17/11/2018

O motorista a 80

Experição ZE Rádio Cultura

    Nesta semana um colega veio me dizer, após uma conversa banal, que só Deus agrada todo mundo, no que soltei "menos os ateus". Eu esperava que tudo terminasse por aqui, mas ele ficou realmente transtornado. Disse mais de uma vez (bem mais, diga-se de passagem) que deve ser muito triste a vida e quem não acredita em nada, que seria uma vida vazia e sem sentido; como se o índice de suicídios entre os teístas fosse zero.

    Vamos a alguns factos. Algumas das melhores pessoas que conheço são ateias ou agnósticas, o que para muita gente é a mesma coisa, mas não é. Essas pessoas lêem muito, pesquisam muito, esmiúçam todas as vertentes possíveis do que estão investigando, conhecem as principais religiões melhor do que muitos de seus sacerdotes. Não que sejam imunes a algum dia abraçarem alguma fé, assim como é bem comum fieis antigos deixarem de ver sentido no que fazem e não passarem a enxergar nada mais do que palavras escritas por homens, onde antes viam a palavra divina.

    Não confundir ateus e agnósticos com aquela turminha de que já falei: os chateus, teofóbicos e misoteístas, estes merecem um pé nos fundilhos e um bloqueio em qualquer rede social e antissocial.

    Voltando aos que valem à pena, os ateus e agnósticos não acreditam simplesmente porque não foram convencidos. Ninguém acredita no que não convence! Acreditar porque "assim está escrito" é fanatismo, é dogma. Ateus são cientistas inatos e habilidosos, não se dão o direito de portar uma verdade absoluta. Ainda que uma ideia não possa ser comprovada de imediato ou a curto prazo, eles ainda aceitam uma explicação convincente e minimamente respeitosa com a lógica. Não a TUA lógica pessoal e doutrinada, mas A LÓGICA, aquilo que quase sempre pode ser expresso em equações e não faz troça com as leis da física.

    Posto que a ideia de uma divindade não os convence, portanto não tem sua adesão, para eles simplesmente não existe. Simples assim.

    Não existe, então não faz falta. Não faz falta, então a ausência não implica em tristeza. Eles não são tristes por não acreditarem no que vocês acreditam, ou por acreditar no que vocês não acreditam. e quando acreditam, não é por fé, é por comprovação ou, no mínimo, por coerência com o mundo real.

    Imagine que um motorista viaje a 80km/h em uma boa estrada. Não há sinalização, não há guardas de trânsito informando, não há nem mesmo indicação no mapa. Ele para em um posto e aproveita para comer. No restaurante, enquanto come, ouve gente falando com espanto de um carro cuja descrição corresponde ao seu. Todos criticam, mas cada um por seus próprios motivos. Alguns dizem que ele estava rápido demais, que nem dava para ver a placa e que causaria um acidente. Outros diziam que ele estava atrapalhando o trânsito por andar devagar, que causaria um acidente e morreria de velho antes de chegar ao seu destino.

    Curioso e atento, como todo motorista que se preze, ele prestou atenção ao que estavam falando. Os que criticavam sua rapidez estavam parados ou de bicicleta. Ele passou por alguns pedestres e ciclistas, mas estava longe deles, às vezes as bicicletas estavam na pista secundária ao lado da estrada, livres de qualquer risco. Concluiu então que as queixas destes não faziam sentido, não para aquela situação.

    Os que criticavam sua lentidão eram os que passaram zunindo por ele. Motorista habilidoso e consciente que é, sempre se mantém à direita até ser necessário ultrapassar. E o movimento da estrada era pequeno, houve poucas ultrapassagens ao seu carro, destas, nenhuma se deu com mudança de faixa, ou seja, os apressados estavam sempre na pista da esquerda. Não precisou sequer tencionar o braço esquerdo para dar passagem. Concluiu então que essas queixas, para aquela situação, também não faziam sentido.

    Ele não tinha pressa, a estrada não estava ruim, seu carro estava em óptimas condições e ele simplesmente não põe álcool na boca quando dirige. Viu o relógio, ainda tinha tempo de sobra, chegaria antes do pôr do sol. Continuou a comer, depois pagou a conta e foi embora. Nenhum dos queixosos disse algo que invalidasse sua decisão e seu modo de dirigir.

    Chegar antes não lhe daria ganho e se atrasar seria perder o pôr do sol que queria registrar, durante sua estadia.

    Haveria um modo de dirigir? Provavelmente sim, com toda certeza ele poderia conseguir algo melhor, mas o método e os motivos para tanto não lhe foram apresentados. Simplesmente bradavam "O meu modo é que é o certo" e "motorista de verdade dirige como eu".

    Assim funciona, a grosso modo, a mente de um ateu, ou um agnóstico. Dizer que ele é triste por não ter um deus é como dizer que uma andorinha sente falta de um sofá. As pernas da andorinha não foram feitas para ela se sentar e seu traseiro não foi feito para suportar seu peso, uma superfície acolchoada não lhe faz a menor diferença. Seus ovos precisam de algo que absorva o impacto, mas é só. Elas não ficam tristes por repousarem em um galho rígido, aquilo supre suas necessidades de descanso e talvez até de pernoite.

    Meus caros, não é o ateu que fica triste por não ter fé, a vossa fé fraca é que necessita da adesão alheia. Não confundam as coisas.