30/06/2016

Viver em apartamento




  É descobrir que do vigésimo andar, se tem uma bela vista, uma bela alvorada, um belo por do sol. É perceber com o tempo, que só um completo desocupado pode usufruir de tudo isso a contento, quem tem mais o que fazer só olha de vez em quando e volta ao serviço.

  É descobrir que sem uma sacada, a apreciação da  paisagem fica muito comprometida, mas mesmo sem ela o vento lá em cima pode arremessar sua documentação para longe, mas longe mesmo, espalhando por várias quadras o que deveria ficar sobre a mesa, para organizar sua vida.

  É sacar imediatamente a câmera, ao ver uma cena interessante na rua, e ver o vizinho da torre da frente se afastar devagar, com cara de "Meu Deus, um psicopata", sem a mínima possibilidade de simplesmente mostrar o evento que está do lado oposto ao que ele pode ver.

  É estar cercado por quatro vizinhos, todos eles cientes de cada risada solta por uma boa anedota, cada palavrão de desabafo, cada desafinação que os vizinhos de uma casa nunca ouviriam, enfim, é pegar o elevador e todo mundo te olhar com cara de sarcasmo.

  É não adiantar chamar os caça-fantasmas, porque aqueles ruídos de coisas se arrastando, passos nas paredes e no teto, coisas batendo "dentro da parede", cantarolas desafinadas que vêm do nada, não são espíritos zombeteiros e nem elementais, são só os quatro vizinhos que te cercam.

  É sentir-se vivendo ao lado de um gigantesco intestino, com as tubulações de água e esgoto funcionando praticamente sem tréguas, fora aquele assobio e aquele estrondo do vento no vigésimo andar, que fazem parecer que uma gigantesca flatulência está prestes a preceder algo igualmente grande e mal cheiroso.

  É esperar cinco ou mais  minutos para sair pelo portão, o que eu estava acostumado a fazer em segundos sem elevador, portaria e protocolos de condomínio; isso quando algum sacana não prende o elevador!

  É dar satisfações de sua vida pessoal a gente que eu pago, porque suas visitas não podem subir sem permissão prévia, os carros das visitas não podem ficar na minha vaga, os prestadores de serviço só podem entrar até certo horário, então danou-se se algo quebrar depois das dezoito horas.

  É ouvir aquela ladainha de que é mais seguro, quando os noticiários estão repletos de casos em que quadrilhas especializadas infiltram membros na empresa terceirizada para fazer o condomínio inteiro de refém, isso quando a própria empresa não é aberta com esse propósito.

  É ter uma área de lazer que, na planta, é a coisa mais linda do mundo, mas ao vivo é bem menor e menos bem acabada, fora que se todo mundo decidir aproveitar aquilo no mesmo dia, meu Deus, onde eu amarrei meu burro?

  É não poder contractar o servidor de internet fixa em que menos desconfio, porque o condomínio já escolheu os seus e os outros não têm e nem podem ter cabeamento lá dentro, me obrigando a comprar uma linha móvel.

  É ver a diarista ter que usar o elevador de serviço, o mesmo que leva carga, porque não fica bem uma empregada usar o mesmo veículo dos condôminos, para não ofender o status quo e me vender a ilusão de que eu sou rico.

  É um condômino ter que usar o elevador de serviço, o mesmo que leva carga, porque quer usufruir do que paga e vai levar seu cãozinho de companhia para passear, mesmo que esteja com toda a parte veterinária em dias, que tenha acabado de escovar a pelagem e use fraldas.

  É descobrir que aquelas "duas vagas" só são reais se teu carro for um subcompacto, pois até um Ônix ficaria apertado nelas, imagine se eu conseguisse trazer minha sonhada e gigantesca Pontiac Parisienne Wagon 1969 de nove lugares!

  É descobrir que, realmente, eu sou bicho de chão mesmo!

23/06/2016

Economia, ciência humana



Foi assim que ela fez tudo o que fez


Foi interessante e até um pouco triste, diga-se de passagem, ter constactado que as páginas de economia costumam ser mais humanas do que as ditas “sociais”. A começar pelo foco. Essas páginas, apesar de lidarem com o calculismo e a frieza dos números, histórica e preconceituosamente tidos como inimigos da vida, se concentram em oferecer soluções práticas. Apesar de sim, haver interesses particulares em mover a economia, e falarei disso mais tarde, o modo como abordam é expor roteiros factíveis e alertas sérios.

Um dos métodos mais recorrentes é ajudar o leitor a se educar financeiramente. Pode parecer tedioso, mas é necessário e o brasileiro prova em reincidências que não sabe lidar com dinheiro, por isso o assunto é sempre pertinente. Sabem aquelas regrinhas de ver quanto se ganha e colocar no papel o que se pode comprar e pagar? Nós não sabemos. Não sabemos e a encrenca que foi a última farra de empréstimos é prova, caímos na mesma armadilha que vitimou os espanhóis e confiamos nas prestações a juros camaradas em parcelas a perder de vista. Só que não temos um bloco econômico e político como a União Européia para nos salvar. O Mercosul é uma piada com validade há muito expirada.

Juros compostos passaram longe! Aliás, o aprendizado de matemática básica passou muito longe! Também o de história recente, de geografia, enfim, tudo! Só que não adianta procurar culpados e apontar dedos, como as páginas de “cunho social” fazem. Não sem investigações individualizadas e muito menos sem antes consertar o que se puder do estrago. Há quanto tempo elas fazem isso? Só conseguiram lançar candidatos a cargos eletivos que, empossados, fizeram as mesmas misérias de todos os anteriores, e ainda os culpam por seus erros, incitando à discórdia e ao rompimento de relações pessoais, para preservar sua base eleitoral.

As páginas de economia, por outro lado, puxam tua orelha sem dó, mas sem apontar um dedo sujo de esfíncter para teu nariz. Em vez de te tratarem como um número na multidão, tratam como indivíduo, compreendem que não existe uma solução econômica única para todas as pessoas do mundo. Por quê? Porque cada indivíduo tem seus próprios sonhos, e mesmo os sonhos partilhados têm motivações diferentes em cada um que os acalenta, É por isso que tratam o leitor como pessoa, não como massa. Um sonho SEMPRE deriva de uma necessidade, consciente ou não. Irônico isso vir de um ramo de negócios corporativos, não? Não, não é.

Acontece que o dinheiro que vai para cada um, serve para as necessidades de cada um. Quando digo “necessidades”, não me refiro só à subsistência de nível pré-histórico, que muita gente prega como modo ideal de vida. Prega e muitas vezes tenta impor ao resto do mundo. Pessoas criativas, inventivas, com sede de realização, precisam de mais recursos do que as que aspiram à rotina horizontal e plana. Se bem que estas só conseguem vislumbrar essa planície porque alguém quis fazer mais, o que forçosamente utiliza os serviços dos que almejam a mansidão perpétua, dando-lhe recursos para manter seu modo de vida.

Vocês estão lendo isto, gostando ou não, porque alguém sonhou mais alto. Sonhou e conseguiu mover uma roda gigantesca, que moveu toda uma engrenagem de altíssima precisão, que não perdoa erros. Esse alguém pensou um pouquinho fora da caixinha. Não precisa ser muito, só um pouco mesmo, para ver que não dá para aperfeiçoar muito a vela de parafina, a lâmpada precisou mesmo ser inventada e viabilizada para uso comercial. Sim, comercial, é assim que os recursos movidos são repostos e permitem outros avanços. Boa vontade indica o modo operacional e o fim de uma empreitada, mas não a materializa. Lembrem-se das broncas da mamãe; devemos viver para os sonhos, não de sonhos.

Aqui vale uma regra de economia que a maioria ignora, e muita gente quer manter na ignorância. O que torna uma coisa valiosa não é ela em si, é você. É o trabalho humano envolvido, a necessidade da aplicação e o desejo de ver o resultado, que faz algo valer o tempo dedicado, que é expresso em unidades de troca válidas em todos os territórios que a doptam. O nome genérico dessa unidade é dinheiro. Por isso uma economia dinâmica e equilibrada, com a plena confiança dos envolvidos, consegue transformar em fortunas o que até então era nada. Ou seja, bens e serviços podem ser valorizados, riqueza pode ser criada, mas isso depende da unidade e coesão dos executores econômicos, que somos nós.

Ao contrário da crença geral e banal, pessoas felizes são boas para a economia, e uma economia feliz é boa para as pessoas. Um é o agente e o outro a ação, ambos estão bem ou ambos estão ruins, não há aqui um meio termo. Mesmo uma economia com indicadores extraordinários, sem uma população feliz e próspera, é doente e cairá enferma a qualquer momento. Se as pessoas estão bem, elas fazem coisas boas, e fazer as coisas é o que move a economia, o dinheiro é apenas um combustível que, como já vimos, é renovável e reutilizável. E ao contrário da crença geral e banal, sem o avanço técnico e econômico, não teríamos consciência do valor de um recurso, e provavelmente já teríamos devastado todo o meio ambiente sem nos darmos conta. Faça as contas e veja TODOS os exemplos.

Não existe uma mão invisível, não existe uma entidade mítica, não existe uma sociedade secreta com motivações secretas sob identidades secretas, tudo isso é mito. Mas existem sim muitos picaretas que alimentam mitos para manter as pessoas alienadas, sabotar uma economia e forçar todo mundo a trabalhar selo seu sonhozinho egoísta. Entendam que manipular a economia é como manipular o livre arbítrio de uma pessoa. Um Estado que fiscaliza de perto a movimentação econômica e a acerta nos trilhos, tão somente quando necessário, tem um país próspero e promissor, mesmo que indicadores do momento digam o contrário. É como uma pessoa forte e saudável que cai, se fere e sente as dores por algum tempo.

Vamos deixar claro que o motivo que leva uma pessoa minimamente hígia em suas faculdades neurológicas e psicológicas a querer mais dinheiro, é realizar a parte material de suas necessidades e seus sonhos. E quando incluo a higidez nesse rolo, me refiro também ao caráter. Mau-caratismo pode ser considerado um trampolim para facínoras.

Mas de quanto dinheiro uma pessoa precisa para realizar um sonho? Aos que alardeiam que é nenhum, reitero que cada um tem seus próprios sonhos, que os teus com certeza não servem para mais ninguém. Uma rede pendurada na varanda de uma casinha longe da civilização é teu sonho? Vá atrás dele, mas não tente impô-lo aos outros. Há quem não goste de abrir a porta e ver mato, não é problema teu. Há quem goste de abrir a janela e ver vastos jardins organizados em calçadões bem ornados e cercados de prédios elegantes. Egoísmo? Quem mesmo quer viver sozinho e só para si? Respeite o sonho do outro, não há dinheiro que o pague, mas há dinheiro que o viabiliza. Se não puder ajudar, como as páginas de economia tentam fazer, não atrapalhe.

Digamos que meu sonho seja o controle acionário absoluto da General Motors Company... PUTZ, voei alto! Tá, mas não é mirando na horizontal que se acerta um alvo distante, mesmo que ele esteja no teu horizonte. É para cima e para frente, em ângulo de 45° que se tem o melhor disparo. Mas ser o rei de Detroit não seria meu objectivo final, seria a base sólida para uma miríade de realizações que esse posto me permitira. Não importa agora quais seriam elas, é do meu escopo, só asseguro que não disseminaria miséria e opressão estatal para conseguir isso.

Um dos mitos mais arraigados é o de que se precisa de muito dinheiro para se fazer muitas coisas. Na verdade é suficiente gerenciar a aplicação repetida e em tempo hábil de uma quantia bem mais modesta do que se imagina. É como transportar em uma Kombi a carga fracionada que caberia a um gigantesco Kenworth. Ela dá conta, desde que tu concordes em esperar mais pelo serviço e se empenhe em fazer dezenas de viagens. Compreenderam? É a necessidade do indivíduo, da pessoa, que move o mundo e produz uma inovação. Darei mais um exemplo, desta vez mais técnico.

Um motor produz trabalho, este é nominado por unidades de potência, sendo o cavalo-vapor uma das mais utilizadas. Como se produz potência? Aplicando força e movendo a máquina. Força parada produz zero resultado, portanto zero cavalo-vapor, ou 0cv. Não importa que se aplique uma tonelada, sem se mover, ela não beneficia ninguém e não serve para absolutamente nada. No caso do motor, a força trabalha girando as rodas, e força que gira é chamada de torque. Um pouco de torque girando muito rápido, pode produzir a mesma potência de muito torque girando devagar. É o que diferencia, basicamente, um motor de uso leve, como o de um carrinho esportivo, do de uso pesado, como o de um trator. Um precisa de velocidades mais altas, o outro pode mal sair do lugar. Já um motor de alto torque que alcança altas rotações, bem, isso é para poucos, mas é uma coisa linda de se ver! Tudo depende do teu objectivo de vida e do que estás disposto a fazer por ele. Aqui solidez ética é posta à prova. Dinheiro é poder, e o poder te obriga a tomar decisões no tempo certo, estejas pronto pra tanto ou não.

Agora, quanto aos interesses, já que toquei no assunto... Estamos lidando com gente, lembrem-se disso. A maioria dos que apontam o dedo dizendo “Eu condeno e jamais faria isso”, é a parte mais propensa a fazer o mesmo ou até pior, no teu lugar. Picaretas não deixam de existir por falta de liberdade econômica, pelo contrário, eles se valem do sigilo necessário a uma economia fechada e controlada. Aqui cabe diferenciar os interesses de gente infeliz dos de gente que quer ser feliz. Esta quer enriquecer a própria vida com a realização de seus sonhos, aquela quer apenas controlar e vampirizar a tua vida. Gente feliz, lembrem-se sempre, não enche o saco. No caso aqui, não trava a economia e não desvia os recursos que deveriam ir para as tuas mãos. Economia é uma das ciências mais humanizadas que existem, para o bem e para o mal, como é a própria humanidade. Quer higienizar o mundo? Corra atrás de teus sonhos, prepare-se para isso, permita que o máximo possível de gente possa se beneficiar dele, porque se tu não o fizeres, há um canalha prontinho para ocupar o teu lugar e concentrar tudo em um bunker, só para ele. Mas só valem os teus sonhos, não os que querem te impor ou vender. Só os teus.

Ler também “Um punk domou o sistema”.

16/06/2016

A invasão espacial



 

Anne Francis as Altaira Morbius in Forbidden Planet
A espiã entra respeitosamente na sala do trono, mas sem ritos. Vai directo ao rei e se põe diante dele, aguardando que conclua o atendimento a outros súditos. Ele percebe seus pensamentos preocupados, vira levemente o rosto para saber que já notou sua presença e logo a atenderá. Sabe que o assunto é grave, então dispensa protocolos e acelera a audiência. Finalmente...


- Ahboo, Koish, minha enviada ao mundo primitivo!


- Ahboo, Thaan, amado unificador de nosso sistema planetário! Trago mensagens do planeta Terra.

- “Terra”? É de um idioma único ou...


- São milhares de idiomas e dialetos, majestade, este é o português da região emersa de onde voltei, tendo concluído meu trabalho.


- Milhares? Isso será um problema! Bem, depois veremos isso, diga o que me traz.

- Transferi os dados sensoriais e cognitivos aos nossos computadores, para vossa majestade apreciar, mas urge que saiba o que vai vivenciar virtualmente. Primeiramente, não precisamos correr nenhum risco com uma invasão, só de um pouco de paciência e esperar, eles tendem a se destruir uns aos outros, sem interferências externas. Os humanos, como chamam a si mesmos, retalharam o planeta em quase duas centenas de áreas que chamam de países, estes em outras menores que chamam de Estados ou províncias, de acordo com a convenção local. O que poderia parecer uma técnica de organização espacial, é na verdade um modo de manter gente de fora, de outros países, do lado de fora.


- Um momento... O que seria gente de fora? Não há outra raça extra planetária por aqui, além de nós!


- Mas é como eles tratam pessoas de outros países. Muitos desses países ficaram isolados dos demais por períodos consideráveis de tempo, levando em conta que os humanos têm ciclos muito curtos de vida biológica. Os mais longevos mal completam um De! Lembrando que o príncipe Nh é um bebê de De... Mas neste curtíssimo período, eles são capazes de fazer grandes estragos. Eles têm o hábito de responsabilizar os outros pelo mal que eles fazem, bem como tentar desqualificar a vítima de um crime pelo seu infortúnio.


- Pelas mil vidas de Karrh’Ov! Então eles não só morrem com idade de bebês, como morrem com a mentalidade de um! Vai ser difícil você me surpreender agora!


- Mas surpreenderei. A causa da intensa poluição gasosa que detectaram é tão risível quanto estúpida. Eles simplesmente jogam fora o extrato coadjuvante de uma produção.


O rei, conselheiros e até a guarda arregalam incrédulos os olhos. É como se os soldados rasgassem o pagamento por seus serviços e jogassem os trapos nas vias públicas. Koish continua...


- Muitas vezes tive vontade de interferir, por piedade, mas as ordens foram expressas e claras, só forneci ajudas pontuais a indivíduos, em momentos críticos, depois me retirei. Nos sete mil anos, cerca de setenta De, eu acompanhei de perto em virtualmente todas as regiões do planeta, a evolução lenta e sempre precária de sua tecnologia. A evolução social é ainda pior, advirto. Pelos meus cálculos, eles desperdiçam quase 99% de tudo o que produzem, sem contar a produção secundária que o aproveitamento dos insumos desperdiçados geraria. Eles simplesmente não sabem o que fazer com o resultado de suas actividades. Estou falando só de artigos de uso directo, no que incluo alimentação e tratamento de saúde.

- Como essa raça conseguiu sobreviver?


- Pela graça de Karrh’Ov, não por suas faculdades. Aliás, essa separação fronteiriça gerou inúmeros deuses, e eles matam outros humanos por esses deuses. Alegam ser Karrh’Ov com muitos nomes em muitos idiomas, mas seria até ofensivo levar isso a sério. Ainda no tema de desperdício, eles têm pessoas que se rotulam como “activistas”, que pregam como solução para a poluição, a extinção da actividade produtiva de grande escala.


- Estou perplexo! Há algo de extraordinário nesses rejeitos que os torna imunes a reagentes para neutralização e reuso?


- Eu soltei uma idéia de canalizar a exaustão dos reatores para recolher e reaproveitar essa fortuna incalculável. Riram das caras de quem simpatizou, tanto os contra como os a favor dos reatores. Algumas vezes foram até agressivos. Existe uma programação cerebral que faz muitos deles acreditarem que são, individualmente ou em grupo, dignos de privilégios sobre todos os outros, muitas vezes camuflam com discursos de amor e fraternidade, mas a prática desmente. Chamam de religião, ideologia, cultura, entre outros nomes, mas no fundo são a mesma coisa. O mote é “o meu lado está certo, o seu está errado”. A simples existência de quem se comporte diferente, já é motivo para medo e retaliação. Enquanto são crianças em tenra idade, isso praticamente não existe, mas depois dos seis anos de idade, um tempo que nem nos faz diferença, recebem programação intensiva para terem medo de serem diferentes do que prega o grupo.


- Já vi muitas civilizações se extinguirem por muito menos. Tudo o que me disse é realmente grave, Koish! Há mais?


- Seria conversa para uma estação inteira, majestade, por isso produzi arquivos para sua apreciação. Nos últimos dois De eles tiveram uma aceleração dramática na evolução tecnológica, aprenderam primeiro a transformar calor em movimento, hoje já engatinham na manipulação do movimento electrônico por materiais condutores e semicondutores. Ainda assim persiste o vício programado de procurar culpados antes de procurar soluções. Eles têm muito medo de serem felizes, tanto quanto de os outros serem felizes sem dependerem de sua felicidade. Novamente fazem uso de discursos oriundos de sua programação para justificarem e darem glamour a tudo o que fazem.


- Começo a acreditar que essa invasão será mais um acto de misericórdia do que uma colonização. Certo, você conseguiu me assustar como nenhuma guerra o fez. Vamos à parte boa. Tem que haver uma parte boa, ou eles já teriam morrido todos!


A expressão da agente muda completamente. Ela fala da riqueza cultural extraordinária, mas igualmente subutilizada, que aquele planeta produz sem nem se dar conta. Fala dos automóveis, do cinema, dos shows musicais que chegam a atrair centenas de milhares de indivíduos, enquanto cantores de sua raça ficam felizes quando têm cem ouvintes. O modo como a indústria se vale desses artistas e se associa às suas obras, a indústria da publicidade com seus dois gumes, a literatura, o uso recreativo de tecnologias de ponta e a naturalidade com que eles se acostumam a usá-las. Neste ponto, afirma, os humanos estão muito a frente de todas as civilizações que já conheceu...


- Inclusive a nossa? Somos referência de produção cultural na galáxia!


- Neste ponto, majestade, somos infantis perto deles. Verá que é uma parte maravilhosa desses seres, em contraste com as trevas que dominam outras áreas. O que decidiu? Nos mostramos e oferecemos ajuda?


- Causaria uma histeria e suicídios em massa. Nem pensar! Vamos nos infiltrar, quero que você oriente nossos agentes e cuide para que cruzem com os nativos, para gerarmos híbridos e com o tempo trazer gente simpática à nossa presença. Deixe os recalcitrantes se matarem, mas os que erram por medo de errar devem ser cooptados. Eu te nomeio governadora da Terra e te dou carta branca para agir como achar necessário. Organize um exército, faça o planejamento com cuidado e execute os planos, aplique e compartilhe o conhecimento que acumulou, quero que todos os nossos estejam aptos a ajudar essa raça idiota. Quando estiverem prontos, desligaremos os genes que aceleram tanto o envelhecimento. Agora vamos aos arquivos que trouxe.


- Poderíamos fazer um documentário, uma simulação artística com abordagem científica, para os nossos aprenderem bem sobre os humanos.


Ele acata a sugestão. Por agora quer absorver os sete milênios de trabalho árduo de sua governadora.

15/06/2016

Manifesto ideonulo



Vladimir Kazak

  Declaro minha mais profunda e sincera repulsa por rótulos, por dogmas, por ideologias, por quaisquer artimanhas classificatórias que não tenham plena e sólida raiz nas elucubrações matemáticas da ciência, bem como seu indelével e fiável respaldo.


  Declaro minha aversão a elogios gratuitos, a opiniões agressivas, a maquiagens eufêmicas à agressividade, a discursos que tomam a legítima vez de respostas simples e objectivas, a qualquer manifestação de imposição intelectualizada que não tenha o alicerce compacto e vasto da investigação criminológica.


  Declaro ainda minha inaderência a conceitos que não os meus próprios, aos quais nem sempre adiro. Minha total devoção ao nada e a Nada, na firme convicção de que não há outra fonte lícita e limpa de raciocínio e conclusões, posto que não suportam as pré-concepções e a invasão de idéias que não emirjam de meus próprios abismos e minha própria estrela.


  Posto o exposto, declaro enfim que rejeito cognomes, jargões, apelidos, denominações e comparações que não partam de meus cabedais, mas somente de mim e para mim, sob nenhuma hipótese a orbitar egos alheios.


  O capitalismo está morto. Como previsto e previsivelmente, algoz de si mesmo em seus ímpetos suicidas. Contra o previsto e previsivelmente, não levou consigo o ocidente e toda a sua bagagem civilizatória, que ora vaga a deriva no mar bravio da transição econômica, social e de paradigmas, em sua notável resistência ao assédio fomérico das piranhas anarquistas, que se consomem umas às outras ante cada investida frustrada.


  O socialismo está morto. Como previsto e previsivelmente, algoz de si mesmo em seus ímpetos messiânicos. Contra o previsto e previsivelmente, não logrou êxito à descendência de que lhe esperavam. Ainda visível, mumificado em canções e poemas plenos de boas intenções, que vêem o cadáver intacto como um homem apenas em repouso no onírico, reino do qual jamais realmente saiu.


  O comunismo é natimorto. Como previsto e previsivelmente, vítima de sua alardeada fúria niveladora. Contra o previsto e previsivelmente, embalsamado após seu aborto, por ter rompido com os dentes de sabre o cordão umbilical que mantinha-o vivo, ainda em gestação, por negar a necessidade da tutela materna e sua origem já contada. Ainda visível, imerso em formol, cercado por órfãos que jamais o foram, inconformados com o luto ao qual se renegam e contra o qual se revoltam.


  Não acredito em boas intenções, não da prévia e alegada à qual tanto recorrem os defensores desta ou daquela ideologia. Bons intentos são muitas vezes guarnecidos de gestos atrozes, pelo simples facto de o bem intencionado não se crer apto a atrocidades, posto que de si só emanariam o amor e a justiça, ambos cegos e altamente seletivos em suas mãos.


  Não acredito na inocência prévia, sempre susceptível aos adornos jocosos do cinismo típico dos mentirosos, que de tanto mentirem, acreditam nas próprias invenções. A inocência é sempre a alegação, mesmo perante a prova material, dos que manipulam, subtraem e traem sem pudores e nem remorsos, indiferentes quanto ao destino de suas vítimas agonizantes.


  Ainda que se me arguam pelos motivos de ter feito o que não fiz, não guardarei rancores no espaço que dedico a Nada e nada mais direi, além de que a pergunta está equivocada. Uma interrogação acerca de um factóide pressupõe a culpa e não permite que se responda o que não se lhe imponha veredicto condenatório. Não importa o que se responda ao erro, sempre redundará em erro. Deve-se, pois, corrigir de nascença a retórica de falsa confissão.


  Chamo à razão os que me ouvem, lêem ou mesmo captam os pensamentos. Não à sua razão, tampouco à minha rude, mas à razão da investigação que busca raízes, não os responsáveis pelo plantio. O estudo da raiz dirá por si a autoria do plantio, mas nunca o inverso nos permitiria, por cercar-se dos holofotes das emoções e comoções.


  Chamo à razão que questiona causas e correlações, nunca autoria, pois quem busca o responsável por precipitações meteorológicas, sempre encontra um ou mais, sejam reais ou não, mas sempre inocentes do que encerra em si a causa e a conseqüência. Autores, se houver, serão denunciados pela descoberta artificial da chuva em questão.


  Chamo, finalmente, à razão simples e órfã, à fonte de conclusões que coloca cada qual em seu devido papel, sem inversões e sem adaptações do toro ao círculo, cujas semelhanças precipitam conclusões não investigadas. Ao dar a cada um o seu papel no palco dos eventos, deixa-se ao cérebro livre o dever de revelar o afresco sob a tinta grosseira, sem danificar a paisagem frágil que se escondia sob a pintura de camuflagem. Ao dar a cada um o seu devido papel no roteiro dos acontecimentos, deixa-se ao coração livre a tarefa delicada de analisar a obra revelada, para dosar os rigores e os amparos de que cada ponto necessita ao restauro e exibição pública, permitindo a cada sephirah o livre e pleno exercício de suas atribuições, que só se executam a contento no nada e em Nada.