28/03/2009

Flautas azuis


Não é todo dia que gosta de sair de casa. Guitarras desafinadas em bemol a irritam, o trânsito urbano não costuma tocar outros tons, nem outra cor que não seja cinza esmaecido. Se bem que, às vezes, tudo flui em um baixo de notas verdes e sedosas, mas não é com o que pode contar.

Tudo bem. Vira a chave e os losangos de cimento ficam azuis-escuros. Um carro tão novo, já precisando de reparos! Se lembra dos losangos de couro bege que o Opala de seu pai solta, ao dar a partida, e já tem mais de vinte anos de uso. Mais uma vez e os losangos são de madeira crua, que é o normal daquele violão de seis cordas que nunca afinou direito. Sai, olha para os lados e acelera, senão não consegue ganhar a rua.

A fumaça dos ônibus são tão ásperas que o fedor fica em segundo plano, pensa em comprar um equipamento de mergulho para poder respirar espheras macias de gel ou espuma. Fora que o ruído que soltam tem um cheiro de azoto irritante. Aliás, pensa em comprar um carro grande, esses ovinhos europeus não impõe respeito a ninguém.

Lá está aquela esquina de mosaicos. Parece que são sempre as mesmas pessoas que a atravessam, sempre com triângulos e retângulos, sempre com cores terrosas, sempre desafinadas e sufocantes. Uma vez viu uma senhora nos seus setenta anos, emitindo cubos de bordas arredondadas, em tons mutantes de dourado e cheirando a rosas brancas. Mas foi a única vez. O pior é que não adianta fechar os vidros que não é cheiro que o nariz sinta.
Ah, beleza! Um bocó bateu na traseira do ônibus que estava saindo. Agora a rua está bloqueada e ela precisa chegar à escola. A cacophonia dos curiosos irrita mais do que o atraso iminente. Olha para os lados, para trás, tudo tomado de carros. Aliás, brinquedinhos. Carros, sempre diz, são os americanos. Ninguém aprende baliza sem ter estacionado um Caprice, um Cadillac. Houvesse educação, os carros poderiam ser grandes à vontade.
Entregam-lhe um panfleto. Mas evita ler. Poucas cousas dão mais dor de cabeça do que letras coloridas, elas já têm suas próprias cores. Não demoram e vão querer colocar cheiro e som também, quem sabe um sabor de limão na letra "B". Desde quando "B" é verde? "B" é azul turquesa, cheira flores do campo, tem gosto de pão quente, et cétera.

Uia! Uma passagem! E só ela está vendo. Enquanto os curiosos atrapalham a perícia, deixam um espacinho grande o bastante para o Fiesta passar, e passa raspando. E que maravilha! O congestionamento lá atrás deixou a pista livre, cheia de serpentinas coloridas e toque aveludado. Engata a quinta e o violão desafina menos. Quinta a menos de setenta por hora poupa muito combustível.

Apesar de tudo, chegou em cima da hora. Quando a sirene toca. Não sabe do que os outros reclamam. É estridente, mas é útil e toque arenoso reconforta. Entra e, como previsto, nem todos chegaram. Espera com os outros, mas evita olhar para aquele pezinho que toca uma ladainha de violino; Do-Re, Re-Do, Do-Re, Re-Do... Ah, que vontade de fincar um prego naquele pé e prender ao chão, para que fique quieto! Pior que nem adianta reclamar, os outros não ouvem. Chegou o que convocou a reunião, com aquela pança que faz "bum, bum, bum, bum, bum..." a cada passo que dá, parece um bumbo de plástico.

Meia hora para dizer que "A escola precisa mudar", mais meia para dizer que "O governo federal menospreza a educação", mais meia para dizer que "Precisamos ter motivação para o trabalho". Como odeia retóricas. Retórica fede. Pode até parecer bonitinha, mas é vazia, tem água parada e solta metano. Só é objectivo quando pede votos, mas daí a reunião terminou e tem mais o que fazer. Vai embora.

Olha o relógio, não há mais tempo para fazer nada. Vai pagar multas, perder hora no salão, o banco já fechou, enfim. Mais uma reunião inútil de um reitor inútil, que só serve para um sindicato inútil, que só faz passar a mão nas cabeças dos inúteis. Gente que trabalha de verdade não lhes interessa.

E agora? Estaciona em uma vaga que encontra e pensa. Suspira. Olha para as contas que a reunião de engodo não permitiu pagar, liga para avisar e remarcar horários, agora desaba no banco de couro. Faz tantos anos que sua vida pessoal é dentro de um carro. Não é justo. gastam uma fortuna para trazer artistecos para um showzinho fechado, sem qualquer divulgação, mas não há uma verbinha sequer para as formaturas, para mais três assistentes sociais, nem para consertar os equipamentos do consultório, estes acabam saindo do seu bolso, se quiser que os alunos tenham um bom atendimento. Aquilo já foi uma instituição séria.

Acorda com toques de flautas azuis. Estranho, uma cutucada no vidro dar essa sensação tão boa. Olha para fora e vê um amigo, então as flautas disparam e o cheiro de relva fresca se espalha. Fazia tempo que não o via, ele estava em péssima situação, mas agora parece óptimo. Pois está, a ponto de convidá-la, tomando ciência da situação, para uma pizza. Lhe mostra seu carro e, que beleza, é um Mustang. É escoltada até sua casa, onde seu carro fica, e levada à pizzaria. O ronco daquele V8 é um piano de cauda aveludado, morno e aconchegante. O interior com plásticos nobres, couro nobre, madeira nobre, tudo mesclando maestralmente hexágonos lilazes com círculos brancos. É a primeira vez em anos que viaja de carona, sem precisar prestar atenção no trânsito, se permitindo a displicência salutar de quem já está esgotada. Toca Isabelle Boulay no MP9 do carro. Vê que o bom gosto dele permanece, mas agora se permite algo mais contemporâneo, embora o algodão amaciado da cantora não seja exactamente uma novidade, mas cheira a ibisco selvagem. Está amando cada segundo desse descanso mais que merecido, dessa conversa amena e agradável, das texturas, cores e formas que ela lhe permite. Ser sinesteta é um suplício em meios hostis, mas naquele momento é o mais próximo que alguém pode chegar dos anjos.

Entram em um estacionamento e ele abre a porta. Rosas exalam seus perfumes com aquele gesto. Ah, o ambiente da pizzaria é um aconchego só. Os odores de vários polígonos e cores são de linho fino, daqueles que dá vontade de acariciar e passar no rosto o dia todo.
Mais um grande prazer, fazia muitos anos que um homem não lhe pagava a conta, ainda mais sem qualquer insinuação maliciosa. "Tous les trains,Tous les bateaux,Tous les avions Ne m'emmèneront Jamais assez loin..." O refrão já foi triste, agora tem um sabor de liberdade verde e suave como não sabe o que é. Também pela primeira vez em muitos anos, está sem obrigações a cumprir para ontem. As contas já venceram e segunda-feira pagará extra, não tem jeito. Então aproveita, pede por um passeio à ermo pela parte bonita de Goiânia, pois a feia tem que freqüentar todos os dias e já está farta, farta de rodas dentadas e enferrujadas exalando ovo podre, de cimentos cinzentos e desafinados, de gestos cacophônicos e fedorentos. Chora, mas precisa mesmo chorar. O choro passa rápido e a noite se estende pelo fim de semana.

Chega no domingo à missa com uma carga muito menor, menos a pedir e mais a agradecer. Afinal tem amigos à quem pode recorrer, companheiros de fé que lhe tocam flautas sempre que precisa, ainda mais aquelas flautas azuis que um cavalheiro de verdade toca sem perceber. E olha ele lá, no banco da frente!

21/03/2009

Mesmo lugar, outro lugar

A cidadela oprimia, sufocava todos os seus sonhos, seus devaneios e seus desejos.
Queria ser livre, não dar satisfações, não ter hora para voltar, simplesmente pegar uma mochila e sair pelo mundo.

Era, porém, muito jovem. Tinha rédeas a segurá-la no lugar, para que não saísse da linha, para que fosse moça de família e respeitasse a sociedade.

Sem escolha, ninguém aprende. Não teve oportunidade para servir de pronta vontade, sempre obrigavam previamente, faziam compromissos à sua revelia e a beliscavam por trás, para forçar um sorriso à photographia.

Mas o que é a força sem o respeito? Ela acaba e só fica este. Respeito é via de mão dupla, mas o retorno foi bloqueado e a maioridade se recusou a permanecer.

Deixou o quarto como estava, não se sentou à mesa para o desjejum, não voltou para a festinha de aniversário, não deu satisfações nem a si mesma. Se escondeu na carroceria do primeiro caminhão que viu, no meio da carga de bananas, sem saber para onde iria, só com a identidade e a roupa do corpo.

Dois meses e meio pouco tendo o que comer, dormindo onde se arranjava, pegando roupas descartadas e estudando as pessoas. Estava no buraco, mas estava sobre suas pernas, de livre arbítrio e ciente das conseqüências que já sofria. Sofria por suas escolhas, não pela imposição alheia. Esta certeza lhe consolava o coração.

Juntou alguns trocados ganhos em biscates e comprou um vestido usado, lavou e cortou os cabelos, passou um batom e foi fazer panfletagem. Já conseguia comer todos os dias o suficiente para se manter saudável. Abandonou a carcaça de ônibus em que morou para viver nos fundos de uma residência.

Viajou de novo, desta vez com destino, para outra morada e outro emprego. Fazia já um ano que tinha saído de casa. Casa? Sua casa era o mundo, sua família era ela mesma e sua liberdade o único bem que prezava.

Conseguiu estudar, se formar e se firmar. Compromisso somente com aquilo em que acreditava, não com pessoas ou seus dogmas. Às vezes a voz humana a irritava profundamente, a ponto de decidir se aventurar de novo.

Atravessou o Atlântico, saracoteou pela França e se estabeleceu em Dinnan, onde aprendeu bretão e lecionou português. Os empresários pagavam caro pelo curso, mas se saíam melhor nos negócios. Ela sabia o valor de seus préstimos e não fazia abatimentos.

Se mudou para Dublin, aprendeu gaélico, se encheu de cultura e estudou as tradições celtas. Por lá ficou seis anos. Seis anos de inesperada calmaria em sua sanha aventureira, estabelecendo laços inesperados, romances inesperados e uma serenidade inesperada. Já não estava totalmente no comando, mas não reclamava. Estava em seu pleno arbítrio.

Mesmo todos os cuidados podem não funcionar o tempo todo. Veio uma gestação e a muralha de granito se transformou em manteiga. Já aceitava mimos, cuidados, recomendações e todo o amparo que os irlandeses disponibilizavam.

Mas a paz acabou. Um passo em falso e rolou trinta degraus escada abaixo. Sofreu um aborto e ficou dois meses internada. Um para curar o corpo, um para tratar da pessoa.

Foi Para San Francisco, cheia de bagagem, mas nada de material. O que o dinheiro comprou, deixou para os amigos em Dulin. Dois anos passaram, recebeu uma proposta e foi para Nova Iorque, organizar shows na Broadway. Cinco anos com pouca, às vezes nenhuma vida pessoal, até virar de vez a página da perda.

Casou-se com um motorista de limousine. A distância econômica que os separava era enorme, mas não há cousa que uma boa esposa não consiga de e para um bom marido. Foi sua vela e seu leme, o fez prosperar e calou as bocas levianas que o chamavam de gigolô. Dois filhos.

Passou a ajudar a família, sempre foi desapegada e generosa. Chegou a trazer os pais para que conhecessem os netos. Mas não aceitava os convites para voltar à cidadela onde nasceu, ainda não era hora.

O que aprendemos vem de Deus, o que sofremos vem do homem, às vezes das próprias mãos. Perdeu filhos e marido para atiradores ensandecidos, dentro da escola.

Um ano às custas de anti depressivos, a tragédia calou os que criticavam a violência no Brasil, mas não se consolava por isso. Foram mais cinco anos sem vida pessoal. Mais um até conseguir virar a página.

Voltou para o Brasil, se estabeleceu em Curitiba. Abriu um restaurante irlandês, com o funcionalismo à caráter e arranhando bem no gaélico. Não fez propaganda convencional. Chamou gente conhecida que passava pela cidade para a inauguração, mandou e-mails para quem realmente interessava e a casa ganhou fama pelos próprios fregueses. Não tolerava certas músicas lá dentro, queria alegria, ainda que serena, mas muita alegria. Queria que os comensais saíssem mais felizes do que entrassem. Trazia artistas de boa estirpe quase desconhecidos na região, contribuindo para a divulgação da cultura com conteúdo e espalhando a boa fama da casa. Literalmente casa, morava no sótão do restaurante.

Abriu uma filial em São Paulo, três anos depois de inaugurar a matriz. Foi preciso muito choro para a convencerem a abrir um no Rio. Mas longe da algazarra do centro, abriu em um bairro de classe média tranqüilo e com o seu público alvo por perto. Tudo sob a sua rigorosa supervisão.

Depois dos quarenta anos, voltou à cidade natal. A garota maluca e semi-nua que se destrambelhou pela estrada, voltou uma mulher madura e depurada, até mais bela. Já não tinha mais os pais, reformou e se instalou na casa onde nasceu. Os poucos amigos que disseram "Vá atrás da tua vida" encheram a sala de lágrimas, alguns temiam nunca mais vê-la. E realmente nunca mais verão. Não é a mesma pessoa, assim como aquela não é a cidade que a oprimia. Ambas mudaram muito.

Para os que calçaram luvas de pelica para tocar no assunto, ela avisa que está aberta à constituição de uma família. O que passou está no passado e não vai assombrá-la. Leva a todos para a varanda, às poltronas de vime, para falar e ouvir, repassar suas experiências cosmopolitanas e receber as dos amigos. Estes, no fim das contas, sempre foram sua única família.

14/03/2009

Mini buggy e olhe lá!

Serei franco às últimas conseqüências: Sou um motorista medíocre. Faz quase dois anos que não pego o volante e estou destreinado. Sou ciente disso e nunca abusei, jamais achei de dava para passar antes do sinal vermelho, que o pedestre iria ficar paradinho enquanto eu percorria os duzentos metros que nos separava, et cétera.
Se a habilitação tivesse um limite individual de velocidade, eu dificilmente poderia passar de noventa por hora.

Mas a maioria certamente ficaria abaixo de oitenta. Não por inabilidade, não por falta de prática, mas porque a maioria ainda usa o carro como uma armadura, ou a motocicleta como um cavalo de batalha. Tirou a carteira, mas não se tornou motorista.

Hoje mesmo testemunhei um acidente na entrada da praça Walter Santos, Setor Coimbra, aqui em Goiânia. Um senhor (do tipo que acha que sabe tudo sobre direção e não precisa do código de trânsito) converteu abruptamente à direita sem dar seta, atingindo um casal que subia em uma confiável, mas frágil Honda Biz. graças à Deus nada de grave aconteceu ao casal, mas o motorista, antes de mais nada, procurou sinais de danos no carro, para depois apontar o sinal verde, crendo que isto o autorizava a dispensar a seta. Este não poderia passar dos cinqüenta por hora, nem dirigir carros com mais de oitocentos quilos de peso bruto. Os capacetes evitaram o pior.

Eu já perdi as contas de quantas vezes um idiota saiu repentinamente detrás de outro carro, quase me colhendo em cheio. Já nem me asusto, só pulo para trás e espero passar.

As leis de trânsito dificultam em demasia a obtenção da licença, barram iniciativas e desestimulam inovações por parte de particulares, mas deixam livres leves e soltos os maníacos psicóticos. As entrevistas psicológicas são tão rápidas que não é possível ver se o candidato tem aquela característica como predominante, se é apenas um surto de civilidade ou se trata de um grande actor à espera do papel de sua vida, o de motorista louco.

Sou a favor de liberarem os chamados mini buggies para uso urbano. São muito mais seguros do que essas motoquinhas importadas com motor de enceradeira. Temos uma tradição muito sólida, marcas já consagradas e com ampla assistência técnica, como a Fapinha e outras quase desconhecidas do grande público. Para a maioria das actividades de um cidadão comum, esses carrinhos são mais do que o suficiente, para a capacidade de dirigir da maioria eles dão e sobram.

Quando falo em "dirigir", não me atenho ao aprendizado de técnicas de direção, memorização das leis de trânsito, nem da pilotagem profissional. Uma criança pode aprender isso e ninguém com menos de dezesseis anos deveria se sentar ao volante de um carro normal. Incluo a capacidade do motorista para reconhecer e respeitar os próprios limites, bem como o espaço do outro; de reconhecer que a lei é para todos e deve ser sempre respeitada, até que se consiga mudá-la; de reconhecer que um carro aos pedaços pode ser reconstituído, uma pessoa aos pedaços não. Inclusive a capacidade de reconhecer que a pessoa não deve se ferir, muito menos ficar em pedaços. Um carro é uma máquina muito forte, mesmo os menores.

Decerto que há motoristas de alto nível, que poderiam dirigir em qualquer velocidade, mas são raros. Gente consciente e habilidosa para quem um Lamborghini não seria desafio algum, que o conduziria a trezentos por hora com mais segurança do que muitos o fazem a cem em um Chevette Júnior. São rarefeitas exceções.

Há muitas pessoas que memorizam os testes psicológicos e as leis de trânsito, confiando que dirigem ilegalmente desde criança, para tudo ir pela descarga assim que a habilitação sai. Eu tenho sérios problemas de memorização, mas sei perfeitamente que não se deve estacionar em esquinas, há três metros de distância a serem guardados. Uma das regras mais inteligentes da legislação, mas que custa prejuízos diários a muitos "dirigidores" insanos por ser ignorada. Esquecem de que não estamos nos Estados Unidos da América, onde as ruas são muito largas e o trânsito muito menos perigoso. Por cá muitas ruas nem deveriam permitir o tráfego de caminhões, de tão estreitas, mas muitas delas têm mão dupla. Um motorista de verdade sabe raciocinar com esses dados, então grande parte da população não é motorista.

Experiência é algo bom, mas sozinha não ajuda muito. Tenho notícias de um burro que, de tão acostumado com a jornada diária, entrega o leite sozinho em uma cidade do interior de Goiás. Vai, distribui de casa em casa e volta com o pagamento. Interessante, mas não deixou de ser um burro. Ele não sabe de verdade o que está fazendo, simplesmente tem experiência e repete passo a passo o que aprendeu com o dono. Assim são muitos dos que têm habilitação.

Para a maioria até a Romi Isetta seria perigosa, imaginem a velocidade que alcançaria se ainda fosse produzida. para boa parte da população um mini buggy é carro suficiente, e olhe lá.

07/03/2009

Como vejo a beleza

Há uns anos percebi que vejo as cousas de modo diferente, inclusive meus padrões estéticos destoam completamente do padrão vigente. Não se trata de uma simples opinião, pois esta muda e meus padrões de beleza têm sido longevos. Se trata da maneira como enxergo o mundo.
Entender como minha cabeça lesada funciona, é trabalho para Jesus Cristo e ninguém menos do que Ele, então me aterei à explicação de como enxergo a beleza... Pelo menos tentarei.

A maioria das pessoas enxerga as partes. Eu também vejo as partes, mas não só elas. Ovo, farinha e água, jogados no forno, não viram bolo. É preciso unir os ingredientes de forma harmônica e precisa, então assar de modo adequado e na temperatura certa, sem exceder nem tolher o prazo previsto para a feitura.

Do mesmo modo vejo um rosto feminino. Vejamos Audrey Hepburn. Se olharmos as partes, ela é um rosto bonito, nada além disso, até comunzinha. Se caricaturada fica parecendo uma camundonga. Mas que camundonguinha linda! Analisando os elementos do rosto, o nariz se destaca, mas ele combina tão bem com o formato do rosto, os olhos amendoados, a boquinha tristonha, e tudo é tão bem proporcionado e distribuído, que resultou num rosto lindo. Uma série de elementos apenas bonitos, arranjados de modo adequado, "enlindeceram" a diva.

As donas de casa que porventura estiverem lendo isto, sabem como um tempero ou um cozimento podem salvar um prato. O mesmo é com a beleza.

Não basta (nem adianta) olhar para os olhos, depois a boca, depois o nariz, depois as bochechas. Muito menos fixar olhares no baixo ventre. Causa impacto inicial, sim, mas quem vive de impacto é técnico de crash test. O impacto passa e só fica o estrago, como sempre acontece com os modismos.

Assim como um bolo não é cada um dos ingredientes, mas todos eles unidos e trabalhados, uma pessoa é muito mais do que as partes mais belas de seu corpo. Acreditem, Angelina Jolie não é só uma boca carnuda, Brad Pitt sabe e não se preocupa em divulgar. Fosse só isso, não teria se tornado a mãezona que é e o divórcio teria saído há muito tempo, porque ela é muito temperamental.

Não se pode exigir de um adolescente que veja o conjunto e admire o resultado. Embora haja as precoces e felizes exceções, os adolescentes só conseguem ver o que se destaca, é da natureza da idade. Só que eu nunca fui uma pessoa típica do meu meio, nem uma criança típica da idade. À margem dos estragos que isso me custou, aguçou meu senso estético e prático, passei a ver a verdadeira utilidade da beleza e asseguro, é muito maior do que o vulgo imagina. A maquiagem passou a ter bem menos efeito para mim, ela até destaca ou disfarça, mas é só.

Passei a ver a beleza que as rugas e o cansaço tentam esconder. Conseguem fazê-lo da maioria, mas não de mim. Para olhos treinados, as linhas da juventude se revelam debaixo das marcas da idade, a senhora simpática passa a exibir traços de beleza que constrangeriam muitas menininhas, se lhe fosse permitido ser bela. A sociedade acha que depois dos cinqüenta não se tem direito à beleza, daí tanta artista já ter carteirinha de sócia de clínicas de cirurgia plástica.

Da mesma forma, reconheço os traços delicados que uma vida dura e injusta tenta esconder sob as expressões severas e desesperançadas de uma mulher sofrida. Olhem bem, eles estão lá. Se ela pudesse exibí-los, seria uma beldade aos olhos destreinados.

Não sei se estou sendo claro o suficiente, talvez (quase certeza) não, mas estou sendo o mais claro que consigo.

Até acho algumas top models bonitas, mas nem de longe vejo motivos para tamanha paparicação. Elas têm impacto, talvez, mas não me impressionam. Elizabeth Savala é uma mulher muito bonita, que não tem sua beleza refinada devidamente aproveitada pela televisão. Exploram o talento dela, que é uma vilã e uma sofredora sem par, talvez porque o público actual não saiba apreciar uma beleza desse naipe. Para mim, não sabem dar-lhe papéis que respeitem sua beleza. A idade? Já falei disso lá em cima.

Como eu adquiri esse padrão é algo muito difícil de explicar. Posso dizer que ele se baseia na anatomia humana. Não muda com o tempo e a moda porque não me apego às opiniões, muito menos às minhas, que são ranhetas demais. Vejo o equilíbrio de traços e proporções com a mesma facilidade com que a maioria fixa olhares nos glúteos. Como consigo? Dois ingredientes: idade e vontade.

Idade porque só o tempo ensina a valorizar as cousas boas da vida, dá maturidade para aprovietá-las devida e intensamente, além de nos fazer reconhecer os limites que nos permitirão usufruir ad infinitum.

Vontade porque as velinhas do bolo não ensinam absolutamente nada. Podem colocar um livro de philosophia no lombo de um burro que ele continuará sendo um burro, só quererá pastar e copular. Ê, vida besta!

Isso se estende também aos objectos. Todo mundo baba por causa do "novo Vectra". O acho feioso. O antigo parecia um rosto feminino, delicado e com um olhar petulante, mas convidativo. O novo parece um cão raivoso mostrando os dentes, fora que ficou anguloso e perdeu em aerodinâmica. Mas causa impacto, agrada ao público alvo, do qual fui involuntariamente excluído.

Mas como já disse, sou atípico. Meus padrões só servem (provavelmente) para mim.