14/10/2006

A moça da Baviera

Andava tranqüila pelos campos. Gostava do sol tênue da Europa no rosto, embora a pele não ajudasse. Era muito clara.
Queria uma vida tranqüila e sem pretensões. Se perguntavam onde queria viver, não titubeava, soltava em uma só palavra: bayer. Pessoa de olhar calmo e sereno, não causava espanto em sua resposta.
Jovem e sem medo do trabalho, vivia feliz na terra dos teutões. Gostava de trabalhar, achava que não tinha nada melhor a fazer. Nos momentos de folga ia às feiras e festas, profícuas no berço dos celtas.
Ah, que tempos felizes! Nem mesmo as crises financeiras, a estupidez que lançara o país à recessão abalava sua moral. Se ouvia alguém orando aos céus, pedindo a solução para os problemas que afligiam seu povo, logo intrometia: arbeiten, arbeiten und arbeiten. Um prato por dia, dizia sempre, continuava valendo um dia de sobrevida e poderia ser retirado de qualquer quintal. Se alguém se dispusesse a fazer alguns tijolos em troca de algumas refeições, a economia estaria imediatamente recuperada, sem os melindres dos burocratas.
Ah, que tempos felizes. Lhe arrancava lágrimas ver uma criança tomando uma sopa, após um dia ou dois sem ter direito o que comer. Fosse judia, cigana, cristã, pagã, muçulmana, não importava. Bateu à sua porta, não sai sem suas necessidades satisfeitas. Por tudo isso era popular. Tinha o respeito da comunidade.
Mas no orbe terrestre, a felicidade é efêmera. Por tudo o que disse, tinha também a reprovação dos insanos, daqueles que insistiam em tomar um alvo para descarregar as argruras pelas quais passava apátria do trabalho. Para esses, trabalhar não bastava, era preciso trabalhar contra seus desafetos, ainda que nada lhes tivessem feito.
Ah, que tempos felizes! Essa gente medonha não tinha voz. Ainda que fazendo papagaios com o dinheiro corroído pela inflação, continuava-se a viver. Todos continuavam lutando, se recusando a dar a vitória de bandeja à morte.
Mas no orbe terrestre, a felicidade é efêmera. Veio uma voz em socorro dos insanos, falando a mesma língua, veio de fora, de outro reino. Veio dar uma direção perigosa a uma situação que, mesmo reversível, era tensa. A voz pôs veneno no rio Elba, envenenou a cerveja e todos ficaram surdos. ninguém ouvia senão àquela voz malígna. Então a roda girou ao contrário. Reergueu-se a matéria, mas o espírito ficava cada vez mais doente, delirante. Dormia-se em cama de faquir, acreditando que fosse de plumas, sem sentir o sangue escorrendo, do qual se alimentava a voz malígna.
Oh, que tempos tristes! Precisou abandonar as longas saias bordadas, as mangas bufantes, seu lindo vestido azul... e sua família.
A roda estava girando ao contrário e atropelava aqueles que, só querendo tocar suas vidas, continuavam a andar com o relógio. Era preciso tirar toda essa gente da frente e levar a campos mais seguros.
Foi assim que a moça popular e atraente se tornou subversiva. Pois subverter era, então, fazer o que era certo. Tal qual seus pais lhe ensinavam em sua infância, de educação severa, mas muito amorosa. Quando aprendera as prendas domésticas, o trabalho árduo, a dignidade pelos costumes austeros de seu povo.
A moça de cabelos negros, que rechaçava a fama, era então famosa. A moça prendada, de modos educados, agora corria, saltava e até matava, para não morrer. A moça de vestidos elegantes e pudorosos, via-se obrigada a correr de pernas à mostra, para não ser alcançada, usar as calças que odiava, as botas das quais nem queria saber, até então.
Tornou-se heroína. As vidas que salvou, a esperança que fomentou, a confortável vida na roda maldita que recusou. Seria rica, se quisesse; esposa de altos oficiais, se quisesse; teria empregados, se quisesse; seria heroína da pátria, se quisesse. Mas era heroína dos perseguidos, da pátria corrompida era traidora, maldita, prostituta dos judeus e da raça impura, a que dormia com negros e ciganos e pagava com a vergonha ariana.
Mas que falácia! Não queria ser heroína, nem mártir, nem coisa alguma mais do que era quando a cruz enlouqueceu e retroagiu. Queria a vida que tinha, seu marido, sua família, seu trabalho e seus planos para a velhice. Deixava para chorar quando estava só. No resto do tempo precisava dar esperanças aos que ajudava.
Sua cabeça estava a prêmio. Nenhuma surpresa. Nenhuma ruga de preocupação. Já estava preocupada demais, sua vida se tornara perigosa demais. Era apenas mais um detalhe feio e demoníaco da roda corrompida, que combatia sem nem saber o preço que estava pagando. Tinha a certeza de que se parasse para calcular, choraria em desespero e correria enlouquecida e sem rumo. Apenas trabalhava.
Mas o calo que mais dói sempre tem preferência. A encontraram. Sem escolha, mandou seus tutelados para um lado e correu para o outro, chamando atenção. Sem pensar, apenas atrasando ao máximo os perseguidores. Não sabe se seus tutelados se salvaram, sabe que foi pega. Desnecessário dizer dos abusos que sofreu, da violência maior que cometeram. Mas as ordens eram de levá-la para execução à Berlim, quando capturada. Ninguém mais sabia da captura, então relataram que reagiu, os desarmou e por isso foi estrangulada.
Houve festa pela morte da traidora, a prostituta da sub raça. Mas a roda corrompida cobrou seu preço, e já não havia a heroína a levantar a moral do povo.
Foi-se o corpo, só o corpo.