29/07/2015

Alugam-se legendas

  Ei, você! Sim, você mesmo! Cansado de ser um total inepto, de ter sua mentalidade esdrúxula contestada só por disseminar suas idéias estapafúrdias? Sonha em ter vencimentos gordos, incompatíveis com seu intelecto desprezível? Em ser chamado de doutor mesmo mal sabendo desenhar seu nome? Em algum dia ter poder quase ilimitado sobre a vida dos outros, mesmo sendo incompetente até para gerir a própria? NÓS TEMOS A SOLUÇÃO!

  Alugue uma legenda! Candidate-se e tenha a chance de mamar no erário mesmo sem ser eleito! Não se importe com as dívidas de campanha, de um jeito ou de outro é o eleitor otário quem vai pagar.

  Não importa a sua ideologia, sua orientação sexual, sua religião, seus planos de vida ou mesmo a total ausência de tudo isso, nós temos a legenda que cabe no seu bolso e na sua capacidade em se fingir de homem honrado! Facilitamos tudo no cartão de crédito, no carnê, aceitamos carro, imóvel, jóias e tudo o que puder ser transformado em dólares em paraísos fiscais.

  Aproveite a oportunidade de ser catapultado pela votação expressiva a pseudocelebridades que temos de monte em nossos partidos de aluguel. Com a lei do quociente eleitoral, (como aqui) basta um deles atingir uma votação mínima e você terá a chance de alçar seu primeiro vôo político, mesmo que nem você tenha votado em si mesmo! Mesmo que sua votação seja negativa, os seus segundos no horário eleitoral gratuito (uma ova, é pago pelo erário) já valerão sua participação.

  Lei? Que lei? Nós as fizemos, nós sabemos como contorná-las! Ninguém precisa ficar sabendo! Não perca seu tempo trabalhando honestamente, nós mesmos fizemos por onde para isso não compensar neste país, ou seja, você não tem escolha! A não ser de legenda, é claro! Temos dezenas, todas com discursos que agradam em cheio sua clientela, todas elas em condições de te dar o sonhado certificado de ficha limpa, e a chance de ser um laranja aprendiz de um cacique com ficha mais suja do que pau de galinheiro.

  Não se preocupe com seus discursos, está tudo incluído no preço! Fazemos algo compatível com o seu nível, por mais baixo ou insignificante que seja, mas sem fazê-lo parecer o completo idiota que realmente é. Nós te faremos falar directo ao coração e às cabeças vazias do mercado consumidor a quem vai vender sonhos que JAMAIS serão entregues... talvez até sejam, em pequenas porções, a dois ou três mortos de fome, para divulgação na mídia. A verba de gabinete dá e sobra para isso. Teores homophopbicos, misóginos, eterophobicos, xenophobicos, de apologia às drogas e tudo o que é ilegal não são problema, te ensinaremos a fazer-se de vítima e sair como perseguido político por expressar sua livre express]ao de acordo com os dispostos na carta magna de 1988 e suas emendas, com base na declaração universal dos direitos humanos e amparado pelos preceitos bíblicos; Discursos pra enrolar e enganar são nossa especialidade.

  E por falar em discursos, não tema por sua inexperiência! Para isso serve a tecnologia! Com pontos electrônicos, você poderá fingir que está ensaiando seu discurso e o terá em tempo real durante o comício. Simpatizantes com sua cara feia em camisetas, para fazer número e aplausos estão incluídos no preço.

  Tenha também a oportunidade de ter sua photo digitalizada e montada em santinhos coletivos, com políticos tradicionais com eleitorado consolidado. Sua cara de imbecil não é problema, foi para isso que inventaram o editor de imagens. Ainda temos a opção de photos em monumentos públicos, onde o discreto merchandising de nossos corruptores dará direito a pose exclusiva. Insiste em aparecer com um figurão e o monumento? Melhor ainda! sua imagem vai infestar a cidade e demorará muito a decidirem a quem culpar por isso., talvez mais do que o prazo do seu primeiro mandato. De um modo ou de outro, você já terá eleitorado e sempre poderá se abrigar no meio dos trouxas.

  Por um módico acréscimo, que dividimos em prestações confortáveis, forjamos factos heroicos e dramas comoventes com base da sua insignificante e tediosa história de vida... Se é que podemos chamar isso de vida. Os escândalos podem facilmente ser convertidos em vida agitada e plena, capacitante à lida com a juventude e toda a baboseira que temos de sobra em nosso cabedal. frases banais com abordagens dramáticas, efeitos de luz e sombras, temos tudo para até você parecer saber do que fala.

  Os jingles mais grudentos e irritantes estão praticamente prontos, só esperando para serem adaptados ao seu nome de guerra. Nenhum direito autoral precisará ser pago, e se cobrarem não pagaremos. O aluguel inclui a adaptação de músicas com alto apelo popular em letras que, acredite, conseguimos fazer piores do que as originais. Temos candidatos fajutos para entulhar o tribunal eleitoral justamente para fazer suas infrações parecerem pequenas e insuficientes para merecerem sua atenção, em comparação com as atrocidades que nossos fajutos farão durante o pleito.

  E ATENÇÃO PARA A MAIOR PROMOÇÃO DA HISTÓRIA! Se você concordar em levar a culpa pelas danuras de um dos nossos caciques, sua campanha pode sair absolutamente de graça! ISSO MESMO, DE GRAÇA, porque quem vai pagar é o erário e a classe média não sabe que impostos paga, então suas reclamações legítimas serão rechaçadas pelas nossas direita e esquerda de redes sociais. E tem mais! se sua candidatura for impugnada, você receberá um alto cargo como homem de confiança de uma de nossas múmias políticas, ganhando os tubos para fazer porcaria nenhuma pelo povo, e ainda voltar como herói nas próximas eleições!

  Então, o que está esperando, seu paspalho? Filie-se agora mesmo! Não se preocupe com as legendas grandes e tradicionais, é de baixo que se começa, inclusive nos métodos... E você realmente acredita que há diferença entre partidos? Que nossas legendas de aluguel não são meros puxadinhos para caixa dois de outros? Pois é! Se suas ambições são tão altas quanto sua moral for baixa, então você é um de nós! Sigam-nos os maus!

17/07/2015

Quinhentos anos de conversa

  O céu tomado de nuvens densas, de horizonte a horizonte, impedia qualquer orientação visual. Se dependessem da luz para enxergar, estariam completamente cegos naquele lugar. A escuridão e os ventos fortes baixavam tanto a temperatura, que só por debaixo do espesso gelo a água conseguia correr. Avistam sua figura no cume daquela montanha, um pensamento quase obsessivo nos últimos anos...

- Vamos para casa.
- Estou em casa.
- Aqui não é lugar para você.
- Meu lugar é onde me respeitarem.
- Quem te respeita aqui, neste deserto gélido?
- A solidão sozinha me respeita mais do que todos durante a vida inteira.

  Novamente aquela queixa. Dez anos de solidão não bastaram, naquele exílio voluntário, para que esquecesse das falhas que caíram sobre seus ombros...

- Você poderia ter ignorado, era sua escolha.
- Queriam que eu fingisse alegria com uma lâmina rasgando minha carne?
- Então é isso?
- Isso pode ser reparado.
- Por que não repararam?
- Ainda não era hora. Não se poderiam tolher suas oportunidades de então.
- As oportunidades que me interessavam foram tolhidas desde o começo. Antibióticos não fazem efeito em tecido necrosado. Se insistem em colocar seu tempo ridículo sobre as necessidades lineares, então não queriam realmente reparar cousa alguma.
- Você teve oportunidades.
- Para o que não presta. Só para o que não presta. Baixar a cabeça aos quadrúpedes nunca me conveio. Alegria na marra não existe.
- Vai continuar aqui?
- A quem isso importa?
- Você sabe, não faça injustiça.
- Se a alguém importou, por que não houve providência? Se alguém se importou, a este também não foi permitido agir segundo sua consciência, então tudo foi mais grave do que sei. Deixem-me, daqui não atrapalho vocês.

  A frustração é acrescida pelo pedido não atendido de bem quistos e preciosos membros. A mágoa ainda era visível nos tons ocres de sua fala. Talvez devesse-se ter-lhe permitido recobrar a aparência antiga, talvez isso tivesse atenuado a níveis toleráveis o desconforto, talvez o auto exílio não tivesse ocorrido com essa demonstração mínima de respeito... Novamente o item "respeito". Retornam quando os ventos estão mais claros, tendendo para tons pastéis e aromas remotamente cítricos, sinal de que um pouco de paz se instalara. Sua fronte, no entanto, permanecia melancólica como antes, como sempre desde que decidiu-se pelo exílio...

- Pensou melhor?
- Com a paz da solidão, sempre pensa-se melhor.
- Solidão mão é boa companhia.
- Não vos estou impondo o que me apraz.
- Você deixou muitos tristes, com sua saída.
- Alguns voltaram sem sequer terem te reencontrado.
- Já não tiveram o que queriam de mim? Não cumpri com tudo o que me foi imposto?
- Queremos você.
- Sua inactividade física não te impediu de trabalhar nestes cem anos. Sabemos que os últimos acontecimentos tiveram sua influência.
- Portanto não precisam que eu saia de onde escolhi ficar.

  Voltam com mais uma frustração. Da próxima vez, um será substituído, tem outro retorno a fazer e não pode mais adiá-lo. Alguns subiram e também se frustraram não só pela ausência, mas também pelos seus motivos. O frescor da nova companhia talvez traga novas esperanças, é o que esperam. O semblante ainda duro e as lágrimas retidas ainda estão lá, mas os tons pastéis se estabeleceram e os aromas florais se anunciam. Canções do século XX ainda permeiam todo o ambiente, com suas lembranças e suas oportunidades perdidas. Alguns de seus intérpretes voltaram mais de uma vez, mas aquela figura que já se confunde com a paisagem continua lá...

- Queremos agradecer pelo bálsamo derramado.
- Não respondeu.
- Mas sabe que estamos aqui. Talvez você tenha sucesso.
- Sente-se confortável?
- Não busco por conforto.
- Entre não buscar e rejeitar dessa maneira, existe um abismo.
- É onde estou.
- Irônico... O abismo em um cume...
- Você não é o pouco que pensa.
- Não me for permitido ser o que sou.
- Não poderia ter se esforçado em ser feliz naquela trilha?
- Ninguém é feliz no caminho alheio. O meu foi-me negado.
- Mas era o que você tinha, não poderia ter trabalhado nele?
- Trabalhei, paguei pela minha liberdade e não quero perdê-la.
- Mas você sempre foi livre.
- Para o que não me convinha.

  Apesar do ambiente mais ameno, a voz continua em um bemol gutural e bastante pausado. Poderia ser aproveitada em algum filme antigo de suspense. Sabem que aquela aparência não corresponde totalmente à realidade, provavelmente assim como sua aparência não corresponde à realidade que vestira. Apesar de não mais mover um músculo desde que se sentou naquele cume, seus serviços de então em diante não podem ser ignorados, só não estão mais sujeitos à hierarquia que abandonou. A longa pausa lhes permite apreciar um pouco do que lhes fora dito, antes de saírem a mais uma tentativa. É muito difícil se sincronizarem àquela condição, há tantos e tão grandes espinhos ao seu redor, que só quem se acostumou a eles poderia mesmo suportá-los. Sentam-se cada um a um seu lado, sem ambicionar muita coisa...

- Algumas cosias que você fez naquele vale estão servindo de norte.
- Era questão de tempo para tanto. Não está feliz?

  O silêncio permanece, exceto pelo vento ainda gélido, que daria cabo de qualquer ser vivente em poucos minutos. Está trabalhando. Olham para o vale e acompanham, pela primeira vez, uma figura de longos cabelos ondulados em um longo vestido branco cinturado a pairar sobre os demais. Não se contenta em pegar o lixo, recicla-o e devolve-o como algo de proveito. A facilidade com que o faz demonstra a longa prática no exercício, sua facilidade beira o inacreditável. A figura desaparece, eles se voltam para aquela fronte e testemunham ainda tênues e ínfimos pontos de luz se desvanecendo naquele cenho franzido. Voltam para contar e demonstrar o que viram, foi para isso que foram desta vez. Quando chegam, percebem que algumas de suas manchas também foram limpas.

  Voltam e vêem o ambiente mais ameno. Ainda está escuro, mas cores e odores já poderiam ser dados aos cuidados de inexperientes. O vento, no entanto, continua inclemente. Qualquer carne sucumbiria imediatamente àquela glaciação. Lá está quem a produz, ainda naquela posição, naquela mesmíssima posição, teimosamente há mais de dois séculos. Sentam-se ladeando e aguardando. Assim que sentem o aroma de frutas...

- Você não sente falta das pessoas que deixou?
- Me deram lembrar de quando nos encontramos pela última vez.
- Arco com as conseqüências de meus actos e escolhas.
- Ele não é frio assim, eu me lembro!
- Não é frieza, é dor. Lembra-se de como se recolhia, quando sentia dores?
- É dor? Dê-me então a mão, quero ajudar.

  Tenta tocar-lhe a mão, mas a dor irradiada faz-lhe recolher rapidamente a própria. Se olham, ambos sentiram. Voltam agora mais preocupados do que frustrados, aos outros. Dedica-se a curar a dor alheia, mas não consegue sequer atenuar a própria. A avalanche de lembranças que partilharam não é, provavelmente, um átimo da que lhe atormenta, mas foi suficiente para comprometer-lhes a respiração naquela fração de segundo. Contam tudo, olham todos para o horizonte e aquela nuvem tempestuosa continua lá. Perguntam-se se é aquela nuvem aterrorizante que habita seu coração. Verificam o monitoramento, impressiona-lhes o controle que tem dos pensamentos, mais ainda de isso não lhe tirar daquela condição.

  Voltam com uma companhia. Eles sentam-se aos lados e o terceiro paira à sua frente..

- Você não deveria estar aqui nem por um segundo, quanto mais por quinhentos anos.

  Não responde. mantém os olhos fechados, a palma esquerda virada para cima e a direita para baixo. Os aromas são definitivamente primaveris, as cores estabilizadas em tons pastéis, mas a escuridão e o frio permanecem ali. Recorda-se da última conversa, ríspida, mas civilizada que tiveram. Era para que aprendesse uma lição, mas descobriram que também lhes cabia uma...

- Nós não somos perfeitos.
- Agiram como se considerassem-se. Tiveram o que queriam, respeitem meu exílio.
- Você sabe que não está só. Ninguém está só, ou não haveria o desejo de ter-lhe novamente conosco.
- Tem muita coisa nova acontecendo desde que você subiu e depois se afastou.
- Nada é novidade. Nada.
- Como poderíamos ter-te de volta e ajudar-te a recompor-se?
- Nada o faria.
- Nada?
- Nada.
- Quase quinhentos anos aqui e você nunca disse isso. As guerras já foram extintas, em parte por tua intervenção, mas só agora compreendo. Nada te demoverá?
- Nada me demoverá.
- Você acaba de trocar minha culpa pela esperança. Nada te demoverá, mas não será interrompido seu trabalho e não será desrespeitada a sua vontade. Vamos, o que se deveria fazer, está feito.

  O casal o acompanha sem compreender. O ancião aparente explica que deveria ter sido menos hierárquico e cedido naquele ponto desde o começo, mas sem perceber a ajuda acabara de ser solicitada e estava em andamento. Antes do meio milênio se completar, uma criança de curto corte chanel toma o lugar dos que tanto tentaram e se frustraram. Ela se aproxima em seu vestidinho de cores vivas entre as flores que dançam à brisa matinal. Só se vêem nuvens no horizonte, poucas e tingidas de ruivo pelo sol matutino. O cheiro da relva úmida se mescla com o das flores sob o céu de azul ainda cálido, a uma temperatura tão confortável que é quase monótona. A menina se põe diante da figura já coberta pela grama e nada acontece. Nada acontece. Nada diz, a criança apenas mostra seu dedinho anelar esquerdo, que exibe uma quase imperceptível ferida por espinho. Mostra e espera. Nada diz. A figura move seu rosto pela primeira vez desde que lá sentou-se e encara a criança. Nada diz. Nada! Nada diz, ajeita seus longos cabelos ondulados, seu vestido em um tom ultra claro de azul e põe a menina no colo. Nada diz, beija seu dedinho e cura-o.

  É com surpresa e estupefação que todos vêem-na voltando, sóbria, mas não mais taciturna, com a menina nos braços. Nada lhe diz, quem vê apenas admira aquela mulher irradiando luz azul. Não é mais aquela figura que saíra segurando os prantos, nem mais se parece com o que se foi, agora é o que deveria ter sido. Se esforçaram em demovê-la de sua decisão, quando na verdade precisava enfrentar seu inferno sozinha. Nada deveria ter feito. Nada.