. Eu fico com remorsos. Me sinto tendo traído a mim e às minhas convicções. Preciso de uma função para justificar uma mudança.



Por isso mesmo eu lamento informar aos que já se enjoaram, mas o papel de parede que escolhi para a minha página ficará aqui por um bom tempo, até que eu encontre cousa realmente melhor. Confesso, eu não sei mexer direito nesse negócio de internet e suas linguagens exóticas, mas isso é apenas un dificultador para o que já não quero fazer. Assim como continuarei a escrever philosophia enquanto as duas graphias indicarem a mesma coisa.



Mas eu já efetivei mudanças em mim. Sério. Há até quinze anos eu me vestia como qualquer um; jeans, camiseta, tênis, et cétera. Só que a camiseta ficava sempre para dentro das calças. Me diziam para ficar mais "à vontade" e eu retrucava que não ficaria à vontade transformando uma camiseta em minissaia. Bem, aos poucos parei de usar isso e hoje só compro camisas pólo, o resto é de alfaiate. Tênis? Não, obrigado, fico com um bom e confortável par de sapatos de primeira linha, que actualmente custa bem menos. Encontrei aí o meu visual anos 1960 que uso até hoje. O aprimoramento é o uso de canetas-tinteiro e relógio analógico. Parece um retrocesso, eu sei, mas foi uma boa mudança acompanhada de uma boa evolução. Isso me fez bem tanto quanto o refinamento dos meus modos, tanto à mesa quanto na lida pessoal. Assumi o tiozão que eu tentava reprimir sem saber direito o porquê, mas liberei o aparente conservador que sou. Digo aparente porque, bem, já estou explicando neste texto. Sou infinitamente progressista e democrático, mas não confundo liberdade com libertinagem. Por mim as pessoas poderiam andar nuas, em locais onde isso não ofereça riscos. Me disciplino para não cair nas garras aparentemente bonitinhas dos modismos, para não perder minha identidade. Quando for o momento de mudar, mudarei sem esitar. Não antes.



Gosto muito de uma boa rotina, isso talvez explique boa parte da minha resistência às mudanças, principalmente às desnecessárias. Pois mudar custa muito mais do que aprimorar. Para mudar com sucesso é preciso haver um bom planejamento, ou uma grande e urgente necessidade. Seria bom, por exemplo, ter dos anos 1950 a mesma proximidade e boa educação, a mesma qualidade dos productos, mas com as boas conquistas que há hoje. Uma coisa boa não precisa excluir a outra, isso é evolução.

09/10/2007

Alegria n° 1


Meu amigo Tibúrcio me pediu, certa feita, para divulgar uma boa rádio, mas o mongo aqui se envolveu demais nos próprios problemas e se esqueceu. Pequei pelo egoísmo, reconheço. É esta: www.radioriodejaneiro.am.br .

Esta letra (ainda não sei cifrar, me perdoem) me apareceu em um sonho, no qual eu estava em uma favela escura e aterradora, quando repentinamente surge um coral de crianças e o dia raia, clareando e dando beleza a tudo. O tipo de música que a rádio supracitada tocaria. É uma transcrição literal do que ouvi no sonho. Alegria n° 1:


Diga que o sol aparece, o dia amanhece, que você acorda e já quer cantar;

Viva, que o tempo não pára, não perca mais tempo, vem logo pra rua conosco cantar;

Diga que a tarde já cresce, que o sol efervesce e nem mesmo assim vai deixar de cantar;

Viva, que a vida é tão rara, me dá um sorriso, diga que por isso volta a cantar;

Diga que a noite é bela, que a lua já brilha, que a estrela aparece pra te ver cantar;

Viva, mais este momento, depois ao dormir, depois amanhã faça outra canção e vem conosco cantar;

Diga que sonha conosco, se já vai chorar põe na boca um sorriso e começa a cantar;

Viva, mesmo que em sonho e sonhe bonito, pois quando acordar o sol volta a brilhar, e volta a cantar.

06/09/2007

Onirautas IV, Um Sonho Chamado Hollywood


Este texto é mais uma homenagem à Audrey Beathan, uma criança com mais de vinte anos que me devolveu um pouco da alegria que eu tinha perdido muito precocemente; também ao meu amigo Kanangô, que me deu motivos para não mais menosprezar os filmes de hoje... Agora só os detesto.

Não existem apenas sonhos individuais. Ao contrário das alucinações, que emanam do mais obscuro rincão do ego de cada um, os sonhos podem ser coletivos e o cinema é a mais contundente representação deles.

Quando um evento público consegue causar algum tipo de torpor, ou ao menos distrair as massas de seu cotidiano, torna-se um sonho coletivo. Actualmente a televisão tomou o trono, daí se compreende porque as pessoas têm tido cada vez mais pesadelos. Um sonho somente, entretanto, não é suficiente para aliviar o sofrimento de uma população. Também se fazem necessários remédios de tarja preta, comida leve ou (de preferência) a REALIZAÇÃO, ao menos parcial, do que esse sonho coletivo prometeu.


ONDE TUDO DEU ERRADO?


Não sei. Mas com certeza não foi absolutamente tudo, tudinho da silva, ou toda a civilização teria entrado em colapso. Imaginem seis bilhões de pessoas azedas, infelizes e dispostas a dar cabo de si e dos outros, por não terem sentido para suas vidas! Faria o bairro mais violento do Brasil parecer um paraíso. Algo deu certo.


ONDE ALGO DEU CERTO?


Foi logo no início. Quando os irmãos Lumiére fizeram a primeira sessão, as pessoas, após fugirem do trem (ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah) descobriram uma aventura na qual não corriam riscos desnecessários, a não ser de se apaixonarem pela arte nascente. Poderiam participar de romances, conhecer gente nova, lugares inusitados e toda uma sorte de possibilidades que ainda hoje não esgotaram... Notaram como a língua portuguesa tem palavras estranhas? Esgotar... Esgoto... Faz sentido, mas é estranha.

Claro que neste mundo tudo tem seu lado ruim, mas este a imprensa faz questão de mostrar e exagerar, então me aterei às partes boas. Como Greta Garbo. Ah, vocês jovens não sabem o que é uma actriz! Era aquele mulherão aparecer na tela e qualquer cochicho desaparecer. Ela vendeu o sonho da mulher poderosa e emancipada no período entre guerras, uma ousadia que logo despertou a ira dos conservadores. Disciplinada ao extremo, abandonou o cinema quando teve sua primeira bilheteria abaixo da expectativa. Achou que era tempo de parar, ainda jovem. Mas soube respeitar os sonhos que vendeu e tomou chá de sumiço, até nos deixar em 1990. A imagem que todos têm dela é a da sueca inatingível, cujo olhar por si mesmo emana uma ordem à qual não se pode resistir. Bem, ela era assim na vida pessoal. Isso a tornou um tanto distante nas relações pessoais, mas foi sincera. Sabia que estava vendendo sonhos, não sua vida pessoal, então não dava entrevistas, não fazia charme para photógraphos, enfim, se portava como a deusa que conseguiu fabricar. Acabou se tornando realmente uma deusa pois quase ninguém a viu velha. Isso foi ponto de honra para a moça reclusa e atraente.

Falando em deusas... Grace Patrícia Kelly. Gênio inversamente proporcional à sua constituição frágil, não esperou o papai arranjar um casamento vantajoso na Philadélphia e foi logo trabalhar. Começando de baixo, mas sem parar para esperar pelo príncipe encantado. Um dia se tornou princesa. Mas princesa de verdade, que trabalhava com o marido nos negócios do principado, mais tarde engajou em uma causa nobre e criou uma fundação em prol das crianças pobres, que ainda hoje funciona sob a batuta da filha, a princesa Caroline. Me perdoem os amigos lusitanos, mas por cá respeitamos os nomes próprios. Para quem adorava detratar sua imagem, era ignorado o facto de ela ser mãe de três adolescentes, tendo uma delas a alcunha de "A Criança Terrível", quem é mãe já está compreendendo o que digo. Grace se destacava não só pelo talento, mas por sua plástica irrepreensível, um rosto que ninguém se cansava de olhar e um comportamento público de grande refinamento. Grande apreciadora de homens mais velhos, hoje talvez chocasse por isso, mas na época era sinônimo de juízo preferir homens maduros, tanto que se casou com um.

Trabalho também não incomodava a belga Audrey Hepburn. O Anjo das Crianças, que ilustra este texto. Seguiu o exemplo da amiga loura e foi mais longe. A fidalga foi um dos maiores ícones de classe e elegância do século XX. Bem educada de berço, bem instruída, talentosa, excelente voz, postura de uma rainha. Deixou o cinema por muito tempo para se dedicar aos filhos, o horror para as feministas mais azedas. mas nunca deixou de militar, viajava aos países africanos, fez o mundo perceber que estava deixando alguém de lado.


Agora aos sonhos, como se essas três já não tivessem sido em vida. As distintas damas em questão fizeram trabalhos de fazer os productores de hoje se esconderem de vergonha, se eles tivessem. Muito romanceadamente, elas mostraram que o mundo não é um paraíso, que mesmo os mais abastados choravam e que essa abundância, irônicamente, poderia consistir na ruína do elitizado. Sendo coerentes com suas propostas, elas e a maioria de suas colegas de olimpo, convenciam as pessoas de que se poderia ter esperanças se o trabalho viesse no pacote. Pois não se conhece época de maior esperança do que aquele período de poucas décadas. As pessoas começavam a ver a contradição tanto do conservadorismo, como a segregação que os ianques tinham legalizada, quanto no apego às novidades, que Charles Chaplin mostrou de modo inequívoco em "Tempos Modernos". As previsões para o futuro eram as mais optimistas da história. James Dean mostrava que os espinhos eram muitos, que a falta de vigilância e a intolerância doméstica poderiam ser letais, mas foi ele o endeusado, não a atitude de seus personagens.

E o cinema se uniu aos arquétipos, tornando-se um neótipo. "Bonequinha de Luxo", "Janela Indiscreta", "O Poderoso Chefão", "Cidadão Kane", "O Maior Espetáculo da Terra", "Casablanca", "E O Vento Levou"... Não haveria espaço neste blog para citar só os que eu tive a alegria de assistir. Por isso mesmo posso assegurar a superioridade qualitativa dessas obras.

Um trabalho bem feito era comum, não se ouviam exclamações quando ele aparecia. Tanto em ficção quanto em bases de factos reais, as cenas cinematográphicas fazem emergir os medos e os anseios que a vigília mecanicista oprime, tornando até mais fácil o trabalho de psicólogos e psiquiatras. Basta perguntar a uma pessoa quais os seus filmes preferidos e o porquê de preferir estes, logo os olhos brilham e a expressão facial, antes neutra e normopatológica, muda completamente. O camarada acanhado e obediente revela seu lado autoritário, a moça rebelde e independente revela a Branca de Neve que ainda sobrevive em seu coração, o conservador extremista exteriora suas taras e fantasias mais loucas, enquanto o brutamontes confessa que queria fazer balé.


Não é nada de extraordinário, é psicologia. Extraordinário é o recurso estar quase inexplorado pela maioria dos profissionais. Seria arterial na ajuda aos mais reclusos pacientes.

Eu adoro desenho animado. Adoro as obras de Tex Avery. Daí um bom profissional logo descobriria que não precisa ter medo de minha cara fechada, bastando ter respeito pela casa.

Imaginem um bom musical, como "Cantando na Chuva". Há quem chore ao ver Gene Kelly dançando na rua. Chora e aluga o filme toda semana. Masoquismo? Um pouco. Mas estar cantando debaixo daquele aguaceiro remete, principalmente, ao nascimento; "Como ele pode estar tão feliz por nascer se eu achei uma completa desgraça?". Enquanto não entender o que realmente sente com aquela cena, vai continuar chorando e não aproveitando o melhor do filme. Mas eis que, eureka, um dia ele se vê sob uma tempestade, com a roupa ensopada e começa a cantar feito um demente "I'm sing'n in the rain..." ele vê que o nascimento, apesar de sofrido, pode sim ser muito bom. Só que depois ninguém entende como ele melhorou tanto de humor. E daí? Que aproveitem a nova fase e deixem o dem... digo, o rapaz cantar e dançar.


Senhoras e senhores profissionais de saúde mental, vos faço este singelo apelo, usem o cinema de qualidade para ajudar no tratamento de seus pacientes. Eles e vocês só têm a ganhar.

05/08/2007

Link Nobre


A televisão não vai morrer, os inimigos dela podem tirar o cavalinho da chuva. Mas não será a mesma coisa.
Para começar, podem ir esquecendo essa conversa de "horário nobre". Depois, dêem adeus às mega produções feitas por uma só empresa, provavelmente desaparecerão. Qualquer coisa muito cara será feita em consórcio. É batata.
O que vai acontecer? Já aconteceu, fiotes! E ainda está acontecendo. Desde que esse tal de You Tube deu as caras que qualquer mané consegue exibir seu trabalho, não em rede regional ou nacional, mas para todo o planeta e sem complicações. Na verdade, para o cosmos, pois creio que a Estação Espacial Internacional tem acesso à rede.
Há muitos sítios oferecendo seriados completos, programas antigos, propagandas em branco-e-preto, desenhos que já eram velhos quando eu nasci. E estão ganhando com isso. A maioria tem atalhos para patrocinadores.
Me digam, por que eu vou querer ver a oitava reprise de "Buchi, o Cãozinho Ninja do Barulho em Las Vegas" se posso rever Túnel do tempo ou A Feiticeira, ou mesmo as pilhéias de Ronald Golias?
Se as emissoras tiverem juízo, abrirão seus próprios provedores (enquanto ainda têm verba para tanto) e disponibilizarão lá o seu conteúdo, para que o público escolha o que e quando quer assistir, sem as complicações burocráticas que a já malfadada tevê digital está causando. Acredito que ela será como a máquina de escrever digital; veio tarde e já tinha o computador para enfrentar, cabou sucumbindo.
O patrocínio dependeria, quase sempre, de o usuária clicar no ícone do patrocinador, o que nem sempre aconteceria, fazendo os executivos rebolarem para convencer o povo a clicar. Mesmo assim há milhares de boas produções de baixo orçamento sendo postadas todos os dias, seja no You Tube, seja em seus recentes concorrentes. A verba seria pulverizada. Se isso é bom ou ruim? Para quem ganha com monopólios é péssimo. Para o restante da humanidade é uma maravilha. O acervo já existente não vai desaparecer, pois tudo já se encontra nas estradas da rede, tudo mesmo. Ainda que via e-mail, algo que juiz nenhum pode barrar. Também porque as grandes emissoras não são estúpidas, sabem que encolher é melhor do que desaparecer, e que suas marcas ainda valem muito para o opúblico, o que podem explorar facilmente.
Imaginem então meios alternativos de receita. Ao lado da tela de exibição do programa escolhido, haveria um menu com productos e serviços relacionados ao mesmo, com a marca do programa e da emissora, que assim ficaria menos dependente de anúncios. Por exemplo, em programas de cultura poderia haver um link para os productos das apresentadoras, como livros e licenciados. Haveriam casos nos quais isso pagaria todo o programa, o que geraria maior independência, não teriam que temer a perda de um patrocinador.
Vai uma dica de como dar um ar menos amador à sua produção: use edredons em portas e janelas para abafar o ruído externo, bem como almofadas por perto para reduzir os ecos que o microphone vai captar. Procure estender um lençol branco no chão para a iluminação ficar mais uniforme e, principalmente, ensaie um pouco antes de gravar, em frente ao espelho, para poder controlar melhor as tuas caretas e teu olhar de "heim? quem sou eu?" que sempre vejo nos vídeos.
Ah, sim, os artistas. Talvez a profissão sofra uma transformação radical. Haverá tanta gente boa ganhando fama, que praticamente todos conhecerão ao menos uma "celebridade" ao vivo. O status de actor ficará menor. Ana paula Arósio é linda, deslumbrante, mas terá que ceder espaço para outras, ainda desconhecidas, tão lindas e deslumbrantes quanto. Pois existem. Quem ganhou a aura mítica da televisão, ganhou, quem não ganhou não ganha mais. Os paparazzi sim, iriam penar. Por que vou querer ver uma ex bbb (boba, besta e banal) comendo salsicha na praça? O mesmo veículo que dará uma programação mais refinada, ao menos para mim, também me fornecerá imagens de moças bem melhor apessoadas fazendo coisas bem mais inteligentes.
Para ser CELEBRIDADE a pessoa terá que fazer por onde. Sim, virão à tona baixarias que o medo dos patrocinadores não permite, mas estamos no mundo dos homens. O que importa é que muita gente valorosa e talentosa terá seu espaço oficial e poderá viver disso.
Imaginem os fóruns que vocês freqüentam tendo, pelo menos, seu próprio programa. Como a Ni TV, apresentada por Flávia Pegorin, Clarissa Passos e Viviana Agostinho directo de San Francisco.

Aguardai, amigos ávidos por uma programação autêntica, pois o dia em questão não tarda.

Onirautas III; Os Sonhos de Zezinho


Zezinho subiu na macieira, mas não encontrou goiabas, então desceu e voltou para casa. Todos os dias Zezinho subia em uma macieira diferente, mas só encontrava maçãs. Grandes e suculentas, mas apenas maçãs. Zezinho queria goiabas. Por que? Nunca tinha comido goiabas e lhe disseram que davam em árvores, que nem a maçã. Não é de admirar que ele, em sua tenra idade, fizesse tal confusão.

Zezinho queria muito as goiabas, mas procurava nos lugares errados. À bem da verdade, não haviam goiabeiras na região onde morava. Só em uma conversa com Mariazinha (Coro: Tão namorando, tão namorando...) ele descobriu a verdade. Ela estivera em Goiás, para visitar parentes, conheceu a goiaba e a goiabeira...

- Trouxe algumas, amanhã te trago uma.

- Como é?

- É verde, de casca fina e rugosa, com a polpa cor-de-rosa bem bonita, o sabor é um doce suave, muito gostosa.

Naquela noite, Zezinho sonhou com Mariazinha. Ela estava em um tailleur verde claro de tecido texturizado, com uma blusinha cor-de-rosa por baixo. Ao seu redor uma paisagem mais quente e seca e uma voz de mulher dizendo "Só nasce aqui. Aí é muito frio". Atrás de mariazinha verde-e-rosa, algumas frutas lançavam sementes ao solo, mas só as da região conseguiam brotar.

No dia seguinte, a glória, trouxe-lhe a goiaba tão sonhada. O aspecto não lhe parecia lá grande coisa, mas gostou logo na primeira mordida. Não poderia, entretanto, deixar de pensar que a amiga estava com aquelas cores, no sonho. Decide contar, ao pé do ouvido, para não gerar mais celeuma (Coro: Tão namorando, tão namorando...) do que essa amizade já causa. Ela conta para a mãe assim que chega em casa...

- Não acha que vocês são muito novinhos para isso?

- Pra quê, mãe?

Eleonora percebe a inocência da filha e vai falar com Ismênia, mãe de Zezinho e sua ex-professora. Esta não se mostra surpresa, apresenta os cadernos com desenhos coloridos que retratam os sonhos de Zezinho...

- Posso levar para estudar isto ?

- Podes, claro. O que estás pensando, guria?

- Coisas de psicóloga.

Leva os desenhos e se põe a estudá-los. Zezinho, filho tardio, teve todo um conforto e condições que sua irmã não teve. Não raro, indo à Curitiba, pensam ser seu filho. Além do talento para artes plásticas, ela nota a riqueza de detalhes e as cores vivas, além de uma estética muito apurada, provavelmente herdada e aprendida com a mãe severa. Se lembra bem de ouvir o garoto falando de coisas que se parecem com alguns daqueles desenhos, como quando disse que acordou e se pôs a costurar um bolso que havia rasgado. Há o desenho de uma cobra entrelaçando dois troncos de árvore. A junguiana vai falar novamente com a ex-professora...

- "Ex" uma ova! Ainda posso puxar-lhe as orelhas se ela desafinar ao piano.

Eleonora conversa com sua professora de artes sobre aqueles desenhos e a relação com a criatividade do guri. Ismênia não deixa por menos...

- Olha, eu educo esse menino com mãos de ferro, pois o falecido já não pode mais me ajudar. Mas de jeito nenhum eu vou tolher a criatividade dele, isso nunca! Eu não ensinei ele a mentir e já o coloquei contra a parede nas poucas vezes em que houve suspeita, então tudo o que ele diz é verdade. Ele aprende mesmo com os sonhos, acho que capta as coisas durante o dia e elas afloram durante o sono, não sei direito...

- A senhora não deixa de me surpreender. Levou à sério as três pedrinhas e agora faz o mesmo com teu filho.

- Vou te dar mais uma aula, então. Nesses congressos de psicologia, pra onde você viaja tanto, eles falam coisas muito bacanas, muito bonitas, mas esquecem quase sempre de olhar para dentro de casa. José nunca teve luxos, mas nunca lhe faltou o que ele precisava, isso inclui a liberdade de falar de frente comigo, sem medo de achar que faltará com o respeito por causa disso. Ele brinca o dia todo, não porque é desocupado, brincar é a ocupação dele. É assim que ele vai aprendendo a ser adulto no tempo certo, sem ter que perder a infância nem dar as costas aos seus devaneios.

- Maria disse que ele procurou pela goiaba por dois meses!

- Então era goiaba? A fruta da candura era goiaba?

- Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah...

Explica o motivo dos risos. As duas se olham, vêem se ele não está por perto e, lembrando das traquinagens de recreio, começam...

- Estão namorando, estão namorando, logo estarão casando...

Com a liberdade que tem, Zezinho aprende sem traumas a ir atrás de suas aspirações sem medir esforços, mas às próprias custas. O garoto é de philosophar e só Mariazinha se dispõe a ouvir suas citações, ainda que nunca tenham lido um livro de philosophia.

Zezinho conversa com uma baleia saxofonista, trocam ambos algumas idéias e ele começa a marcar o ritimo com conchinhas, na manhã que se segue ele toca a mesma coisa com o lápis na carteira, Mariazinha conta para a mãe e esta cifra a música, que leva para a mãe do petiz...

- José. Venha aqui.

O garoto segue lépido à genitora, que lhe mostra a partitura. Não entende bulhufas, pois ainda não aprendeu música teórica. Pois aprenderá agora, com sua própria composição, repassando tudo à noite, quando canta e dança com notas musicais, com as quais faz todas as combinações que pode. Ele sabe que está sonhando, sabe que em estado vígil aquilo não poderia acontecer. Zezinho não tem travas, sua mãe tirou-lhe todas no decorrer de seu crescimento. Diz sempre que se sonhos fossem só alegorias, o corpo não perderia tempo e energia criando-os. E que alegria de Ismência, vendo hoje seu José dizendo sim para Maria. Mais do que felicidade, seu olhar é de triunfo. Não estragou o menino, como diziam estar, não o transformou em maricas nem em um vagabundo. Pois um vagabundo quando chega a subir em uma macieira, não encontrando a goiaba, come uma maçã e dorme. Não vai atrás do sonho, nem se casa com ele.

Esta ficção meio-parábola é um oferecimento das micagens Audrey e das philosophias Míriam Ungareti. Segue agora nosso próximo tele-texto.

28/07/2007

Memorando I

Caro Senhor Director desta Instituição;
Após cordiais cumprimeitos, venho por meio deste externar minha preocupação com os rumos tomados pela sua administração.
Reconheço que se faz necessário cortar supérfulos, o que é uma atitude sábia. Reconheço que deve haver alguma disciplina mínima para a boa convivência, atitude sapientíssima. Reconheço ainda que se deve regular o acesso de gente estranha ao quadro desta entidade, atitude que merece aplausos.
Devo considerar, entretanto, que nem tudo é supérfulo, nem tudo exige disciplina e nem todos os que entram são estranhos.
Meu médico não é estranho, ele trabalha nesta instituição, tendo sido inclusive membro da primeira directoria, quando da fundação. Meus funcionários podem e devem se identificar na portaria, mas nunca o meu médico! Seria melhor o Senhor Director se identificar e até prestar reverências diante de tão augusta figura. Eu não estou aqui de favor, pago caro pela minha hospedagem.
Não se pode querer disciplinar as idas ao sanitário. Ninguém em sã consciência vai três ou quatro vezes àquele lugar porque gosta. Os funcionários, que já estavam aqui quando o "Senhor" Director ainda usava fraldas, trabalham duro todos os dias, por vezes abrindo mão de pequenas folgas, para oferecerem aos associados um tratamento dígno. E não pedem hora extra por isso. Basta lembrar, por exemplo, das enfermeiras que saíram feridas quando foi preciso, inclusive com meu auxílio, conter um dos amigos do "Senhor" Director. Apesar da elevada hierarquia social que trago, não me importo em ajudar nas actividades mais frugais desta instituição, que por anos tem me apartado do mundo insano que se instalou lá fora.
Desjejum NÃO É SUPÉRFULO! Supérfulo é um Mercedes Benz à disposição da directoria, quando o antigo director utilizava um austero e bem-exemplar Fusca Itamar. Não será nos dando pão com manteiga e comendo damasco, que o "Senhor" Director (?) saneará as finanças desta instituição. Não tente me enganar, sei muito bem que a antiga directoria deixou as contas em dias, com saldo positivo no banco. Está tudo com os meus advogados, pronto para ser utilizado caso não se reestabeleça a boa ordem.
A faculdade, "Senhor" Director (ah, ah, ah! Que piada!) ensina muitas coisas boas, mas a maioria delas só se aprende com a idade, que o senhor ainda não tem. Eu conheci seu pai e sua mãe, exemplares obreiros desta sacra instituição, que me acolheu sem saber quem eu era e de onde vinha, me tratando como se trata a realeza. Quando recebi alta, não quis sair, senão para passeios e visitas a amigos e familiares, pois é aqui que está o meu lar. Não permitirei que um garotinho que decorou os livros e as citações philosóphicas, sem saber o que realmente significam, destrua tudo o que Minha Majestade ajudou a construir. Lembre-se de que trabalho em regime de voluntariado e tenho a plena confiança dos demais associados e de todo o funcionalismo.
Espero que esse episódio possa ser enterrado e possamos ser bons amigos, ambos temos muito a ganhar com misso, principalmente o senhor.

Atenciosamente;

Jocasta Nero Bonaparte de Nazaré
Rainha do Egipto e inventora da roda.

06/07/2007

Onirautas II, A Redescoberta do Onírico


Mais uma onirisséia, novamente dedicada à Audrey, cujas peripécias parecem mesmo saídas do mais surreal devaneio.





Quanto sofrimento vão seria evitado se a psicoterapia fosse mais aplicada? Se os sonhos fossem levados mais à sério? Se em vez de desprezar os sentimentos dos adultos, estes fossem estimulados a aprender a conviver com eles?


Quase impossível calcular, tanto quanto a fortuna que as pharmoquímicas perderiam, pois haveria muito menos viciados em psicotrópicos, que chegam a cometer qualquer atrocidade para se isolarem dos sentimentos que os assustam. Subverteram Descartes.





Houve no século XIX um homem que se atreveu a dizer que as pessoas não são só matéria, que há um factor a mais. Sigmund Freud era um cientista respeitado no meio acadêmico. Médico experiente, daqueles que percebem quando o paciente mente ou não se lembra de todos os sintomas que sente. Conversando com eles, Freud percebeu que boa parte dos problemas comportamentais e de saúde nada tinham de causas orgânicas, mas eram uma espécie de bloqueios não físicos que impediam as pessoas de se realizarem. Muita gente ficou de orelha em pé ao saber desses estudos, mas cabelos arrepiaram mesmo quando ele começou a investigar os sonhos de seus pacientes, talvez até os próprios. Nisso (re)descobriu que o subconsciente manda mensagens continuamente para as pessoas, mas estas estão ocupadas demais tentando ser sérias, adultas e socialmente respeitadas. Se hoje isso cobra um preço alto, imagine na época em que uma mulher mostrar os pés era um escândalo! Pois escândalo maior Freud produziu depois, se atrevendo a falar de sexo na frente dos cientistas sérios e respeitáveis de sua época. Ele conseguiu ligar as travas e todo tipo de anseios à repressão sexual. Mais: disse que bebês têm sexualidade! Horror! Horror! Se nem os pais têm sexo, como os santos rebentos teriam? Mas ele estava aí para a celeuma? Não, não estava. Convenceu-se de que precisava ir adiante e foi, o cabeça dura.


Não demorou e conseguiu muitos discípulos, entre eles Carl Gustav Jung. Jung e Freud trocaram correspondências aos baldes, os carteiros conseguiram justificar seus salários só com o trabalho que esses dois davam. Os encontros eram férteis para ambas as partes. Mas o que era bom durou pouco, Jung desconfiava que algo tão complexo como a mente humana não poderia ser travada só por questões sexuais. Houve a fissão. A cabeça dura, antes um aliado, impedia Freud de raciocinar livremente e aceitar as idéias de Jung, que lhe pareciam tão ridículas quanto as próprias ainda parecem aos olhos dos céticos radicais. Jung começou a falar de inconsciente coletivo, arquétipos, jogar tarot, I-ching, et cétera. Os defensores de que o que não pode ser pesado, picotado e reproduzido em laboratório não tem o direito de existir, logo atacaram, dizendo que suas idéias eram tão absurdas que até o mestre as rejeitava. Claro que exageravam e ainda exageram, assim como não fazem a mínima questão de investigar científicamente para descobrir do que se trata.


O facto é que os tratamentos que levam o ser humano como ser humano, não como mero monte de massa biológica, funcionam. Demoram muito mais do que drogas (por isso mesmo dificilmente viciam), mas os resultados existem para quem quiser estudá-los. A banda podre das pharmoquímicas não quer, nem os orgulhosos que se iludem achando que sabem e controlam alguma coisa no mundo. O tratamento não-químico funciona, eu sou a prova viva disso.


Com certeza as obras desses dois cabeças-de-ferro inspirou o surgimento do surrealismo nas artes, que nos revelou o gênio arrogante e extremado de Salvador dali, que em suas obras nunca fez questão de esconder as conturbações de sua mente. Aliás, caso raro em que alguém viveu muito bem de sua doença.





Freud e Jung deveriam ter estudado suas diferenças, em vez de usá-las como escudos. Não se sabe onde teriam chegado se não tivessem rompido, mas estaríamos anos-luz adiante no tratamento de distúrbios mentais. Acontece que Jung nunca negou que a repressão sexual tinha forte influência no comportamento de sua época, apenas disse que não era a única coisa. Seu "pecado", talvez, tenha sido admitir a existência de coisas que o racionalismo irracional da revolução industrial jogara para debaixo do tapete. Afinal, um operário que sonha tem idéias, se tem idéias pode não aceitar a exploração selvagem, daí podem tirar suas próprias conclusões. São coisas ainda hoje taxadas de misticismos, por pessoas que se recusam a estudá-las como o fazem com as obras freudianas e junguianas. Interpretar sonhos, ler arquétipos, jogar palitinhos chineses, cartas de tarot então! Tudo aquilo cheirava a bruxaria, superstição que a "verdadeira ciência" banira e da qual as pessoas não precisavam ter medo. O medo agora eram a fome, a guerra, o extremismo religioso, mas não aquilo.


Acontece que a corrupção é racionalista, não admite a menor hipótese de que as pessoas conheçam a si mesmas, sob o risco de seu palanque ruir. Ainda hoje o ocidente reluta em aceitar o que vem funcionando há milênios no oriente. Nem vou falar em questões espirituais, dharma e karma.





Certa feita tive uma vizinha com dois filhos, um deles tinha um medo irracional de cães, mesmo os de bolso. Na realidade, bastou ver a mulher furiosa uma vez para perceber que ela se assemalhava a um cão nesse momento, e chegava a rosnar. Remédios atenuam os sintomas? Sim, atenuam. Mas o problema persistiria. O paciente ficaria dependente pelo resto da vida. $$$$$!!! Chega o momento em que nada mais funciona.


O que mais pesa contra o factor onírico é que ele leva, inexoravelmente, a uma série de conhecimentos milenares que são rejeitados pelas academias. E um conhecimento leva a outro e assim por diante.





Apesar de tudo, a redescoberta do onírico não foi freada, por mais que se tente encobrir seus benefícios e difamar seus estudiosos. E vem em excelente hora. Desde os primeiros escândalos de Freud que a humanidade vem se tornando mais imediatista e impessoal, desprezando o bem-estar e os sentimentos alheios. Não confundir respeito à privacidade com indiferença, esta tem prevalecido em um mundo voltado exclusivamente para a satisfação imediata e a comodidade. Também por isso muitos orientais não gostam do ocidente, é freqüente um árabe ou um japonês tradicional ser alvo de cochichos nos corredores das universidades, não importa o quanto sejam competentes, mentalmente abertos e dedicados às pesquisas. Não crer é diferente de respeitar, o primeiro é acessório, mas o segundo é compulsório se houver o mínimo de bom senso. Sei que isso vai destruir os sonhos (epa!) de muita gente, mas a ciência formal é machista e segregatória. É uma fogueira de vaidades como qualquer ramo onde existam prestígio e autoridade em alguma coisa. Cientista é gente. A competição é muito maior do que a cooperação, afinal é essa a "lei da seleção natural", conforme deturparam Darwin.


Ainda assim eu sonho, aprendo com os sonhos e ponho em prática, na medida do possível, o aprendido. Pois a mente não é capaz de conceber o que não conhece, qualquer psicólogo recém formado sabe disso. Tudo o que temos a aprender está no subconsciente, tudo o que existe está lá registrado, se deixarmos de arrogância e aceitarmos sua ajuda, aprenderemos não só o que buscamos, mas também o que já somos. Uhm... Meio poético, talvez por isso mesmo desagrada a quem não vê seriedade no que não tem aridez. Ainda que os trabalhos de Freud e Jung não sejam para leigos, têm sua poesia, seu encanto subjectivo e estético. Toca no fundo da Alma dando a entender que, se a química falhar, haverá esperança no subconsciente. Mesmo que não haja cura, haverá uma vida melhor e mais dígna. Pois convenhamos, há cegos que não trocam sua percepção apurada por dois olhos sãos. Muitas cegueias ópticas, antes de sua conclusão, denunciam problemas cardiovasculares e imunológicos que os tratamentos alopáticos não detectaram. Depois de uma boa terapia o paciente está pronto para viver (e não enfrentar) a vida.





Outra coisa que os sonhos nos ensinam , é que somos nós os nossos maiores inimigos, não o vizinho estranho de hábitos anormais. Isso não entra nas cabeças da maioria das pessoas, soa ilógico, tão ilógico quanto uma partícula subatômica que parece adivinhar quando queremos observá-la. Enquanto um grupo consome recursos para provar que "Deus não existe", outro crescente usa recursos nem sempre maiores para resolver os problemas da humanidade. Não conseguem explicar? Vêem se realmente funciona. Funcionou, passam a estudar o que conseguirem. É assim que age um cientista de verdade, foi assim que agiram Freud e Jung, que mesmo separados plantaram a semente de sanidade, a mesma que poderá ser a diferença entre o colapso social e a retomada do progresso e da tentativa de união mundial. Um sonho distante, mas não inacessível.





Encerro esta onirisséia dizendo que a natureza não é estúpida. Tudo o que existe é útil, ainda que seja o seu cunhado, ele pode servir de peso de papel. Sonhos criativos não existiriam se não tivessem serventia, portanto não são simplesmente reparadores cerebrais e revisores da rotina diária. Para isso bastaria atenuar a maioria das funções cerebrais, sem gastar energia na produção de imagens complexas e malucas. O que teria nos condenado à idade das cavernas pela eternidade. Por conseqüência, nos privaria do que somos capazes de fazer de bom, belo e et cétera. Falei demais. Tchau.

10/06/2007

O Ocaso da Escola

Este é um texto entreonirautas. Fiquem tranqüilos que estou com o material quase pronto para uma nova onirisséia. Mas agora preciso falar de um tema triste.
Imaginem, principalmente os corinthianos, se por algum motivo, seu time desaparecesse. Se de uma hora para a outra ninguém mais desse imoprtância às glórias, aos serviços sociais, aos paradigmas e ao respeito que tanto trabalharam para conquistar.
NÃO, NÃO PULE DA JANELA! Eu disse apenas para imaginar, não para colocar em prática! Não quero que me cacem por apologia ao suicídio.
Respire pausadamente. Isso. Agora, que já sentiste a agonia da impotência, tratarei directamente do assunto. Estudei na Escola Técnica Federal de Goiás quando muitos de vocês sequer tinham nascido. Como toda escola pública, sofria com a falta de recursos e o descaso do poder público. Mas era uma escola muito respeitada, muito concorrida. Não se aprendia apenas a matéria de sala de aula, mas também a matéria da vida. Nada segurava os alunos em sala, mas os capetinhas tinham uma boa assiduidade. Lembro que, no primeiro dia de aula, nos levaram ao auditório principal e já disseram "Não esperamos que vocês se tornem anjinhos...". E não é que meus exelentíssimos colegas levaram isso ao pé da letra!!! Vejam os apelidos: Mid-fuck, Espuminha, Cláudio Doidão, Neguinha (era branca de dar dó), Bete Ra-rá, Zoreia, Costinha, et cétera. Imaginem o que essa trupe aprontava, com esses singelos cognomes. Mas eles produziam, ah, se produziam! o professor Adolfo só perdia em rigidez para um aluno, mas me colocar como coordenador seria transformar o curso de mecânica em um campo de concentração. Não só a minha turma, como as demais e até pais de alunos, todos tinham um zelo primeiromundista por aquela escola. Eu deixava, com freqüência, a mochila aberta, em um dos bancos do pátio principal, à sombra da imensa gameleira, e ia almoçar, na volta estava tudo lá, do jeito que tinha deixado. Era comum duas turmar de cursos diferentes encherem uma mesma sala, para aprender matérias comuns.
Foi, aliás, nessa escola que conheci a irmã mais velha que me foi negada: Maria Cristina, que mereceu minhas citações em um texto lá em baixo. Era uma segunda casa. Greves eram raras e duravam pouco. Eu cheguei a trabalhar na bilbioteca, da qual fiz muito bom uso pelos dezoito meses em que lá actuei. E a merenda? Rapaz! Aquilo era uma refeição decente!
Mas a roda não pára. Muitas vezes o que parece ser uma benece é, na realidade, uma penalidade. Foi "promovida" a Centro Federal de Educação Tecnológica. Foi um marco. Eu esperava sinceramente que melhorasse muito o já excelente nível, que deixava escolas particulares tradicionais babando de inveja.
Hoje, com a autoridade de quem conheceu o auge, eu me entristeço com o que vejo, quando vou visitar amigos e levar o lanche de uma cabeçuda teimosa que não come, sob o pretexto de estar trabalhando. Saco vazio não pára em pé.
As greves já são tão banais, que muitos se perguntam se ela já acabou ou se já começou outra. Já encontrei uma pia entupida por algo que me recuso, por respeito aos leitores, a descrever aqui. Há agora uma certa burocracia para se entrar que, conforme constactei, não ajudou em nada na segurança, só atrapalhando quem não tem más intenções.
Merenda? Que merenda? Quem quiser que compre. Que? Os impostos já pagaram? Ra, ra, ra. Don Fernandenrique achava que não e cortou. Cada um por si e Deus contra todos, foi o lema que ele implementou, com sucesso, na saudosa Escola Técnica.
E os alunos? Pelas barbas de Moisés! Que seu cajado caia nas cabeças dos responsáveis! Uma instituição de ensino pode pecar em tudo, exceto no corpo discente. Pois é justamente aí que mais peca. Ou quem vocês pensam que entupiu aquela pia? Que arrancou torneiras, que ignora a lixeira selectiva a menos de meio metro, que torce por mais greves? Lembrando do Siron, me dá pena de ver aquelas colunas arqueadas. Lembrando do Jorge, aquilo parece ter se transformado em um berçário. Lembrando da Elisângela (uma das mulheres mais elegantes que já conheci) aquilo parece um desfile de cestos de roupa suja. Lembrando da Semíramis, todas aquelas meninas parecem lazagna sem molho. É triste! Salvo algumas excessões, e comparando com as turmas de 1989 até 1996, eles parecem não querer nada com nada! Nem mesmo para os próprios interesses, como festinha de colação de grau, ou semelhantes.
Meu amigo João costuma dizer "Crianças, crianças, aprendam com o titio aqui...", pois me sinto como ele. Eu entro na CAE e só olho para fora para ver a vegetação, que ainda resiste ao vandalismo, pois a chance de encontrar um aluno bem disposto e com um vocabulário não muito contaminado por modismos, é quase nula. Encontrar uma Fabíola ou um Dalcin é utopia.
Lembro que foi por falta de dinheiro que Marcelo e eu não construímos um carro, ainda assim continuávamos a pesquisar, mesmo assim os outros também continuavam a pesquisar. Os professores levavam isso em conta, estejam certos. Meus amigos, alguns de nós chegavam a feqüentar as aulas de recuperação, ainda que tivessem passado directo, para reforçar o conteúdo.
Não éramos anjinhos. Muitos eram a personificação do Cão! Mas não eram dignos de pena. Não davam a mínima para os radicalismos do grêmio, nem para os prognósticos pessimistas. Andava-se de um lado para o outro para fazer alguma coisa. Houve época em que eu ficava, mesmo depois de findado o contracto, horas por dia na biblioteca, estudando. Pois a patota se dava ao trabalho de me procurar para estudar ou tirar dúvidas. Hoje a biblioteca é outra, em frente à antiga, e em todas as vezes que fui, a vi quase vazia. Talvez a pesquisa pela internet tenha substituído o livro. Provavelmente substituiu. Mas esse tio aqui vai dizer uma coisa, o livro é muito diferente. Ele atiça outros sentidos. O tato age com a visão e, principalmente, não dá pau. O raciocínio passa a seguir uma ordem mais sólida e o aprendizado não se torna uma reles memorização.
Se os próprios alunos parecem estar se lixando para os destinos da escola, o que podem fazer professores e servidores? Greve? Parece ser justamente o que eles querem. Se antes precisávamos pedir que os alunos baixassem o tom de voz, no pátio, hoje precisamos procurar algum que não esteja à porta da escola, cabulando aula. Da última vez em que lá estive, pensei que estivessem de greve. Vi tão poucos alunos que me assustei.
A todos vós, que quereis ver o ensino público (ou mesmo privado) vingar, eis o que vos digo: sejais bons alunos e bons estudantes. Um bom aluno reverte facilmente a má fama de uma instituição, o oposto também é verdadeiro. Não sei se o Cefet vai durar muito tempo como instituição respeitada e paradigma de ensino, mas tenho certeza de duas coisas: do jeito que está, é melhor fechar e recomeçar do zero; alguém vai ler este texto e me xingar até a sétima encarnação. Mas tenho uma coisa a meu favor, eu sei do que estou falando. Não ouvi falar, eu vivi e posso fazer uma comparação sem ser leviano. Como disse no começo, sou mais severo do que os professores mais temidos, mas por isso mesmo tenho senso crítico aguçado e noção de realidade para dizer tudo o que eu disse. Lamento se isso machuca alguém. A mim ferem muito mais as doces lembranças, que se contrapõe ao presente amargo e indigesto, do que minhas palavras aos vossos orgulhos.

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O próximo texto será uma onirisséia, pos isso vai uma dica da Mestra Eddie Van Feu: "Se você sonha que está pelado, comendo banana, sentado na mesa do escritótio, não é premonição, é indigestão".

24/05/2007

ONIRAUTAS 1 - A onirisséia começa



Este é o primeiro de uma série de não sei quantos textos a respeito dos sonhos. Uma homenagem à minha amiga Audrey, a flor miquenta a quem dedico também um abraço garibaldico de pescoço beeeem longo e meias bem coloridas.


Eu disse que não sei (e não mesmo) o quanto renderá a série por um simples motivo: estarei falando do que o ser humano tem de mais íntimo. Tão íntimo que nem mesmo ele sabe tudo a respeito. Ninguém se conhece totalmente. Por isso mesmo o mundo onírico é tão importante.

Provavelmente também haverão textos alheios entre cada onirisséia, pois o material confiável é difícil de se conseguir e organizar. Vamos lá.


Quando falamos em sonhos, de imediato vem à mente uma imagem surreal, completamente absurda, mas que não estranhamos nem um pouco. Mas se essa mesma imagem se der em estado vígil, dá pano para manga nos noticiários durante um ano inteiro, sem precisar acontecer mais nada. Ou vai dizer que ver Elvis de pijama, conversando com um elefante alado, no porta-malas de um Fusca de quatro portas seria banal?

Mais ou menos como uma mãe achar lindo seu pimpolho soltar os palavrões que acabou de ouvir na novela das sete, mas se descabelar se fizer o mesmo no escritório, diante do chefe. Ela acha lindo de verdade o petiz expandir seu vocabulário, mas tem muito medo do que ele possa dizer no "mundo (nem tanto, vai) sério" dos adultos. As pessoas tendem a reprimir, em vez de conhecer e/ou corrigir uma característica não normatipada. Geralmente são os que mais mimam seus filhos os que menos toleram filhos alheios.

Agora vamos estudar o caso: Zezinho começa a conhecer as palavras, mas não necessariamente seus significados, ainda assim tasca a dizer "Mi dá a bunda" ou "Papai viado". Reação mais comum: A - em casa é enfiar um sabonete na boca dele e rir do que foi dito; B - na rua é dar-lhe um tapa na boca e esconder a cara; C - no trabalho é redigir o próprio testamento e encomendar uma arma. O estranho é que raramente alguém se preocupa em saber realmente como a criança aprendeu aquilo. Posso garantir que palavrão não precisa ser ensinado. Dizem que criança é para ser vista e não ouvida, adoram uma criança activa, mas querem que as suas fiquem como se fossem estátuas, enfim. Fazem tudo, menos resolver o problema na raiz.


Da mesma forma se lidam com os sonhos. Da mesma forma se finge que não há importância alguma, pois seria turo fruto da imaginação ou mesmo uma revisão do dia anterior. Mas vem cá, no dia anterior o indivíduo passeou em um Fusca quatro portas e levou Elvis com um elefante alado no "imenso" porta-malas? Ou qualquer coisa parecida?

Perdoem a bronca que vou dar agora; Isso é coisa de quem não estuda o assunto, não quer estudar e ainda quer impedir que os outros o façam. Por que? Não sei. Como seus sonhos, cada um é único e impadronizável. Mas há, na falta de padrões rígidos, padrões de comportamento e seqüências que podem nos orientar.

A despeito do que os mecanicistas dizem, ignorando todo e qualquer sucesso, os psicólogos conseguem grande ajuda ao lidar com os sonhos de seus pacientes, e até os próprios. Foi sonhando que se descobriu o anel que as moléculas de benzeno formam, mesmo não tendo relação formal alguma com a química orgânica, uma cobra mordendo o próprio rabo mostrou o caminho.


Outra coisa que muito se atribui aos sonhos é a premonição. A bíblia mesmo está recheada de exemplos. Não posso dizer que realmente aconteceram, muito menos posso refutar, afinal não estive lá (eu acho) e qualquer afirmativa em tom definitivo será leviana. Mas eu já tive alguns que, poucos dias ou muitos anos depois, se mostraram acertados. Não me leiam com esses olhos arregalados, vocês também têm esses tipos de sonhos, só não dão a devida atenção.


Há quem diga que sonhar é perda de tempo, mas também que os sonhos são de suma importância, no que há uma aparente contradição que elucidarei. Sonhar simplesmente é perda de tempo. É como ir à escola e ler os livros, escutar o professor, ver os colegas e deixar tudo sair pelo outro ouvido. Atentar para o sonho, isso sim é importante. Meia hora de sonho consciente vale mais do que uma vida inteira de imagens esquisitas que esquecemos ao despertar. A diferença é a qualidade.

Suponhamos um garoto sonhando com Nicole Kidman. Ele não vai querer saber de mais nada além de aproveitar e se esbaldar. Mas notem: um garoto e um mulherão de primeira linha, do tipo que Hollywood há décadas não tinha nas telas. Aqui cabe a expressão "areia demais para o caminhãozinho", pode ser um aviso do subconsciente de que ele não tem a banca que alardeia, e que vai se dar mal. Nesse caso, soube que a moça tem gênio terrível. Ele pode escolher entre simplesmente babar ou aferir a estranha facilidade de acesso. Depois de acordar, passar a agir com mais cuidado e escolher melhor as palavras, pois a outra parte tem muito mais cacife.


Mas reconheçamos, é muito difícil parar um instante e pensar se aquilo é sonho ou não. Primeiro porque estamos acostumados a não questionar, aceitando tudo o que nos enfiam goela abaixo, como programas ruins, músicas ruins, políticos ruins e et céteras ruins. Segundo porque não contamos com o corpo para nos avisar que o fogo deveria queimar, que deveria haver uma aceleração, que Nicole Kidman jamais daria bola para um moleque secundarista. Terceiro porque estamos, à amiúde, tão imersos nas preocupações cotidianas, que aceitamos qualquer escape sem atentarmos para o que realmente se trata. Quarto e mais importante: somos tapados mesmo.

Certa feita sonhei com Grace Kelly. Eu era um menininho do fundamental e ela minha professora. Tudo como se fosse real, eu era comportado e distraído, ela era carinhosa e severa. Só que Princesa Grace já se descabelava com Stephanie, quando eu estudava no primário. Compreendi algum tempo mais tarde o significado, principalmente depois de conhecer um pouco sobre a princesa. Foi uma bela lição, que ainda hoje me ampara.

Sim, só sonho com mulheres lindas (quase sempre) e todas muito nitidamente, nisso não posso reclamar das lições.


Uma técnica que costuma surtir resultados, é prestar atenção ao ambiente em que se está. Experimentar texturas, pesos, consistências e evitar excesso de impressões à noite. Os telejornais vão me esculhambar se seus editores lerem isso, mas os noticiários devem ser vistos de manhã e à tarde, pois o excesso de sons e imagens pode inclusive travar até mesmo a percepção inconsciente dos sonhos. Aí, babau. Não se tem as informações nem os escapes, adeus Nicole, adeus Elvis, adeus comer chocolate e não engordar.

Com essa providência aparentemente simples, temos condições de perceber os absurdos que o mundo onírico nos apresenta para nos ligar ao subconsciente, ao mundo astral, et cétera, nos dando condições de aproveitar com plenitude tudo o que podemos. Um estudante pode inclusive revisar tudo o que viu na noite anterior à prova, sem cansaço e com muito melhores resultados. Um cientista pode rever todos os seus procedimentos e anotações, pois está tudo lá, guardado no subconsciente, pronto para ser usado.

Mas eu disse "aparentemente simples". Sabemos que as pessoas normopatizadas não aceitam ver alguém aproveitando a vida de verdade, se não for em uma boate-fachada-para-tráfico-e-prostituição. Atentar para a própria vida os faz perceber as próprias, isso quase sempre dói muito. Por isso mesmo peço que façam o que ensinei, na medida do possível e sem gerar fissões familiares.


Termino essa primeira onirisséia com um aviso: Ninguém concebe o que não conhece. Qualquer calouro de psicologia sabe disso. Então não vamos nos ridicularizar nem permitir que o façam conosco. Se nos vem à mente, é porque existe. Talvez não exactamente como foi apresentado, mas na essência é aquilo mesmo. Pois o subconsciente nos dá a informação do modo como melhor podemos compreender. Ele é o nosso Eu que nos conhece melhor do que nós mesmos.

23/04/2007

Eu Sou Tio


Não muito, mas sou. Na transição dos meus trinta e quatro para trinta e cinco anos, tenho plena consciência de que não sou mais um garoto, que minha idade não vai retroagir se eu aparecer de (cruz e credo!!!) bermudão abajour-de-quenga, camisetão de algodão vagabundo que custou um rin e uma córnea, boné malaco-da-disney e tênis chamada-para-o-circo. Se me virem assim, chamem a polícia, fui assaltado.

Não estou aqui criticando o estilo de ninguém, afinal gosto não se discute, se lamenta e respeita. Também não venho por estas linhas fazer uma sátira aos quarentões e cinqüentões que cismam em enfiar manteiga quente na boca, só para falar com sotaque as gírias dessa garotada. Só respeitem minhas "pharmácias" e meus "oras bolas".

Como diz o ditado: se bebe, o problema é teu; se bebe e dirige, o problema é nosso. Respeito os gostos alheios, é muito pedir o mesmo? Eu já disse por cá como costumo me vestir, mas vou refrescar as memórias e me apresentar aos novatos, sejam estes bem-vindos.

Calças de cós alto, o que os detractores chamam de "santropeito", eu francamente não tenho nenhum gosto por exibir minha cueca em público. Camisa polo em malha piquet ou de abotoar feita sob medida, sempre pelo Zé, desde então eu nunca mais fiquei com aspecto de "o defunto era maior", por falta de número adequado ao meu biotipo. Sapatos de amarrar e mocassim, sempre pretos, nada de "sapatênis" que a sola é metade do aspecto visual do sapato; sapato peludo também não, faça-me o favor!

Pois bem, caras leitoras e caros leitores, eu não fico impune por esse aspecto de "tiozão". Com grande freqüência me são dirigidas críticas sem argumentos por eu não parecer o adolescente que não sou há quase vinte anos. Eu ao menos aprendi a ouvir e deixar sair pelo outro ouvido, mas já precisei dar limites para pessoas que queriam me comprar uma fantasia de jovem, na esperança de que eu use se já estiver comprado. Precisei avisar que só usaria como pano para tirar o pó dos móveis, se muito, dependendo da estampa até arranha o verniz. Como eu passo, outros também passam, e nem todos tiveram o privilégio de receber a formação de que disponho e partem para a agressão, felizmente quase sempre verbal.

A Nissan lançou um carro "novo" com faróis esbugalhados e linhas imitando toscamente o Corolla, o gingle foi para mim a gota d'água: "Não tem cara de tiozão". Ma peraí! Qual o problema em parecer maduro? Sejamos sinceros. Minha saúde não vai melhorar nem um pouco se eu for a shows de rock... se é que ainda existe rock. Minha situação financeira não sairá do vermelho se eu trocar o Zé pelas marcas de nomes sonoros e sem nenhum conteúdo, muito pelo contrário. Não ficarei nem um pouco mais feliz se começar a deteriorar a minha audição e a dos vizinhos, aí é que parecerei velho mesmo, não ouvindo o outro se esguelando para falar comigo. Me envolver com garotinhas, além de não me interessar, pode dar cadeia, ca-de-i-a.

Eu me sinto discriminado. Não são os adolescentes que compram os carros, são os adultos, os tios e tias. Eles não pagam, em sua maioria, a conta do supermercado, são seus pais. Os mesmos que, aliás, passam o cartão para eles terem suas roupas estranhas. A fonte do dinheiro é o adulto. Pois o adulto está sendo negligenciado! Pior: acredita que isso é natural. Todos lamentam o fim do Opala (aos suspiros) e o enfeiamento do Vectra, mas em vez de pressionar, compram caladinhos; apesar de sentirem a nítida inferioridade da suspensão em relação ao Vectra antigo, logo na primeira curva. Quando converso com eles, sempre dizem que preferem os Tiomóveis, mas têm medo de parecerem velhos, ou contrariar os filhos, ou ficar de fora (???) et cétera.

À margem de todas as virtudes da fase, o adolescente é um consumista quase irracional, desde que o producto em questão seja instável como sua condição hormonal. Quanto mais agressivo, mais parece estar agindo, maior a impressão de impulsividade, mais parece entender suas cabecinhas que nem formadas estão ainda. Então eles compram, dane-se o orçamento da família, as menininhas que cabulam aula à porta do colégio vão "gostar".

Querem productos para eles, é justo. Mas, e nós, tios e tias deste mundo de expiações? Nós que assumimos sem medo os prós e contras do passar dos anos, que sabemos a hora de esperar e a hora de agir, que não estamos preocupados em exibir um carro horroroso como se fosse um falo, que causamos menos acidentes e oneramos menos a previdência social nas macas da UTI? Como ficamos? Podem-se encomendar roupas aos alfaiates que ainda resistem, mas tevê,. carro, aparelho de som, telephones celulares, revistas e programas de televisão são muito mais difíceis de se fazer por encomenda. Seria batuta, mas alguém aí se dispõe a comprar dez mil carros, para justificar a produção de um modelo que as fábricas se recusam a fazer, por ter "cara de tiozão"?

Já peguei amigos falando acidamente mal de gente que se veste como eu, sem saber que eu estava por perto. É impressionante! Dizem-se modernos e abertos à diversidade, mas se uma moça aparecer vestida em um modelito dos anos 1960, por exemplo, a farão passar por ridículo. Não haverá argumentação, simplesmente vão humilhá-la até ela chorar, apenas por estar diferente do que eles usam, ainda que não gostem realmente. Teu filho reclama justamente disso? Pois experimente usar calças com suspensórios e chapéu para ver como ele age, espero que seja menos intolerante do que a média que já conheci. Claro que depois aquele grupo de "amigos" vai se arrepender e tentar remendar a seda rasgada, mas então o estrago causado pelos exibidores de cofrinhos já foi feito.
Modernos somos nós, que trabalhamos pela redemocratização do país, contra a guerra do Vietnã, que tentamos a todo custo limpar o congresso nacional e hoje vemos tudo cair por terra. Não temos para quem passar o bastão. O que fizemos foi a longuíssimo prazo, muitas vezes coisa de uma vida inteira, mas os fantasiados de jovens querem tudo agora, senão não serve, ou parecerão tios.
Dê uma olhada lá em cima. Sejamos sinceros! Que linhas mais agradáveis! Exala confiabilidade e conforto. Tudo muito bem desenhado, tudo bem proporcionado, um equilíbrio de volumes que beira a perfeição. Faróis novos e uma frente em cunha não lhe estragariam o visual, se mantidas as proporções. Mas é carro de "tiozão". Sabem quem é o tiozão? Aquele que não esconde seus fios brancos, mas está a qualquer momento disponível para levar alguém ao hospital; que não vê nada demais naquela modelo brasileira cujo nome me foge agora, mas tem paciência para ouvir a menina desabafar sem tentar parecer seu namorado; aquele que ninguém quer ser ou correr o risco de verem em sua companhia, mas na hora do aperto, aha, é o primeiro nome a ser lembrado. Eu sou tiozão. Eu sou tiozão. Eu sou tiozão.
Estou parecendo um velho (tire os pés da mesa, moleque) rabugento. Mas não há outra forma eficiente e não agressiva de exprimir o que tenho a dizer sobre o tema. Aprendi, no longo processo de tioficação, que não preciso dar uma opinião se ela não fizer falta, posso escolher me calar. Pois não falo aos meus amigos o quanto suas roupas são deprimentes e feias. O quanto suas posturas lembram um orangotango de discoteca. O quanto desprezo os artistas efêmeros e sem compostura que idolatram. Prefiro não lhes falar, ao menos directa e claramente, porque eles mesmos me mostraram o quanto isso machuca.
Antigamente não havia muita opção de productos para jovens, mas porque o filão não tinha sido descoberto. Os não tão jovens continuam existindo e deixaram de ser atendidos. Raios e trovões! Por acaso teremos que abandonar tudo, deixando o "mercado" passar fome, para fundar sociedades alternativas de tios noutras paragens? Chega a ser ridículo eu ter que pedir que façam algo para eu comprar. Como não sou o único nessa situação exdrúxula, acredito que muito mais gente compartilha de minha posição e de minha indignação. Os outros podem continuar a comprar coisas feias e negar suas idades, sem problemas (para mim), só quero poder estar em uma roda sem ser interrompido pelas grosserias adolescentescas do senhor tintura-na-barba, só porque gosto de coisas que não querem me oferecer e me recuso a fazer a troca. Eu é que fico sem, se eu não me importo, eles não deveriam se preocupar.
Não tenho medo de ser tiozão, cabelo branco e voz de caminhão. Se não dão o que quero eu não compro nem por Talião.
Tá, ficou tosco, mas é isso o que eu penso e é assim que me comporto. Importa que passou a mensagem. Ah, ia me esquecendo de contar as caras que fazem quando tiro minha caneta do bolso, não só por estar no bolso, mas por ser tinteiro. Aliás, tenho uma coleção funcional delas, sessenta em condições de uso. Imaginem alguém vendo a própria tataravó, em trajes de época, ao portão da casa. É mais ou menos isso: Logo alguém começa a ter vergonha da ancestral que se veste "daquele jeito", que fala "daquele jeito", que se comporta "daquele jeito", que gosta de "coisa de véi". É uma pessoa amada na família, mas não se pensa duas vezes antes de faltar com o devido respeito. Vai se arrepender depois, mas a impulsividade que os "não tios" tanto glorificam precipita tudo.
Tias e tios do meu Brasil! Uni-vos. Não deixai que a intolerância dos novos velhos estraguem vossas vidas. Sejam o que são. Não se envergonhem de não parecerem mais um urso de pelúcia, nem de terem um no quarto. Estou falando sério, patota, as coisas só mudam se fincarmos pé em nossas posições. Se não gostam, não comprem nem usem. Se gostam, não tenham medo de falar bem. A sua estética é parte de sua personalidade, não abra mão dela, nem de suas aspirações, nem de coisa alguma que lhe for realmente cara. Para nós, o estilo não é apenas o que aparenta, cada cinto, cada broche, cada detalhe daquela jóia tem um significado. Nós temos um significado para o que fazemos. Nossas coisas têm conteúdo, um motivo plausível para continuarem em nossas casas. Prestem bem atenção à riqueza que o jeito tio de ser oferece. E quando marcarem o próximo baile de época, me chamem, estou enferrujado e preciso dançar um pouco.

04/04/2007

ALEMANHA


Gosto da Alemanha. Nunca estive lá (nesta encarnação) mas gosto muito da Alemanha.

Poderia dizer que gosto e pronto, não meta o bedelho e vá catar coquinho. Mas não sou um menino mal educado, só levará um minutinho e já explicarei a vocês, prestem atenção.


Os alemães são um povo muito singular, que preza a boa mesa e a disciplina, as grandes festas comunitárias e o trabalho árduo. Mas engana-se quem cultiva o estereótipo do louro grande e barrigudo que só come joelho de porco e couve passada.

A variedade de doces e carnes da culinária alemã é estonteante, trata-se de uma dieta altamente calórica e saborosa. Encher lingüiça e salsicha, para eles, não é gastar tempo,é uma tradição. Os salsichões são uma instituição cultural desse multipovo, tanto quanto o canto alegre e descontraído dos músicos folclóricos. Eles levam muito à sério sua diversão, hora de trabalhar é hora de trabalhar, hora de se divertir é para esquecer o resto. Meio prático demais para a cultura latina, talvez, mas tem funcionado há séculos. Por cá, se costuma perguntar "E o relatório, aprovaram?" e ouvir "Não sei, vou ficar de cabeça quente até segunda-feira". Diga isso a um de nossos irmãos de sotaque engraçado e correrás o risco de ter um salsichão enfiado pela goela. É hora de festa, caramba, deixe o trabalho para os garçons!

Ah, um detalhe: Se prometer, cumpra. Se disseres "passo lá", te cobram dia, hora e teu menu preferido. Escolha as palavras, quando estiver falando com um alemão. Aliás, falar com eles em português é muito mais fácil. Eles aprendem o nosso idioma melhor do que nós o deles. Não por acaso, em muitas cidades do sul se ensinam às crianças primeiro o alemão, depois o português. Xenophobia? Racismo? Metidice à besta? Não. Definitivamente não. O alemão, em suas muitas variantes, é uma língua muito musical e poética, com uma sonoridade muito forte e até contagiante. Quem aprende alemão (um dia, quem sabe) consegue perceber melhor as nuances phonéticas da fala, por isso é muito mais fácil aprender alemão e depois o português, ou qualquer outro idioma, do que o contrário. E dialeto musicado é com os renanos que, segundo os demais alemães, não falam, cantam. Uma boa caricatura é um renano a falar e uma orquestra aparecer para fazer o acompanhamento.

Os alemães são cientes, como nenhum outro povo, de sua unidade. Mas passar de um Estado para o outro é como atravessar uma fronteira nacional, tamanha a diferença entre o dialeto local e o alemão-padrão. Para as crianças então, a dificuldade é imensa, nem parece que falam a mesma língua. Mas na hora de trabalhar, aha, não há diferença regional que se imponha. A boa e velha determinação teutônica toma conta de tudo e nada os faz parar até que tenham atingido seus objetivos. E depois vão à farra, é claro.

Ainda hoje se ouvem comentários maldosos e ignorantes, evocando o fantasma nazista para rotular a Alemanha. Eles estão plenamente cientes dos erros que cometeram. Talvez cientes demais. Eles pagaram caríssimo. Tiveram sua pátria (que para eles é quase uma extensão do corpo) dividida durante a guerra fria, viram impotentes, atrocidades sendo cometidas contra quem tentasse transpor o muro maldito. Famílias foram divididas por décadas. Eles têm sentimentos e sofreram muito com esse castigo. A Alemanha se envergonha do que fez. Ninguém precisa lembrá-la disso, os monumentos e os livros de história não deixam esquecer. Ah, os neonazistas por lá não são "filhos de gente boa", são marginais.

Aos poucos eles estão aprendendo a não levar a si mesmos tão à sério, graças em boa parte aos brasileiros que foram passar férias ou estudar... E ficaram. Já me cansei de ouvir histórias de brasileiros solteiros que foram só para passar férias, conheceram alguém e só voltam para passar férias. Pensam o quê? Com aquela pose toda eles parecem não oferecer risco, mas quando vê, já te levaram ao altar. Muito cuidado com esses alemães, principalmente com as alemãs. São todos muito educados, muito bem arrumadinhos, mas não têm piedade das mamãezinhas brasileiras. Se bem que, re, re, re, também temos essa "má fama".

Aliás, esse é um ponto importante. Poucos países recebem o brasileiro tão bem quanto a Alemanha. Infelizmente países que falam o português não nos recebem tão bem, há relatos de discriminação explícita, como se ainda fôssemos colônia. Entrar na Europa pela Alemanha é entrar de primeira classe, não só por evitar constrangimentos desnecessários, como pela comodidade de se estar em um país central, com uma infra-estrutura de se tirar o chapéu e um litoral respeitável. Descendo em Berlim ou Frankfurt, fica prático conhecer o continente inteiro. Mas vale a pena conhecer o anfitrião primeiro.

A indústria germânica é conhecida pela excelência de sua engenharia. Poderiam muito bem, com a tecnologia de que dispõe, vender quiquilharias descartáveis para o mundo inteiro. Mas há um sentimento de orgulho nacional que os impede de escravizar o próprio povo. Se vires um producto com a inscrição "made in germany", saiba que a longevidade, a confiabilidade e o salário justo estão embutidos no preço. Seja um brinquedo ou um automóvel, se é alemão, pode levar tranqüilamente, daqui a seis meses não terás que comprar outro.

Já falei nesta página sobre minha preferência pela qualidade, ainda que me custe mais. Também já citei os motivos que me levam a pagar mais caro por uma maçã feinha e discreta. Na realidade, eles cobram caro pelo que seria caríssimo, pois estão acostumados a fazer muito bem feito. Deus sabe o que eles seriam capazes de fazer se tivessem acesso aos nossos recursos. Faço uma idéia. Por isso mesmo sou a favor de uma reaproximação séria do Brasil com a Alemanha. Não essas viagenzinhas tímidas e acanhadas que nossos últimos presidentes têm feito à Berlim. Quem conhece a jornalista Córa Ronái e seu maravilhoso blog sabe o quanto aquela terra e aquela gente são encantadoras. É tudo muito organizado, mas eles carecem de expontâneidade, algo que nós temos de sobra. Ambos os povos são muito mais parecidos do que se imagina. Ambos trabalham mais do que pensam e acham que deveriam trabalhar mais. A despeito do esterótipo injusto, um brasileiro não recusa um bico extra para fazer seu pé de meia. Quem não se lembra do maledito risco de apagão? Foi a coisa ficar realmente séria e a adesão foi maciça e imediata. Basta o executivo falar com seriedade, respeitando nossas inteligências, que a adesão é instantânea. O presidente, aliás, deveria parar de correr atrás de quem promete uma gorjeta de imediato, mas quer nos ver pelas costas logo adiante. Os alemães já deram mostras de seriedade e igualdade de condições que outros nem cogitaram. Eles não aparecem com sorrisos prontos e prometendo pechinchas. Quando aparecem, eles querem negociar, trabalhar conosco. A primeira coisa que deveria ser feita é aproveitar a imensa comunidade germânica que há, desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo, e promover não um intercâmbio cultural, não um turismo para eles verem como seus avós falavam e se vestiam, mas uma interação entre os dois povos. Havendo interação entre os povos (na qual o mercosul fracassou, me desculpem) as empresas logo se interessam, seguidas pelos governos e pronto. Não é algo com o qual se gastaria os tubos. Em vez de levar cinzeiros de pedra-sabão para vender em uma feira internacional, acentuando a imagem negativa que se tem de nós, que exibam informações sérias e em profusão, destacando os pontos de coincidência e os pontos onde um país complementa o outro.

Sei que corro o risco de ser taxado de racista, afinal ficou politicamente incorrecto dizer que uma alemã ou uma austríaca (como Hedy Lamarr) é bonita. Já sou olhado torto por não aderir à neurose vigente. Mas, quer saber? Vão catar coquinho e colar de volta ao coqueiro. Estreitar laços com os alemães é algo que deveria ter sido feito desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ambos teríamos nos ajudado mutuamente e muita dificuldade poderia ter sido evitada para os dois lados. O brasileiro descrê do trabalho honesto porque não o vê rendendo os devidos louros, mas vê gente ignorante e portadora de muitos vícios de caráter ganhando dinheiro sem mover uma palha. Os alemães são um bom exemplo, como nós somos um excelente exemplo de tenacidade e desenvolvimento espiritual, este que tanta falta faz à Europa como um todo.

Já falei muito. Mas creiam, não falei nem um ponto do texto que o tema merece. Porque se há duas nações para as quais, juntas, não haveriam limites, são Alemanha e Brasil, na ordem alphabética. Agora volta lá para cima e entre na festa.