10/01/2020

Deixe eu entrar, mas fique de fora!





           O francês sabe que seus carros são problemáticos e difíceis de consertar, se comparados aos alemães e americanos, fora o facto de que quando saem de linha, podem ser simplesmente jogados fora, porque dificilmente encontrarão peças de reposição. Aliás, um americano que morou lá chegou a comentar que carro europeu não é pensado para ser consertado, enquanto um brasileiro que morou nos Estados Unidos (e conhecedor do Fusca) suspirava de saudades do Caprice, dizendo que não há carro mais fácil de manter. Mas se esmeram em designs arrojados e soluções inusitadas visando seduzir o mercado externo, ainda que isso signifique agravar os problemas de sobrevida do modelo. Para não dizer que não têm qualidades técnicas, estão entre os melhores carros para se andar na neve; que francamente, não existe em boa parte do mundo. A situação é a mesma com a agropecuária francesa, que embora seja muito refinada e tradicional, é cara e ineficiente a ponto de muitos pequenos produtores precisarem de subsídios estatais, para se manterem no campo. Os alimentos inatura produzido no continente americano não devem em nada em qualidade, e ultimamente nem em refinamento, com a vantagem de serem produzidos em escalas muito maiores, o que barateia muito a unidade ao consumidor, mesmo com a logística transatlântica no meio.



            Tudo isso se soma ao mal disfarçado orgulho do cidadão francês pelo que é feito em seu território. Orgulho grande a ponto de haver manifestações pela manutenção e, não raro, até incremento dos incentivos e subsídios à produção nacional. A rejeição em princípio ao que é importado não se trata de imposição legal, é cultural, eles querem ver seus productos prestigiados aqui fora, mas ainda rosnam quando vêem “made in Brazil” estampado em uma embalagem por alguns euros a menos do que o “fabriqué en France” de mesma qualidade. Se for um dos mais ufanistas, ele paga mais pelo nacional.



            No Japão não é muito diferente, com o atenuante de eles serem muito mais abertos, graças ao relacionamento com os Estados Unidos desde o acordo de paz que pôs fim à guerra. O japonês médio torce o nariz para o importado e até mesmo para serviços vindos de fora, ainda hoje preferindo arraigadamente o que é feito e servido no arquipélago. No passado se viram obrigados a espionar o vale do silício, fingindo fazer excursões turísticas em que os engenheiros sabiam muito bem o que estavam procurando, e assim nasceu a lendária indústria electrônica japonesa. À parte episódios como este, o facto é que o japonês se orgulha quase ao extremo de seu país, sua cultura, sua mão de obra e até de seus defeitos, por isso hesita em gastar seus ienes em algo importado, se houver algo nacional similar; e mesmo as marcas ocidentais precisam se adaptar aos exóticos gostos de um país que se isolou por séculos, só voltando ao mundo quando os ingleses aportaram por lá, mas intimamente eles ainda vivem em um mundo particular, o que não é de todo ruim.



            A vantagem japonesa é que o país não pára no tempo, e mesmo as actividades mais tradicionais se beneficiam de novos métodos e novas tecnologias. Mais do que isso, o encanto que o japonês quer que seus clientes estrangeiros tenham é o de poder usar sem medo de quebrar. O único porém, é que, em especial nos carros, a miniaturização dos espaços para mecanismos e circuitos também tem tornado tudo mais difícil e caro de se consertar, fazendo compensar comprar um novo em vez de reparar o antigo, com isso não há muita demanda por peças de reposição, que logo são descontinuadas. Em contrapartida, ainda hoje é possível montar alguns modelos americanos do zero, só com peças originais. Mesmo assim a preferência pelo “made in Japan” é indisfarçada, especialmente por marcas nativas, que se esbaldam na situação de poder exportar muito sem medo de concorrência interna com importados.



            É aqui que reside o grande problema do Velho Mundo, no tocante ao comércio internacional. O continente americano tem uma mentalidade oposta, a de não passar a mão na cabeça de seus nativos, algo que em certo grau só é compartilhado pela Inglaterra. Sempre que um país americano aventa a possibilidade de corte de impostos ou mesmo de subsídio à produção interna, um europeu berra aos quatro ventos contra a concorrência desleal, contra a invasão da cultura externa e pela defesa do emprego nacional; mas adoram quando nós facilitamos para o lado deles, seus sindicatos dão de ombros para os empregos que podemos perder. Os asiáticos o fazem de modo bem mais elegante, mas também fazem.



            Houve uma curta época, meados dos anos 1970 e início dos 1980, em que os productos ocidentais pecaram no acabamento e, no caso dos europeus, perderam muito em qualidade de construção e confiabilidade. Bem, os asiáticos se apegam a essa imagem para reforçar a rejeição prévia ao que fabricamos. Muita coisa mudou, a qualidade construtiva, especialmente dos carros, evoluiu muito e hoje podemos dizer que um Cadillac ou um Lincoln já inspira muito do prazer de condução e conforto d’outrora. Para inspirar todo, ainda faltam o espaço interno e a qualidade estética de outrora. Isso seria o suficiente, mas ver algo feito no continente americano lá fora é menos comum do que o contrário. Não é raro um país asiático, especialmente China, manipular deliberadamente seu câmbio para agregar competitividade, a ponto de as marcas de cá precisarem montar plantas lá. Noutras épocas isso acarretaria retaliação bélica, felizmente isso já não acontece, mas eles se valem justo da escassez de conseqüências para empurrar com a barriga as demandas pan-americanas na OMC, e se o país reclamante não forem os Estados Unidos, a decisão do tribunal pode simplesmente não ser respeitada de facto.




            Um dos subterfúgios para esse desrespeito não ficar muito aparente, é simplesmente tirar um subsídio e criar outro em seguida, ou mudar os mecanismos de compensação ao exportador, ou mesmo criar regras deliberadamente vagas e rígidas para a importação de determinados artigos, alegando razões sanitárias ou adequação a padrões técnicos locais. Quando executivo e legislativo estão alinhados, ou um é submisso ao outro, fica fácil fazer isso. Se todas essas barreiras falharem, eles contam com o protecionismo cultural da população, que não precisa de protocolos e decisões de gabinete, pode ser acionado nos bastidores dos bastidores dos bastidores, boca a boca, nas relações pessoais e nos discursos de artistas e intelectuais em defesa de... bem, o resto vocês podem deduzir.


             Agora imaginem se nós decidirmos fazer o mesmo! Não aceitamos brinquedos e bugigangas da China, nem carros europeus, nem bebidas e queijos franceses, entre outras coisas. Deixamos os produtos deles envelhecerem nas lojas e compramos só o que for feito no continente, mesmo que o governo elimine todas as barreiras alfandegárias. Mesmo que precisássemos pagar bem mais caro, não compraríamos de outro continente se houvesse algo similar feito aqui. Sim, eles podem fazer o mesmo, mas isso sairia caro, literalmente caro. A escala de produção deles cairia muito, com isso os custos ficariam muito altos, haveria desemprego em escala maior do que os Estados nacionais seriam capazes de conter, fora o risco de fome generalizada, porque eles não produzem alimentos suficientes para seu consumo básico. Qualquer lanche de rua custaria o mesmo que um prato fino em um restaurante caro, comer bem seria um luxo. Embora não admita, a Ásia vive de vender para nós, a força que eles têm, nós demos.


            Por aqui teríamos dificuldades para nos adaptar, afinal quase todo o nosso comércio exterior está voltado para além mar, mas seria passageiro. Nossas paisagens mudariam e a seleção natural manteria as empresas competentes no mercado. Fome nós não passaríamos. A agricultura é uma das poucas indústrias que permitem mudanças rápidas e profundas em suas matrizes, e é a base de nossa economia! Em poucos anos as dificuldades seriam superadas e a circulação de riquezas se concentraria em um continente, com fretes mais baratos e rápidos. A necessidade de conquistar o mercado interno continental, e a escassez de profissionais capacitados, faria a mão de obra se aprimorar e os salários subirem. Por questões de sobrevivência, nós aprenderíamos a dar menos atenção a entretenimentos que não acrescentam... muitas celebridades teriam que mudar de linha ou de emprego.
            

            Mas nossas dificuldades passageiras não seriam nada se comparado ao que os outros continentes enfrentariam. Alguém poderia nos declarar guerra, sim, não fossem os Estados Unidos aqui, da mesma forma como eles impedem que a China anexe os países que estão no Mar da China apenas por causa do nome do mar. Não acredito em uma catástrofe, a maioria deles se emendaria e trataria de agir como adulto, os que não o fizessem estão na vizinhança e se beneficiariam marginalmente. Em meio século o mundo seria completamente diferente, os próprios países americanos se veriam de outra forma, e talvez a Guiana não seria mais francesa. O melhor disso é que os países que hoje agem como mendigos, veriam sua força e seu potencial, e seriam então capazes de impor respeito sem apelar a ufanismos, apenas olhando nos olhos e pondo suas cartas na mesa; que então teriam valor relevante em todos eles.


            Não, não estou insuflando o isolacionismo, minha mentalidade é contrária a isso. O que escrevi aqui é para dar a vocês uma idéia com acento da força que este continente tem, e seus cidadãos ignoram, mesmo os nativos dos Estados Unidos não fazem idéia do real peso e da real responsabilidade que têm no equilíbrio internacional, imaginem os latinos! Então, antes de começarem a gritar desesperados "ELES VÃO DOMINAR O MUNDO" deixem a pirotecnia desenvolvimentista de lado e analisem o que realmente está acontecendo, e por que está acontecendo. Vocês verão, caros americanos, que muito do que eles conquistaram, partindo de infraestruturas completamente combalidas ou mesmo inexistentes, foi com o suor de nossos rostos. Além do mais, temos grandes colônias do Velho Mundo aqui, o melhor deles está em nosso território. Então, quando alguém vier reclamar que qualquer país de nosso continente impõe barreiras às importações, esfregue diplomaticamente em suas caras o que eles fazem debaixo do pano.