06/07/2007

Onirautas II, A Redescoberta do Onírico


Mais uma onirisséia, novamente dedicada à Audrey, cujas peripécias parecem mesmo saídas do mais surreal devaneio.





Quanto sofrimento vão seria evitado se a psicoterapia fosse mais aplicada? Se os sonhos fossem levados mais à sério? Se em vez de desprezar os sentimentos dos adultos, estes fossem estimulados a aprender a conviver com eles?


Quase impossível calcular, tanto quanto a fortuna que as pharmoquímicas perderiam, pois haveria muito menos viciados em psicotrópicos, que chegam a cometer qualquer atrocidade para se isolarem dos sentimentos que os assustam. Subverteram Descartes.





Houve no século XIX um homem que se atreveu a dizer que as pessoas não são só matéria, que há um factor a mais. Sigmund Freud era um cientista respeitado no meio acadêmico. Médico experiente, daqueles que percebem quando o paciente mente ou não se lembra de todos os sintomas que sente. Conversando com eles, Freud percebeu que boa parte dos problemas comportamentais e de saúde nada tinham de causas orgânicas, mas eram uma espécie de bloqueios não físicos que impediam as pessoas de se realizarem. Muita gente ficou de orelha em pé ao saber desses estudos, mas cabelos arrepiaram mesmo quando ele começou a investigar os sonhos de seus pacientes, talvez até os próprios. Nisso (re)descobriu que o subconsciente manda mensagens continuamente para as pessoas, mas estas estão ocupadas demais tentando ser sérias, adultas e socialmente respeitadas. Se hoje isso cobra um preço alto, imagine na época em que uma mulher mostrar os pés era um escândalo! Pois escândalo maior Freud produziu depois, se atrevendo a falar de sexo na frente dos cientistas sérios e respeitáveis de sua época. Ele conseguiu ligar as travas e todo tipo de anseios à repressão sexual. Mais: disse que bebês têm sexualidade! Horror! Horror! Se nem os pais têm sexo, como os santos rebentos teriam? Mas ele estava aí para a celeuma? Não, não estava. Convenceu-se de que precisava ir adiante e foi, o cabeça dura.


Não demorou e conseguiu muitos discípulos, entre eles Carl Gustav Jung. Jung e Freud trocaram correspondências aos baldes, os carteiros conseguiram justificar seus salários só com o trabalho que esses dois davam. Os encontros eram férteis para ambas as partes. Mas o que era bom durou pouco, Jung desconfiava que algo tão complexo como a mente humana não poderia ser travada só por questões sexuais. Houve a fissão. A cabeça dura, antes um aliado, impedia Freud de raciocinar livremente e aceitar as idéias de Jung, que lhe pareciam tão ridículas quanto as próprias ainda parecem aos olhos dos céticos radicais. Jung começou a falar de inconsciente coletivo, arquétipos, jogar tarot, I-ching, et cétera. Os defensores de que o que não pode ser pesado, picotado e reproduzido em laboratório não tem o direito de existir, logo atacaram, dizendo que suas idéias eram tão absurdas que até o mestre as rejeitava. Claro que exageravam e ainda exageram, assim como não fazem a mínima questão de investigar científicamente para descobrir do que se trata.


O facto é que os tratamentos que levam o ser humano como ser humano, não como mero monte de massa biológica, funcionam. Demoram muito mais do que drogas (por isso mesmo dificilmente viciam), mas os resultados existem para quem quiser estudá-los. A banda podre das pharmoquímicas não quer, nem os orgulhosos que se iludem achando que sabem e controlam alguma coisa no mundo. O tratamento não-químico funciona, eu sou a prova viva disso.


Com certeza as obras desses dois cabeças-de-ferro inspirou o surgimento do surrealismo nas artes, que nos revelou o gênio arrogante e extremado de Salvador dali, que em suas obras nunca fez questão de esconder as conturbações de sua mente. Aliás, caso raro em que alguém viveu muito bem de sua doença.





Freud e Jung deveriam ter estudado suas diferenças, em vez de usá-las como escudos. Não se sabe onde teriam chegado se não tivessem rompido, mas estaríamos anos-luz adiante no tratamento de distúrbios mentais. Acontece que Jung nunca negou que a repressão sexual tinha forte influência no comportamento de sua época, apenas disse que não era a única coisa. Seu "pecado", talvez, tenha sido admitir a existência de coisas que o racionalismo irracional da revolução industrial jogara para debaixo do tapete. Afinal, um operário que sonha tem idéias, se tem idéias pode não aceitar a exploração selvagem, daí podem tirar suas próprias conclusões. São coisas ainda hoje taxadas de misticismos, por pessoas que se recusam a estudá-las como o fazem com as obras freudianas e junguianas. Interpretar sonhos, ler arquétipos, jogar palitinhos chineses, cartas de tarot então! Tudo aquilo cheirava a bruxaria, superstição que a "verdadeira ciência" banira e da qual as pessoas não precisavam ter medo. O medo agora eram a fome, a guerra, o extremismo religioso, mas não aquilo.


Acontece que a corrupção é racionalista, não admite a menor hipótese de que as pessoas conheçam a si mesmas, sob o risco de seu palanque ruir. Ainda hoje o ocidente reluta em aceitar o que vem funcionando há milênios no oriente. Nem vou falar em questões espirituais, dharma e karma.





Certa feita tive uma vizinha com dois filhos, um deles tinha um medo irracional de cães, mesmo os de bolso. Na realidade, bastou ver a mulher furiosa uma vez para perceber que ela se assemalhava a um cão nesse momento, e chegava a rosnar. Remédios atenuam os sintomas? Sim, atenuam. Mas o problema persistiria. O paciente ficaria dependente pelo resto da vida. $$$$$!!! Chega o momento em que nada mais funciona.


O que mais pesa contra o factor onírico é que ele leva, inexoravelmente, a uma série de conhecimentos milenares que são rejeitados pelas academias. E um conhecimento leva a outro e assim por diante.





Apesar de tudo, a redescoberta do onírico não foi freada, por mais que se tente encobrir seus benefícios e difamar seus estudiosos. E vem em excelente hora. Desde os primeiros escândalos de Freud que a humanidade vem se tornando mais imediatista e impessoal, desprezando o bem-estar e os sentimentos alheios. Não confundir respeito à privacidade com indiferença, esta tem prevalecido em um mundo voltado exclusivamente para a satisfação imediata e a comodidade. Também por isso muitos orientais não gostam do ocidente, é freqüente um árabe ou um japonês tradicional ser alvo de cochichos nos corredores das universidades, não importa o quanto sejam competentes, mentalmente abertos e dedicados às pesquisas. Não crer é diferente de respeitar, o primeiro é acessório, mas o segundo é compulsório se houver o mínimo de bom senso. Sei que isso vai destruir os sonhos (epa!) de muita gente, mas a ciência formal é machista e segregatória. É uma fogueira de vaidades como qualquer ramo onde existam prestígio e autoridade em alguma coisa. Cientista é gente. A competição é muito maior do que a cooperação, afinal é essa a "lei da seleção natural", conforme deturparam Darwin.


Ainda assim eu sonho, aprendo com os sonhos e ponho em prática, na medida do possível, o aprendido. Pois a mente não é capaz de conceber o que não conhece, qualquer psicólogo recém formado sabe disso. Tudo o que temos a aprender está no subconsciente, tudo o que existe está lá registrado, se deixarmos de arrogância e aceitarmos sua ajuda, aprenderemos não só o que buscamos, mas também o que já somos. Uhm... Meio poético, talvez por isso mesmo desagrada a quem não vê seriedade no que não tem aridez. Ainda que os trabalhos de Freud e Jung não sejam para leigos, têm sua poesia, seu encanto subjectivo e estético. Toca no fundo da Alma dando a entender que, se a química falhar, haverá esperança no subconsciente. Mesmo que não haja cura, haverá uma vida melhor e mais dígna. Pois convenhamos, há cegos que não trocam sua percepção apurada por dois olhos sãos. Muitas cegueias ópticas, antes de sua conclusão, denunciam problemas cardiovasculares e imunológicos que os tratamentos alopáticos não detectaram. Depois de uma boa terapia o paciente está pronto para viver (e não enfrentar) a vida.





Outra coisa que os sonhos nos ensinam , é que somos nós os nossos maiores inimigos, não o vizinho estranho de hábitos anormais. Isso não entra nas cabeças da maioria das pessoas, soa ilógico, tão ilógico quanto uma partícula subatômica que parece adivinhar quando queremos observá-la. Enquanto um grupo consome recursos para provar que "Deus não existe", outro crescente usa recursos nem sempre maiores para resolver os problemas da humanidade. Não conseguem explicar? Vêem se realmente funciona. Funcionou, passam a estudar o que conseguirem. É assim que age um cientista de verdade, foi assim que agiram Freud e Jung, que mesmo separados plantaram a semente de sanidade, a mesma que poderá ser a diferença entre o colapso social e a retomada do progresso e da tentativa de união mundial. Um sonho distante, mas não inacessível.





Encerro esta onirisséia dizendo que a natureza não é estúpida. Tudo o que existe é útil, ainda que seja o seu cunhado, ele pode servir de peso de papel. Sonhos criativos não existiriam se não tivessem serventia, portanto não são simplesmente reparadores cerebrais e revisores da rotina diária. Para isso bastaria atenuar a maioria das funções cerebrais, sem gastar energia na produção de imagens complexas e malucas. O que teria nos condenado à idade das cavernas pela eternidade. Por conseqüência, nos privaria do que somos capazes de fazer de bom, belo e et cétera. Falei demais. Tchau.

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