18/12/2013

Mais divagações - Uma parábola


É como viajar por uma longa estrada. Por mais atento que seja o viajante, ele não vai conseguir notar todas as nuances da viagem. Na realidade, nenhum conseguiria perceber todos os pontos marcantes do caminho percorrido, aqueles que caracterizam cada trecho que o distinguem dos demais. Para conseguir uma coleta considerável de dados, seria necessário dedicar a vida inteira à pesquisa, para deixar à posteridade a tarefa de estudar e tirar conclusões. Ainda assim  não se conseguiria ver todos os gradientes.

Há o agravante de que, mesmo que dois viajantes sigam juntos e observem os mesmos ítens, eles não chegariam às mesmas conclusões. Concluir uma linha de raciocínio depende do arcabouço com que o indivíduo pode contar, o que inclui sua história, sua personalidade, seu aprendizado e a maneira como se relaciona com tudo isso e com o mundo. Nem mesmo gêmeos univitelinos nascem com a mesmíssima história pré-natal.

Disto nascem as discordâncias. O modo como se viajou seria o ponto de vista, que é a maneira como o indivíduo consolidou sua maneira de compreender o mundo e a si mesmo. Por isso duas pessoas que passam pela mesmíssima situação, podem e geralmente têm pontos importantes em que divergem , tanto das causas quanto do desenrolar e das conseqüências daquilo pelo que passaram.

A forma mais simples de entender isso, é observando uma das leis mais elementares da física: Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no tempo e no espaço. Com isso, uma viagem a dois, por exemplo, pode terminar com um contando detalhes de que o outro não se apercebeu, e talvez até duvide que estejam pelo caminho.

Por exemplo, uma família que viaja em seu carro conversível. Adultos na frente, acriança atrás. O motorista estará atento à estrada, sua conservação, suas curvas, os carros pelos quais passa, a possibilidade de chuva e o cair da tarde, além de monitorar a sinalização, o painel e o funcionamento do veículo. Sobra-lhe pouco tempo para apreciar a paisagem, e ele só poderá fazê-lo muito rapidamente, o que significa que só atentaria para o que o carona lhe alertasse ou o que lhe tivesse muita afinidade.

O carona, mais livre, não teria tanta atenção à sinalização e ao veículo, não no tocante ao seu funcionamento; até porque o posto de motorista é imprescindível para ter plena ciência de tudo isso. Mas estaria livre para dar atenção aos detalhes do interior do carro, seus odores, texturas e acabamento, assim como poderia apreciar a paisagem e ainda ficar de olho nas crianças. A presença física do motorista, porém, lhe tolheria boa parte da visibilidade do lado oposto, pelo simples facto de ele estar lá. Não se poderia culpá-lo, é necessário que ele esteja lá.

As crianças teriam ainda mais liberdade do que no carona, ainda assim a presença de um limitaria a do outro. Um não poderia dizer se um lado do banco é mais macio ou está melhor conservado, porque o outro está lá, assim como a partir de certa estatura, a cabeça do outro o impediria de apreciar todos os elementos da paisagem. Sendo crianças, a facilidade com que se dispersam faria qualquer coisa pelo caminho lhes tirar a atenção do que estavam vendo, fazendo-os perder alterações de nuances, como uma revoada por exemplo.

Um elemento extra pode ser inserido, o indivíduo que muitas vezes mora em algum lugar do caminho. Bem, para ele aquele ponto não é o caminho, é a chegada. Ele conhece como ninguém a parte em que habita, mas não pode dizer absolutamente nada a respeito daquele carro que passa e de seus ocupantes, provavelmente nem do lugar de onde saíram e aquele para onde vão. Suas conclusões a respeito, provavelmente, seriam meras especulações.

Diante disso, vamos imaginar que um dos viajantes, algum dia, leve em seu carro outros passageiros pela mesma estrada, que suponhamos que ele tenha percorrido várias vezes. Ele a conhece bem, até certo ponto. Bem a ponto de não se perder, porque talvez jamais saiba da existência de moradores ao longo de sua extensão. Digamos também que ele consiga um motorista baixo o suficiente para não comprometer sua perspectiva do lado oposto, assim podendo explicar a todos o que sabe a respeito de ambos os lados da estrada, que por pouco que tenha mudado, mudou inexoravelmente com o tempo.

Do que já não mais estiver na paisagem, o veterano terá que buscar impressões de sua memória, que estará subordinada ao seu julgamento. Os outros, até conhecerem bem a estrada, não terão alternativa a não ser acreditar nele. Daquilo que cada um observar, porém, cada um poderá tirar suas própria conclusões, embasadas em seus próprios históricos e personalidades. Não se trata de simplesmente contestar pelo prazer do exercício da contestação, não é o que trato neste texto, mas a conclusão diferenciada pelo facto de que a experiência individual, ainda que compartilhada, jamais é idêntica a de qualquer outro.

Digamos agora, que tenhamos três passageiros no banco de trás, todos com mais de uma viagem naquela estrada e cada um com algumas conclusões próprias. Um deles dará atenção aos relatos do veterano, e as comparará com a paisagem que se lhe apresenta pelo caminho. O outro prestará atenção unicamente à paisagem, talvez focando o que lhe for mais aprazível ou urgente. O terceiro talvez tenha picos que o façam olhar mais para o dedo do veterano do que se concentrar em suas palavras, e talvez quase nada na paisagem.

Ainda que todos prestassem atenção à paisagem, à explanação ou ao dedo, cada um teria suas próprias conclusões, porque cada um estaria em um ponto do carro e ouviria de uma forma diferente, além das influências pré existentes. Mas digamos que cada um tenha se atido a um aspecto dessa viagem.

O que prestou atenção ao conjunto não terá certeza de tudo o que foi dito, nem de tudo o que poderia ter sido visto. Detalhes como entonação e algumas flores, lhe terão passado desapercebidos, provavelmente seria taxado de alienado e louco pelos outros. Ele não poderá contestar pontos que os outros dois vierem a colocar, mas poderá comparar com suas observações mais amplas e decidir se elas fazem sentido ou não.

O que observou tão somente a estrada, tenderá a contestar grande parte do que o veterano disser, porque coisas que ele viu já não estariam mais lá, também porque talvez ele tenha visto a casinha escondida entre as árvores, e concluído que lá mora alguém. O veterano vai contestar, dizendo que jamais viu casinha alguma e uma guerra poderá começar.

O outro, que se concentrou mais no veterano do que em tudo mais, talvez só nele e em nada mais, tenderá a crer cegamente no que ele disser. Saberá de cor e salteado cada palavra, cada nota, cada intervalo e cada momento de reflexão, que poderá usar como arma para desmentir os outros dois. Dependendo do grau de confiança, poderá negar até mesmo o que ele mesmo observar e até mesmo suas próprias conclusões, porque o veterano conhece a estrada e suas viagens sempre deram certo, então não aceita que o contestem.

O que há em comum com os dois últimos, é que eles tendem a se considerar lúcidos, e aos outros, cegos e alienados. Eles te darão argumentações contundentes, talvez acompanhadas de discursos apaixonados, afirmando que seus pontos de vistas são verdades, e que quem não chegar às mesmas conclusões, é inimigo de suas ideias mais caras. Aquele que fez as observações mais amplas e poderia ser a ponte entre os dois, poderá ser taxado de alienado e mancomunado com o lado oposto.

Também há, claro, a hipótese de que o viajante veterano em questão seja menos orgulhoso e aceite ouvir cada um, raciocinar a respeito e unir os três naquilo que lhe seria o mais plausível. Então os três novatos poderiam pesar suas conclusões sobre a estrada e fazer uma história útil, ainda que pequenas divergências permanecessem, porque permaneceriam. Mas viajantes assim são raros, os do parágrafo anterior é que povoam o mundo.

06/12/2013

Um canto de natal

Image from Sacred Mundane
Aconteceu há muitos e muitos anos, durante o rigoroso inverno americano, quando a nevasca já tinha feito o estrago que tinha a fazer.

Um figurão do show business e seu amigo andavam no início da noite, conversando sobre seus dramas e seus planos para o ano que se anunciava.

Homens bem sucedidos, o sucesso conseguido trouxera também problemas da mesma envergadura, muitas vezes oriundos do próprio seio familiar. Ninguém parecia satisfeito com o que ganhava, tudo o que lhes era oferecido parecia pouco, era como jogar cimento em um buraco negro, ele ficava mais faminto quanto mais matéria recebia.

No decorrer da conversa, viram uma cena estranha, dois garotos despontavam no cenário glacial, sem a companhia de qualquer adulto. Via-se, pelas roupas, que eram crianças pobres. O mais inusitado é que um deles estava carregando o outro, visivelmente cansado.

A cena fez os dois homens esquecerem seus problemas, naquele momento. Bem agasalhados e bem alimentados, interpelaram o menino que carregava . Queriam saber por que estavam àquela hora naquele lugar, sem seus pais...

- Estamos indo para casa, senhor.
- Mas é muito tarde para vocês estarem na rua, sozinhos.
- Esse menino está bem?
- Sim, senhor, obrigado. Ele só está cansado, por isso eu o estou carregando.
- Não está muito pesado?
- Ele não é pesado, ele é meu irmão. Eu sou forte o bastante para carregá-lo.

Os homens ficaram atônitos, porque os dois não se pareciam em absolutamente nada. Talvez fossem filhos de mãe solteira, talvez alguém os tenha acolhido porque não tinham mais ninguém, e acabaram se adoptando como irmãos.

Talvez não tivessem realmente para onde voltar,  talvez nem mesmo para quem voltar. O certo é que o menino não reclamava de ter que carregá-lo, embora seu corpo protestasse visivelmente, parecia que já tinha caminhado muito e talvez não tivesse tido uma refeição decente.

Só tinham certeza de que aquele garotinho faria tudo o que estivesse ao seu alcance, para que o outro estivesse bem. E longe de qualquer amargura, ele dizia sorrindo "É meu irmão". E eles se lembraram de mensagens já esquecidas, soterradas pelo consumismo egoístico e pela animosidade mútua, que diziam reiterada e repetidas vezes que seu irmão é o seu próximo.

O garoto que levava o outro foi se despedindo, disse que ainda havia um bom pedaço a ser percorrido e não queriam chegar tarde demais, até porque o avançar da noite derrubaria a temperatura, comprometendo a sobrevivência dos dois. Ele desejou feliz natal aos dois e seguiu. Os dois homens ficaram paralisados, quase que envergonhados pelos problemas de que reclamavam.

Alguns dizem que eles observaram os dois se afastando até desaparecerem na paisagem, como que observando um mestre saindo da sala, após uma aula. Outros que lhes ofereceram carona, temendo que se ferissem ou se perdessem naquela noite. O certo é que os dois homens não voltaram a dar aos seus problemas o poder que davam até então.

A história, cercada de muitos folclores, é real. Dela nasceu uma das canções mais belas e mais cultuadas do século XX, e faz as pessoas meditarem ainda hoje. Gravada por The Hollies nos anos sessenta, e depois por Bill Medley nos anos oitenta, em ambas as ocasiões a canção foi um estouro nas paradas de sucesso. Como disse o menino "He ain't heavy, he's my brother.



23/11/2013

Silêncio e solidão


Não importava onde estivesse, sempre havia alguém a achando triste. Nem todos se manifestavam, mas sempre havia alguém  olhando e se perguntando o que lhe teria acometido. Bem mais de uma vez, lhe ofereceram um lenço, acreditando que estava para chorar.

Seu semblante era mesmo tristinho, dava sempre a impressão de que estava deprimida, mas não mentia. Melaine era uma garota muito introspectiva. Desde criança preferia ficar em seu canto, quieta, só olhando os outros brincarem, quando muito. Geralmente preferia ficar sozinha mesmo. Uma plantinha costumava ser entretenimento melhor do que qualquer uma de suas bonecas. Não se dava com as outras meninas, elas falavam demais, gritavam demais, e ela queria aproveitar o momento.

Na escola não foi muito diferente. Continuou preferindo ficar só. Detestava quando precisava fazer trabalho em grupo, porque os outros falavam demais, davam palpites demais, discutiam demais. Gostava de expor seu ponto de vista, quando necessário, mas não de prolongar indefinidamente as argumentações. Não fazia questão de estar certa.

No colegial, pouca coisa mudou. Aliás, só uma coisa mudou, estava dez centímetros mais alta. O mesmo corte chanel, o mesmo olhar tristonho, a mesma indisposição social e a mesma implicância dos colegas, que chegavam freqüentemente a ser perversos.

As aulas de educação física eram uma tragédia. Usar aqueles shortinhos dos anos oitenta na frente de todo mundo, era um constrangimento só. E quando começou a onda de aeróbica? Meu Deus, que pé no sacovisk! Aquela empolgação forçada, aquela mania que querer ser sexy de qualquer jeito, aquela música em volume insuportável e aquele maiô que teimava em entrar no rego. Era uma garota tímida, nem ao clube ia, para não chamar atenção.

O pior era essa alegria plastificada toda não condizer com uma época extremamente pessimista, com guerras civis e regionais proliferando por toda parte. Quando voltava da escola, se fechava no quarto, fazia suas tarefas e ficava quieta. Silente, solitária, apenas aproveitando o momento de sossego. Os pais chegaram a pensar que estivesse usando drogas.

Não chegou a ter festa de debute. Se fosse convidar todos os amigos, não daria meia dúzia. Não falo de colegas, conhecidos e gente que simplesmente via todos os dias no colégio. Amigos mesmo, deveria ter dois ou três, se muito, nenhum com intimidade. Os parentes todos moravam muito longe, o mais próximo estava em Goiânia, preso por receptação de carga roubada.

O vestibular não foi lá grandes coisas também. Tentou três vezes, sem se desesperar, sem mesmo ter apreço por qualquer um dos cursos existentes. Como era boa em matemática, estudou engenharia da informática. Curso novo na época, sem grandes perspectivas para um mercado ainda restrito. Namoro? Não, nenhum. Melaine acabou ganhando tardiamente um apelido, derivado de seu nome: Melão Colia. Pelos corredores da faculdade, só a chamavam de Melão. Nada a ver com seu corpo de curvas discretas, seios pequenos e glúteos pouco desenvolvidos.

Na faculdade se via obrigada a conversar mais. Menos mal ser acadêmica de exactas, mas infelizmente as matérias de webdesigner rendiam as odiadas discussões acaloradas, porque nelas a subjectividade galopava louca a toda velocidade.Sua preferência sempre foi por fractais e padrões geométricos, especialmente utilizando as proporções áureas. Não era arrojada e despachada, como se esperava de uma moça tão jovem. Seus trabalhos sempre tinham a simetria de uma pintura clássica, ainda que quem olhasse de relance não a percebesse.

Triste era quando se encontrava com estudantes de humanas. Por Cristo, como eles falam! Parecem gostar de fazer brotar argumentações em terreno estéril! Melaine logo fez alguns desafetos, apenas cortando o assunto com "Pode ficar com sua razão e me deixe em paz". Sua figura tristonha fez o apelido se alastrar pela universidade inteira. Seus desafetos tiveram, sem querer, a maior vingança que poderiam imaginar, a tornaram famosa.

Alguém aventou a possibilidade de ela ainda ser virgem e sua vida acadêmica se tornou um purgatório. Passou a receber convites extremistas, de um lado crentes insistindo para que se convertesse e se tornasse "noiva de Jesus", do outro gente oferecendo ou se oferecendo como "cura para a doença". Acreditavam que era triste por ser virgem.

Foi isso até a formatura. Melaine só teve alguma relação com os professores, não com todos e não com profundidade. Entretanto, era confiável, algo raro em gente tão jovem. Conseguia, assim, trabalhos para websites de empresas e instituições. Ela não delirava, ouvia com atenção o que o cliente pedia, do que ele precisava e o que pretendia, então construia a página inteira, às vezes do zero. Só nos últimos meses de curso é que começaram a ver utilidade na introspecção dela, quando passou levar dinheiro para casa.

Por ironia, e para preservar sua privacidade, passou a usar Melão Colia como alcunha profissional. Não queria ficar rica, famosa, prestigiada, nem, cousa alguma. Só queria que respeitassem seu silêncio e sua solidão voluntária. Isso lhe custou a fama de fria e indiferente, para com os dramas alheios. Na verdade ela é que não entendia por que teria que compartilhar sua intimidade com todo mundo, como costumavam fazer.

Agora podia trabalhar em casa, só saindo quando fosse estritamente necessário. Infelizmente, para ela, a era das redes sociais estava consolidada. Precisou, para o bem de sua carreira, abrir um perfil. Para a tristeza dos pais, o perfil era meramente profissional, não dava uma linha de quem era Melão Colia Webdesigner.

Na vida civil, continuava a ser uma fonte de preocupações para os pais. Nenhum namoro, nenhuma amizade conhecida. Se restringia à cadeira de balanço na varanda do quintal, onde podia passar horas no mais absoluto silêncio.

Um dia Melaine conheceu um homem, quando parentes do Acre despencaram até São Paulo. Uma viagem tão longa justificava uma permanência prolongada. Ele não era bonito nem feio, não era o rei da popularidade e não tinha um repertório de piadas engraçadas, mas foi a primeira pessoa no mundo a respeitar as coisas que ela mais prezava, depois dos pais, seus momentos de silêncio e solidão. Ele não fazia absolutamente nada, além de mostrar que estava por perto, se precisasse. Pela primeira vez ela era vista sorrindo.

Casaram-se na semana passada, para o alívio dos pais temerosos por seu futuro, quando tivessem que deixá-la. Fora de casa, especialmente em público, continuava a mesma Melão Colia que todos conheciam. Em casa, com seu Alberto, era a Melaine. Descobriu que nos braços dele, também conseguia o silêncio e a solidão de que precisava.

17/11/2013

A cura era simples


A última vez em que ela esteve em casa, foi há seis anos, quando iniciaram o tratamento. Foi um choque para a família inteira. Brasileiro ainda tem a mentalidade de que as coisas só acontecem com os outros, nunca consigo, por isso reluta em se prevenir.

No início não era grave, não limitava sua vida e não causava dores fortes. O diagnóstico se deu no início e as esperanças de cura eram muito grandes. Foram providenciar os exames no mesmo dia, Aproveitando as férias escolares. Uma semana depois, com exames e uma dieta rigorosa, o tratamento adequado era definido. Até então não houve problemas.

Os problemas começaram quando precisaram iniciar o tratamento em si, muito caro para as posses da família do taxista. Confiaram nas propagandas oficiais e buscaram os hospitais públicos, quando perceberam que o termo "público" não dava garantia alguma de tratamento humano. Foram empurrados com a barriga por meses, com burocracia, informações incompletas, exigências que sequer constavam na legislação, mas sem as quais poderiam levar anos para conseguir o tratamento para a menina.

Memorandos e ofícios prolixos e altamente retóricos, que falavam muito para dizer coisa alguma, enchiam as mesas e facilitavam perder documentos e exames. Gastaram os tubos para providenciar novos, porque a própria ouvidoria exigia o carimbo de uma autoridade responsável para validar a denúncia, ou seja, exigiam que o culpado se declarasse culpado para dar andamento a qualquer coisa. Isso poderia levar anos que não tinham de prazo.

A saúde da menina se deteriorava, enquanto papéis voavam de um lado para o outro, serelepes e insensíveis, ao passo que outros furavam a fila, por questões que nada tinham a ver com a saúde pública.

Em um ano as dores começaram a ficar muito fortes, e a medicação começara a rarear. Quando vinha, não raro estava vencida. Gastaram mais tubos de dinheiro comprando o que seus impostos já pagavam. Quando descobriram que estavam comprando os medicamentos, tiveram o fornecimento cortado.

Enquanto a filha chorava de dor na cama, eles recebiam respostas burocráticas, impessoais e vazias, enquanto uma série de cartazes na parede alardeava as conquistas da saúde pública. Decidiram entrar com uma ação judicial. Entraram e ganharam fácil, mas a todos os lugares a que iam, quando havia médico especialista, não havia equipamentos funcionando.

O homem, desesperado, chegou a pensar em vender o táxi para pagar um tratamento particular, como os que os ministros ganham, em hospitais de ponta, mas o dinheiro não cobriria todo o tratamento e ainda ficaria sem sua ferramenta de trabalho. Com a espera forçada, o agravamento da doença encareceu o tratamento, com isso também dificultou a obtenção de um lugar especializado. Voltaram a entrar com uma ação, exigindo o tratamento adequado onde quer que fosse.

Passaram-se um, dois, três, quatro anos, até que o Supremo Tribunal de Justiça ameaçasse prender o advogado do governo, se tentasse novamente atrasar o processo. Ele sempre dizia que eram só conflitos de interesses, que não tinha nada contra aquelas pessoas, embora soubesse das conseqüências do que estava praticando.

Foi mais um ano de dor e sofrimento, até mais uma ameaça do Supremo fazer o processo da menina andar. Infelizmente as esperanças de cura já eram remotas. O alento é que a então adolescente, já podia se mexer sem que isso lhe custasse urros de dor, ela já podia se alimentar sem chorar.

Novamente os médicos lamentavam, inclusive o que fez o diagnóstico com tanta antecedência, que viu seu trabalho ser jogado às traças. A doença já tinha tomado todo o corpo da garota. Era uma questão de tempo até o pior acontecer. A aparelhagem que a mantinha viva não era muito melhor do que a da rede pública, onde ela a tinha, mas funcionava e tinha gente capacitada para operá-la.

Os anos se passaram com aquele apartamento sendo a residência da garota e de sua mãe, que só voltava para casa para tomar banho e trocar de roupas. Os médicos ficavam boquiabertos com a resistência dela, mas também extremamente revoltados, porque com essa resistência toda, ela certamente estaria curada, se tivesse recebido os cuidados em tempo hábil.

Chegou o dia de levarem a filha de volta para casa. Novamente a desumanidade de autarquias públicas atrapalharam, mas desta vez bem menos, já que o risco de prisão era real. Estavam todos lá, todos. família, amigos, colegas de escola, professores, até o pipoqueiro que sentia falta de sua cliente cativa. Todos, menos ela.

O cortejo fúnebre saiu em silêncio. Nem o baile funk funcionou naquele dia. Nem o carro de som fez anúncios naquele dia. Ninguém entendia direito o que tinha acontecido, ou o que deixara de acontecer, já que estavam todos tão optimistas com a perspectiva do tratamento. Entender o quê?

O sepultamento também foi silente. Silêncio só quebrado por choros e soluços. Só o farfalhar causado pelo vento dava alguma harmonia à sinfonia do luto. Os pais ficaram até a laje de concreto queimado ser posta sobre a sepultura, depois mais algum tempo, um tentando consolar o outro.

Na volta, o caminho parecia maior do que o da ida. A casa, pequena e paga com muito sacrifício, parecia um palacete de tão espaçosa. Só a caixa de correios tinha algum conteúdo. Era um ofício, avisando que a garota tinha perdido direito à medicação, por ter ficado três meses seguidos sem ir buscá-lo.

12/11/2013

Day of Grace


No começo era só uma bolinha de carne, linda e rechonchuda como uma boneca de porcelana; só que com todos os efeitos colaterais de um bebê. Fraldas sujas, noites de sono interrompidas, enfim, tudo a que tem direito quem se atreve a ter filhos. Era uma criança rica, mas era uma criança. Nos distantes anos finais da década de 1920, não havia os recursos que atenuam o sofrimentos dos pais de hoje.

Com o crescimento, apesar de toda a família ser prodigiosa na sua estética, a beleza da menina começava a se diferenciar. Claro que no começo, a testa destacada dava um ar de brinquedo à infante, mas o conjunto todo era tão bem harmonizado, que só os mais maldosos se apegavam ao detalhe; Deus, como tem gente maldosa neste mundo de expiações!

Sua infelicidade foi ter nascido fisicamente frágil, em uma família que prezava o porte atlético. Nunca teve um corpo forte, mas em matéria de personalidade, colocava todos os parentes no chinelo. Às vezes era difícil conviver com ela, especialmente quando se convencia de que estava certa, o que era muito freqüente. Era do tipo "Ame-a ou só admire de uma distância segura". Mas seu coração era descomunal, algo que simplesmente não se atribuía à aristocracia da época. Isso rendeu brigas.

Conforme crescia sua beleza transbordava, tão abundante quanto incômoda. Sabe aquela técnica de chamar a amiga menos arrumadinha para sair, e assim parecer mais atraente, por comparação? Com ela não funcionava. Até descabelada a moça era linda de morrer! E ela, filha da aristocracia, dominava bem as técnicas de realçar a beleza e a presença. Só saía com ela quem não se importava em parecer feia.

Era uma verdadeira princesa, para o bem e pra o mal. E como uma princesa, muito panaca que se achava príncipe queria desposá-la, para trancá-la em casa e sustentá-la em seus caprichos e devaneios feminilescos, para sua exclusiva e perpétua admiração. Para muitas moças da época, isso ainda era um sonho de consumo. Para a maioria isso já soava anacrônico. Para ela era um pedido de eutanásia.

Ela brigou. Como brigou! Brigou com o pai, com a mãe, os irmãos, os de fora que metiam o bedelho, mas principalmente com os patetas que acreditaram ser homens o bastante para dominá-la e conquistar seu coração. Para ela, isto era a personificação da futilidade instituída! Era inteligente e sensata o suficiente para escolher ela mesma o seu marido, não queria casamento arranjado. Ela tinha os pés no chão, bem firmes, sabia que seu pai era humano e poderia estar errado. Para ela, estar errado era simplesmente não concordar consigo.

Na toada que se seguia, saiu de cassa assim que fez dezoito anos. As amigas riam, as companheiras aplaudiam. Estas desejavam toda sorte do mundo, aquelas diziam que quebraria a cara por estar acostumada com luxo e conveniências. A decisão estava tomada, ela iria tomar as rédeas de sua vida, mesmo que para isso tivesse que sair de casa. Lá foi ela para Nova Iorque, usar de sua beleza estonteante para ganhar a vida como modelo.

Sim, houve época em que ser modelo demandava beleza, ser exótico e ter cara de doente terminal não garantia uma vaga. E ela era do tipo que ofuscava todos ao redor, não só por seu rosto que parecia ter sido copiado de um anjo, mas pela postura e pela classe que trazia de berço. Afinal, algo de bom a família lhe deu, mas estava sendo usado da forma como não queriam que usasse.

Ela namorou. Foi dona de seu nariz e de seu destino. Rapidamente conquistou o cinema. Ainda que tivesse feito filmes ruins, o público iria às salas de cinema só para se encantar com ela. Os que fez se tornaram clássicos, e todos eles têm a faculdade de realçar e valorizar sua beleza épica. caprichosa e detalhista, estudava com afinco o trabalho que iria fazer.

E ela continuou namorando, mas namorando quem quisesse mesmo. Sua preferência era por homens mais velhos. Não a ponto que precisar ser enfermeira, mas a maturidade lhe atraía. Na discrição de uma dama, alguns dos maiores astros do cinema tiveram repouso em seus braços. Os galãs másculos e viris do cinema se amoleciam completamente diante de seu sorriso dos toques de seus braços delicados. A família tinha que dar o braço a torcer, ela estava certa.

Mas nem tudo eram flores em seu caminho. Na realidade, os lutos eram freqüentes, muitas vezes por causas violentas. Passou ela a ser o norte da família. Aliás, da família e de boa parte do mundo. Seu prestígio era tamanho, que a moda dos anos cinqüenta foi praticamente feita para ela. Aqueles cortes e proporções exuberantes eram praticamente a sua versão têxtil. Não é à toa que tanta gente ame a moda cinqüentista.

Certa feita, viajando a trabalho, a estrela de primeira grandeza aportou em um pequeno principado. O príncipe regente, conta-se que premeditadamente, quis conhecer o elenco do filme. Sua fama de conquistador era notória, tão notória quanto a urgência em providenciar um herdeiro. Mas esbarrou no gênio que se escondia debaixo daquela cabeleira loura. Ele parece ter gostado do chega-pra-lá diplomático, talvez fosse a primeira vez que isso lhe acontecia.

Com insistência e admitir quem é que manda, ele conseguiu o coração da diva. Incontáveis pretendentes o tornaram o homem mais odiado de sua época. Seria só ela concluir o que já tinha começado e se casariam. Como bônus, no último filme, ela provou que também teria se dado bem como cantora; na época não havia softwares para fazer taqüaras rachadas parecerem boas vozes.

A família dele olhava com desconfiança, aquela que consideravam uma aventureira querendo mandar no principado. E deram-lhe problemas por algum tempo. Com todos os contras, e com a família finalmente admitindo "Você estava certa, Grace, em tudo", ela evoluiu de uma estrela magna para Sua Sereníssima Alteza Princesa Grace de Mônaco. E as amigas dizendo que ninguém iria querer uma esposa mandona!

Pois a mandona mandou mesmo! Mulher inteligente, detalhista, começou a colocar laxativo na água da limpeza pública. Fez, com isso, inimigos poderosos. Gente histérica alardeava o apocalipse para o principado e tudo mais, mas aconteceu justamente o contrário. O casamento por amor se mostrou também o melhor negócio da vida do príncipe. O turismo simplesmente explodiu, desde que  tinha se casado com ela. Já não precisava mesmo das más companhias.

O pomo da discórdia eram os três rebentos. A família dele queria que fossem mimados e estragados, como era de praxe acreditar que se fizesse com nobres. Ela não, ela lutou para conseguir seu espaço e queria que com os filhos também fosse assim. Foi isso que minou sua saúde. Oh, Grace! Teu sacrifício foi enorme, mas não foi em vão. Estão todos vivos, bem e dignos.

No auge da crise, quando estava conseguindo contorná-la, decidiu dispensar o Mercedes-Benz e ir ela mesma com a caçula, para dar nós nos pontos feitos. Um glamouroso Rolls Royce Corniche, talvez? Não. A princesa austera, que não se envergonhava de repetir roupas e comprara a luta da amiga Audrey Hepburn, tinha um pacato Rover 2000, carro de classe média.

Indo para casa, já conseguindo se reconciliar com a filha rebelde, que hoje também trabalha para se manter, o fio de prata começava a esgotar, Mestra Nada a esperava na curva. Já era hora de o mundo cada vez mais mesquinho e desprezível deixar de sugar sua beleza, ainda estonteante, mesmo com a idade madura e os problemas de saúde. O carro foi para baixo, Grace de Mônaco foi para o céu. E hoje ela faz oitenta e três anos, porque a morte é reservada apenas aos perversos.

02/11/2013

Gerente Lobo


Havia uma rede de hotéis muito requisitada. Não era exactamente a oitava maravilha do mundo, mas era o melhor que um certo país tinha disponível, por isso mesmo vivia com seus estabelecimentos lotados. Fora fundada por um cidadão a quem chamavam de Gerente Lobo, por sempre ter tido cargos de comando, ainda mais depois das novas regras para hotéis, às quais sua rede, que levava seu cognome, se adequou rapidamente.

As outras redes, algumas até melhores e mais tradicionais, não conseguiam acompanhar, pois havia uma crise e a capacidade de investimentos era reduzida. Não só isso, quase todos os grandes profissionais estavam no Gerente Lobo. Por seu faturamento astronômico, podia se dar o luxo de ter sempre frutas frescas, carne abatida ou pescada no dia, roupas de cama feitas sob medida e com estampas e texturas exclusivas, as melhores atrações artísticas enfim... Ninguém competia com ele. Se dava o alto luxo de desconsiderar a concorrência.

Com tamanha fartura de qualidade, ninguém se importava muito com os métodos, nem sempre dignos de que Lobo se valia. Ninguém mesmo. Todos os profissionais do ramo sonhavam em integrar seu quadro de funcionários, raramente alguém não pensava duas vezes, antes de largar o posto de administração da concorrência, para ser faxineiro no Gerente Lobo. Claro que entrando lá,. via que as coisas não eram tão cor de rosa quanto as propagandas alardeavam.

Ah, as propagandas! Lobo as fazia dentro de seus próprios estabelecimentos! Mandava publicar suas próprias revistas, seus próprios jornais, que sequer citavam a existência dos concorrentes, a não ser que fosse para apontar uma tragédia, sempre contrapondo a excelência dos serviços de sua rede de hotéis. Quando a tragédia era na sua rede, abafava, mandava colocar besteiróis de todo tipo, planejava entrevistas consigo mesmo, com seus funcionários, gincanas, sorteios de brindes, festivais e todo tipo de distração. O povo ficava tão encantado, que quando se dava o trabalho de ler as notícias contra, não acreditava.

Mas se Roma caiu, por que o Lobo não cairia? A ganância começou a ficar menor do que os brios de seus funcionários de colaboradores, novos concorrentes, menores e mais ágeis, começaram a oferecer serviços e atrações de qualidade similar, às vezes até melhores. Com isso as demissões voluntárias começavam a acontecer.

Claro que um império não cai de uma hora para a outra, como uma jaca podre, ele afunda como um navio; devagar, matando aos poucos, cruel e lentamente, mas a olhos vistos. Ainda assim, muita gente acreditava que era só mais uma manobra ousada do capitão, se recusando a crer que aquele navio estava fazendo água.

A concorrência começo a também comprar alimentos fresquinhos, às vezes até carne recém abatida e frutos do mar recém pescados. Claro que com essa demanda, o preço subiu, e mesmo assim começou a faltar. A concorrência tratava seus fornecedores com  muito menos arrogância, muito menos mesmo! Isso desmentia a crendice popular de que dinheiro é tudo nos negócios. Mas não é mesmo! Só os idiotas fadados à falência pensam assim, mas uma rede corrompida precisa que eles acreditem nisso.

Com o tempo, a manutenção dos hotéis começou a baquear. Os lindíssimos papéis de parede, que eram trocados ainda novos, e reaproveitados pela concorrência e até pelos funcionários, passaram a ficar mais tempo na parede, recebendo retoques, consertos, às vezes até remendos, estes que eram cada vez menos disfarçáveis.

A qualidade do cardápio, crucial para o ramo, também caiu. No começo, apenas diminuíam um pouco as porções e caprichavam no tempero, para disfarçar. Com o tempo, tiveram que colocar corantes, ervas finas, usar até essências para fazer o patinho parecer filé mignon. No começo, pouco se percebia, mas a clientela antiga, de sentidos mais refinados, passou a freqüentar outros hotéis.

E como dinheiro não é tudo, em vez de se emendar, Lobo passou a exigir mais e mais de seu pessoal, para fazer o cliente acreditar que a Rede Gerente Lobo continuava sim a ser a líder absoluta do ramo, que a concorrência só existia por piedade do público, ou pela admissão de hóspedes desqualificados. Sem perceber, acabou ofendendo e perdendo de vez alguns clientes antigos e caros, que estavam experimentando os novos serviços da concorrência.

A soberba crescente de Lobo contaminou até seus periódicos internos, que se nunca foram imparciais, então tinham se tornado tacanhos, extremamente tendenciosos e completamente cegos para qualquer mosquinha que voasse dentro de um hotel da rede.

Foi providenciada uma renovação no cardápio e nos serviços. Melhorias? Que nada! Estavam definitivamente trocando os pratos e as gentilezas de outrora, por apelações sensoriais de nomes pomposos. Moças serviçais de maiô sempre circularam pelas dependências, mas eram maiôs comportados, com gola, gravatinha, até bolsos, do tipo que uma mulher poderia usar na rua, no verão. Passaram a rebolar deliberadamente diante dos hóspedes, com insinuações e até encostadas dignas dos cabarés mais ordinários.

Enquanto isso, o cardápio, que fizera a fama da rede, estava em franca decadência. Os chefes responsáveis por eles, estavam quase todos aposentados, os que beberam de seu talento e sua experiência já estavam em dupla situação, já velhos ou migrando para a concorrência, ou ambos. Para disfarçar, o trato com os funcionários endureceu, obrigando-os a mentir descaradamente para a clientela, negando até mesmo uma barata que passeasse serelepe em cima do risoto.

 O Gerente Lobo não era mais a rede de outrora. o Lobo, que antes tomava a frente de tudo, estava velho e muito combalido, deixando a direção da rede em mãos de gente ainda menos compromissada com a qualidade do que ele. O resultado foi o previsível, os hóspedes atentos se sentiam como Alice no país das Maravilhas, com mundo fingindo que estavam na bélle époque, quando o quadro arregaladamente visível era o pior da grande depressão.

Não, a rede de hotéis Gerente Lobo não fechou. Como eu disse, um império não desaparece de uma hora para a outra. Roma ainda existe, não existe? E vive de seu passado. De glórias passadas também vive o império do finado Gerente Lobo. Só que ao contrário de Roma, a rede não tem mais um milímetro do carisma e do charme irresistível de outrora.

Sim, há impérios que se reinventam, corrigem suas mazelas e renascem das cinzas como a Phoenix, mas não é o caso. A Rede Gerente Lobo praticamente não existe mais, virtualmente só o nome é o mesmo. Hoje é uma sociedade anônima, cujos acionistas especulativos só querem sugar o que ela ainda puder oferecer, e não hesitarão um segundo antes de jogá-la no abismo, em vez da pira renovadora a que não têm acesso.

Não têm mais funcionários nem colaboradores, só prestadores de serviços. Os pratos são terceirizados, os papéis de parede foram trocados por tinta barata, os uniformes garbosos de outrora foram trocados por coletes e bonés ordinários, os maiôs que enchiam os olhos são hoje shortinhos baixos no limite e tops que caem a todo momento, o público refinado migrou definitivamente para redes estrangeiras, e muita gente se convenceu de que é melhor ficar em casa ou se hospedar com parentes.

Saudades de quando o Gerente Lobo oferecia um sanduíche de coração, hoje é fast food caro e de valor nutricional zero. Chamem o rádio táxi, vou comer na padaria mesmo.

23/10/2013

Que ingrato!


Eis aqui! A solução pronta e sob medida para os problemas dele. Sabem quanto tempo trabalhamos nesta solução? Sabem? Décadas! Durante décadas nos dedicamos a discutir, debater, retorizar, gerundiar e construir um plano exeqüível, prático e dentro das normas.

Aqui, os problemas que ele teve na infância. Conseguimos equacionar e pormenorizar todos os dados, as minúcias, cada trauma e cada dificuldade que se apresentou no decorrer do período. Podem ler à vontade, está tudo aí, não deixamos escapar um ítem sequer! Não se acanhem, leiam! Até a questão dos bloqueios e dos lapsos de memória está relacionada, nós resolvemos o problema completamente, se ele colocar em prática.

Os problemas da adolescência nos tomaram mais tempo. Até porque adolescência e problema, são praticamente sinônimos. As perseguições mais cruéis, que hoje chamam de bulliyng, foram todas listadas e estudadas com esmero. Eis em cada situação descrita, o procedimento para neutralizar as conseqüências nefastas. A rejeição generalizada e as punições sofridas por ações alheias, ah, que trabalheira! Estudamos todos os vértices possíveis desse polígono triste. Acreditamos ter encontrado uma saída digna e plausível, que está disponível agora, bastaria ele colocar em prática!

As sucessivas ondas de azar... Há coisas que ele precisou enfrentar, mas outras que foram pura maldade das pessoas mesmo. mandamos mensagens encorajadoras, como "Vamos em frente", "Viver é uma batalha", "Só os fracos esmorecem", entre outras, para ele se sentir feliz e contente, enquanto especulávamos maneiras de ele resistir a mais adversidades e rejeições sem razão aparente. Não foi das tarefas mais agradáveis, mas foi exitosa. Conseguimos um guia completo para ele enfrentar e superar tudo isso, bastaria se levantar desta zona de conforto e colocar em prática.

Saber lidar com as frustrações faz parte de ser adulto, ele sabe disso. O facto de elas terem se tornado a regra, a ponto de as pessoas acreditarem que estava bem quando na verdade estava à beira do precipício, não significa nada! Ele tinha que agüentar e ponto final! Nós estávamos trabalhando para resolver isso, era dever moral dele ter esperado até o fim! Eis, vejam que belo trabalho! É impossível ele não resolver seus problemas se tiver a hombridade de estudar nossas conclusões!

Sonhos, oras, sonhos! Todos têm, todos ficam sem! O facto de outros não lhe servirem, não significa que não deveria ter experimentado! Mesmo que destroçasse sua dignidade e aleijasse sua personalidade, ele deveria ter se adequado e se submetido ao que estava disponível, enquanto trabalhávamos para resolver o problema! Havia tantas distrações e tantos prazeres para ele aproveitar, enquanto isso! Tanto é verdade, que aqui está a solução! Só porque o sapato oferecido não lhe servia, não é desculpa para não ter usado!

Como? Deixá-lo livre e pleno para resolver ele mesmo suas aflições? De jeito nenhum! Os riscos de uma deserção eram muito grandes! Com tantos desgostos seguidos, ele certamente abandonaria a tudo e a todos para tentar ser feliz, ou seja lá o que for! Se entregaria a uma vida desregrada, cometeria faltas sérias e tudo mais; ainda que as leituras, feitas continuamente do início ao fim da vida, desmintam nossos temores. Não, ele tinha que esperar o auxílio para tudo vir de uma só vez, num montão no fim do ano, era obrigação dele. Resistir não é uma escolha, é um dever!

Enquanto ele sofria, nós trabalhávamos para ajudá-lo a superar o sofrimento. Agora que conseguimos, o que ele faz? Joga tudo fora! Joga no lixo o trabalho de quase um século! Por que tinha que morrer antes de receber a ajuda? Por que??? Que ingrato!

09/10/2013

A nova fábrica de Papai Noel

Fonte: Genzoman galery

Nikolau acompanha Branca de Neve em uma visita à sua nova fábrica. A antiga não foi desactivada, mas esta nova está trazendo resultados muito satisfatórios, mais até do que os brinquedos distribuídos. Obviamente, por questões de segurança, a princesa precisou abrir mão do vestido medieval e usar uma indumentária mais contemporânea...

- Estranhei muito quando o Mestre falou deste novo ramo, Nikolau! Eu fiquei assustada, confesso que ainda não compreendi os motivos.

- Explicarei no decorrer da visita, Branca. No começo a idéia me pareceu absurda também, tanto que fiz um piloto da distribuição, antes de me decidir e planejar a produção em massa.

Apesar de todo o aparato de segurança, é conveniente usarem trajes de proteção. São três portas a serem transpostas; quando entram a primeira se fecha, a pressão atmosférica é levemente aumentada e a segunda se abre, eles passam e ela se fecha, havendo mais um aumento da pressão e só então a terceira se abre. É algo impressionante! Branca fica deslumbrada com o porte e a tecnologia aplicada. É um laboratório como só em filmes de ficção científica para se ver.

Começam a caminhar no chão de aço inoxidável, que dá uma sensação meio ruim nos passos, mas é o melhor para um laboratório microbiológico de alto risco. Não para eles, mas precisam sair ao mundo e poderiam contaminar as pessoas normais.

Nikolau começa mostrando as culturas primárias, onde os agente patogênicos são cultivados e selecionados. Não perdem tempo com incineração ou qualquer outro meio poluente, o que não lhes serve é eliminado por laser, micróbio por micróbio, ou vírus por vírus. Os muito fracos e os muito agressivos são os sacrificados...

- Como vocês sabem qual deve ser eliminado?
- Pelo metabolismo e pela rapidez com que interage com o ambiente. Veja aqui, tenho um infográfico no meu tablet; nem sabe como foi caro, mandei fazer na Alemanha, não quero nada feito por mão de obra escrava em meus domínios.

O demonstrativo é completo. Tem até um vídeo que mostra os procedimentos para detecção e eliminação dos organismos indesejados, que acabam virando alimento para os selecionados. O tiro é certeiro, elimina directamente na estrutura genética, impedindo que os outros recebam genes dos que foram destruídos. Ele promete mandar o arquivo para ela, por e-mail.

Chama um duende e pede que assessore a visita. Mostra as várias doenças que cada cultura pode ocasionar, bem como os tipos de pessoas que podem receber uma contaminação ou mais...

- No ano retrasado, por exemplo, contaminamos uma dondoca mexicana que desprezava com ódio à flor da pele, os negros, mesmo não sendo nenhuma miss Noruega. Tudo foi feito em três fases, com a ajuda dos duendes; primeiro um vírus que ativou uma alergia a couro natural, obrigando-a a utilizar tecido e os sintéticos que também odiava.

- Aham... Eu conheço gente que precisa de um vírus desse! Vou te passar uma lista, na saída.

- À vontade, confio no seu discernimento. Quando a crista dela baixou, a ponto de ter que usar almofadas para andar em seus carros de luxo, inoculamos um bacilo que lhe atacou o sistema digestivo. Ela precisou se privar de foie gras, escargot, frutos do mar, enfim, coisas que comia como se fossem arroz com feijão. Comia e desperdiçava, diga-se de passagem, ela não admitia que os empregados comessem suas sobras, às vezes mais da metade da porção ia para o lixo.

- E pensar que passei fome na floresta, antes de encontrar os anões! Não se engane, o livro passou rápido pela fase, foram dias comendo frutinhas minguadas, com o inverno se avizinhando rapidamente.

- Como se o sofrimento no palácio não fosse o bastante! Bem, a terceira fase, com a besta fera já amansada, inoculamos uma bactéria que activou uns genes que quase nunca são ligados. Ela passou a precisar de transfusões constantes, por mais de um ano, do tipo A negativo.

- Sangue típico de negros!

- Que causaria um choque anafilático, se esses genes continuassem adormecidos. Com tantos problemas adquiridos, mais os colaterais, ela logo se viu sozinha em sua mansão, em Acapulco. As "amigas" de falsidade e ostentação se afastaram, temerosas de serem contaminadas também. O marido pediu o divórcio e se casou com a amante bonita e saudável. Eu sei que pode parecer maldade, mas ela estava um caco, no auge das crises.

- É esta?

- Sim, é ela.

- Meu Deus, que diferença!

- Antes, durante e depois do tratamento. Vamos ser sinceros, está muito mais bonita sem aquela química toda no cabelo e sem aqueles implantes de silicone!

- Mais proporcional!

- Bem, apesar do sofrimento, e de me ter doído no coração fazer sofrer quem já foi uma criança que amei muito, a síndrome biológica da humildade fez seu trabalho a contento. Hoje ela está curada de tudo o que lhe foi inoculado, mas é de novo a criança doce, meiga e receptiva que eu presenteava com gosto! Não vou dizer que é outra pessoa, aquela monstra que a dominou era a outra pessoa! Esta moça linda de cabelinho chanel é a minha Julia de verdade!

Branca observa todas as photographias do álbum, observando a mulher cercada de amigos de verdade, se misturando às pessoas comuns, comendo à mesa com elas, tirando retrato com os empregados e até trabalhando como voluntária e mantenedora em instituições de caridade. Não lembra absolutamente nada aquela megera oxigenada, que mandava destruir seus carros assim que comprava novos, por não admitir que uma pessoa qualquer pudesse ter o que já fora seu, e hoje agradece por ter sido desobedecida, a frota que doou rendeu muito em bingos e leilões beneficentes...

- Então é isso! Você está enfraquecendo os corpos para dobrar os espíritos!

- Você entendeu. Estou dando a eles algo muito mais valioso do que lembranças de natal, estou dando a chance de voltarem a ser gente, antes de nossa amiga Morte bater às suas portas. É muito mais eficaz do que gastar fortunas em propagandas televisivas, para pedir que vejam seu irmão com o coração.

- A degredação ainda está em curso. É por isso?

- Sim, também é por isso. Já são bilhões de crianças que eu nunca mais vou ver. Por isso estou apelando para o sofrimento dirigido, controlado e sob medida. É desagradável, mas por ele eu tenho conseguido amolecer os corações como não consegui em milênios de actuação.

- E não existe presente melhor do que um mundo bom onde crescer.

- Não. Eu nem ligo mais para as críticas, só eu sei o que já chorei por ver crianças sendo estragadas por adultos idiotas. Agora eu deixei de chorar e tomei uma atitude, vou consertar essas crianças, elas ficam até mais felizes, depois desse tratamento de choque.

- Vou ajudar. Chamarei todo o universo Grimm, o Jack Frost, o Coelho da Páscoa e vamos planejar isso com esmero.

Ele agradece comovido pela oferta. Procedem a saída, a sanitização corporal e chamam todo mundo. Planejam decepções e perdas de auto estima, além dos ataques biológicos, para que as pessoas baixem a guarda e abram de uma vez por todas seus corações. Afinal, o clima do natal há décadas não deveria mais ficar restrito aos dias que o antecedem.

03/10/2013

A cura, por quem está se curando



























Fátima Jacinto é razoavelmente conhecida na internet. Ela sofreu por muitos anos nas mãos de
um marido perverso, como tantos que estão pipocando em plano século XXI.

Ela aprendeu da forma mais penosa, que os filhos e a dependência financeira são as ferramentas mias usadas pelos canalhas, para a obtenção de prazer pelo uso do poder torpe. A quem não se deu conta, o prazer que certos "homens" buscam, nada tem a ver com a satisfação sexual. Eles sentem prazer em dominar e destruir a vida de suas vítimas. E contam com uma sociedade medíocre para apoiá-los.

Hoje ela está livre, mas as seqüelas de uma convivência doentia se materializou de várias formas, inclusive na de câncer de mama. Ou pensam que os hormônios perdoam seus carcereiros?

Há anos acompanho o trabalho dessa mulher tão digna e adorável. Por ela eu fiquei sabendo de sua luta pela vida, do sofrimento com os efeitos colaterais, inclusive com a indiferença das pessoas, que ainda vêem como culpada uma mulher que se livra das garras nojentas de um machista violento.

Pode parecer coisa do arco da velha, mas ainda hoje, muita gente vira as costas para uma mulher separada. Para esses, se o sujeito põe comida em casa e transa de vez em quando com a esposa, esta tem que se sentir a felicidade em pessoa, como se fosse vaca leiteira, para se contentar com pasto e curral.

Fátima não se arrepende de ter mantido o casamento pelos filhos, ela sabia que eles seriam a primeira vítima do ex-marido. Sim, meus amigos, filhos são apenas uma moeda de troca para os covardes, se não podem usá-los para manter o poder, usam-nos para infringir sofrimento. Ainda hoje é manchetes de jornais a respeito.

Se livrando de um algoz, vieram outros. O câncer de mama foi conseqüência das emoções que represou por anos, e veio acompanhado da falta de recursos. Se hoje é difícil conseguir tratamento completo e competente para câncer, na rede pública, imagine há vários anos!

Extremamente actuante nos canais de que dispõe, ela lançou recentemente o livro A Cura de Nossa Intimidade Ferida. Apesar de enfrentar desde sempre, severas restrições materiais.

Ciente de que veneno trocado não cura o envenenamento, Fátima Jacinto adopta uma oratória sem rodeios, mas madura e de reconciliação da pessoa consigo mesma, mostrando o quanto faz bem melhor deixar no passado as pedras afiadas nas quais pisou.

Não se trata de discurso politicamente correcto ou coisa afim, ela fala e demonstra com sua experiência pessoal, seus aprendizados, até mesmo com relatos de leitoras que se enxergam em suas palavras, encontrando nela alguém que pode orientá-las não só por literatura, mas também por experiência de vida.

Há uma distância enorme entre quem estuda e quem vive um assunto, Fátima Jacinto viveu e dá testemunho sereno de sua vida. Como uma mestra de verdade, ela não se furta o direito de aprender e repassar seu aprendizado, todos os dias. Não importa o quanto seus leitores se encantem com sua sabedoria, ela está pronta para receber maias conteúdo da vida.

Mas não são só mulheres que podem se beneficiar da leitura. Ela não fala para gêneros, fala para pessoas que sofrem e não conseguem enxergar, sozinhas, um caminho a seguir para sair do inferno emocional em que se encontram. Porque eu já disse, emoções represadas e câncer são aliados.

A linguagem dela pode incomodar as pessoas viciadas em competição, em aventura, em viver tudo aqui e agora na potência máxima. Infelizmente um mestre não chega ao coração de quem não está preparado para receber suas lições. Aos demais, ela tem uma linguagem madura, maternal, sóbria e até consoladora para auxiliar as pessoas.

Para comprar o livro, clique aqui. Asseguro que lar as obras de Fátima Jacinto, é ter alguns instantes de mansidão em um mundo há anos em convulsão.

26/09/2013

O peixe do estrangeiro


Dois fazendeiros, um de Jataí e um de Rio Verde, se encontram para a prosa de todo sábado à tarde. Trabalhadores, mas completamente desactualizados com tecnologias modernas, cuja operação delegam aos filhos, logo começam com um assumto...

- Cumpadi, ocê já viu qual é a moda de comida, hoje?
- Não! Qual é?
- Eu nunca comi, mais parece que é um trem bão demais!
- Se num comeu, comé que sabe que é bão?
- Minha filha falou. Ela disse que já tem milhões de pessoas pelo mundo, que come todo dia. e já tem gente viciada, de tão bom que é! Parece que é um pexe que só dá lá nos esta'zunido!
- Ué! Intão deve de ser muito caro! Se é importado e só dá num lugar!
- E merm'assim o povo come todo dia!

O rioverdense matuta, tenta puxar pela memória, enquanto o outro dá um trago, mas não imagina que tipo de peixe possa ser...

- É pexe de água doce ô salgada?
- Num sei. Sei que tem até briga por causa dele. Tem país que até censurô, porque o povo tava fazeno bestera pra conseguir.
- Censurô? Quer dizer, racionamento?
- Acho que é! Cê sabe, se o povo compra demais, a balança econômica fica em déficit!
- Mas esse pexe deve ser gostoso demais! Vô querer experimentar.
- Minha filha falô que amanhã eu vô conhecê. Vô vê se te sobra um pedaço.
- Uai, eu fico agradecido, cumpadi. Mais, me fala, quem é que produz esse pexe?
- Eu até pensei que era brasileiro, por causa do nome, mas é americano do estrangeiro mermo. É um tal de José Quembergue, que o povo chama de Zé Quembergue, ele já deve tá íntimo dos fregueis.
- Esse nome num me é estranho... Mais num me alembro de onde ouvi...
- O rapais tá bilionário, vendendo esse pêxe pro mundo todo.
- Ué, se só ele sabe produzir e todo mundo gosta, que come todo dia, então enrica fácil mermo! Mais, que pexe é esse mermo, cumpadi?
- É pexe buquê.

Ele olha o amigo de longa data com uma cara de espanto! A primeira coisa que imaginou, foi um buquê de noiva nadando rio acima...

- Pexe buquê?
- Strai'né?
- Cumpadi, num tem nada dos estrangeiro  que eu não ache estranho! Minissaia, por exemplo!
- Num gosta?
- Gosto muito! Falei que é estranho, não que não apreceio! É, quem sabe esse pexe buquê...
- Minha filha garantiu, falô que no começo vô estranhá, mais logo o trem fica bão! Só me alertou pra eu não me iludi com promessa de pexe buquê de cor diferente. Só tem azul! Os otro é falso!

Agora ele imagina um buquê azul subindo o rio, com um monte de buquês coloridos atrás, tentando acompanhar...

- Onde foi que a Mariinha incontrô esse pexe?
- Nas interlete.
- Ah, a interlete! Até hoje não intendo comé que funciona!
- Nem eu, nem quero. Só quero comê esse pexe! Diz que tem gente que até arranjô casamento, depois que comeu!
- Ué! Itão divia chamar pexe Sant'antoin! Agora é que vô querê um pedaço! Já tô cansado da viuvez!

O celular do jataiense toca. é a filha dele, avisando que já pode ir experimentar o facebook. Eles de despedem e o amigo promete mandar um prato para ele.

18/09/2013

Os trólebus, para quem não os conhece

Saudoso trólebus de Ribeirão Preto.

É difícil selecionar uma ou duas incoerências do poder público nacional, então temos que nos ater aos urgentes, que também são muitos. Então acabo optando pelo que me aparece pela frente. Agora é a vez dos trólebus.

Simplificadamente, são ônibus com motores eléctricos que usam a rede aérea de energia, por meio de uma haste tetrátil que funciona como fio da tomada. Os mais modernos têm baterias e se recarregam aos poucos, quando páram nos pontos, o que lhes garante uma mobilidade que os de haste não têm, alguns até contam com um pequeno motor diesel para estender a autonomia.

Aos compatriotas que moram longe do centro do país, pode parecer óbvio o que descrevi, mas a maior parte do território nacional não conheceu os trólebus. Muita gente sem sabe que eles existem. E se depender de prefeitos do naipe de Marta Suplicy, que demonstram saber mais de supercordas do que de transporte público, o interior do país nunca terá os benefícios desses ônibus singulares.

Felizmente não depende só deles. Infelizmente, mesmo assim, eles conseguem atrapalhar muito. Se eles desejam ou não um transporte público decente, não sei, nunca me coloquei à sua frente para ler seus pensamentos. O que sei é que eles não têm a mínima noção do que seria um transporte público decente; estou sendo gentil.

Quem já viu, como eu, o motorista descer do ônibus e entrar em uma drogaria, implorando por um analgésico, sabe do que vou falar agora. O nível de ruído dos ônibus de que dispomos é muito alto! Atenuaria muito se usassem motor traseiro, que continuaria a incomodar os passageiros, mas incomodaria muito menos os motoristas. O problema é que nossos ônibus não passam de caminhões encarroçados, e francamente eu não conheço um só caminhão brasileiro, com motor traseiro. Sai mais barato, a estrutura de motor à frente já existe e é feita aos milhares, para transporte de carga.

Sim, meus amigos, vocês leram certinho! Somos transportados por veículos de carga adaptados ao uso de passageiros! Sem cintos de segurança e quase sempre usando os duros e melindrosos feixes de mola na suspensão. Não raro, os amortecedores são simplesmente retirados, quando precisam ser trocados, deixando as molas sem controle algum. Tudo isso com a plena aquiescência das prefeituras. Se eles não se importam com suas vidas, vão se importar com sua sanidade mental?

Pesa contra os trólebus antigos, a completa dependência dos fios de alta tensão dos postes. Se a haste caía, eles paravam. Se a energia acabava, facto recorrente, eles paravam. Não por problema do trólebus, mas por falhas de infraestrutura, inclusive do asfalto de péssima qualidade, que faz qualquer veículo dar pulos. Lombadas e valas para redução de velocidade, são exclusividades de países onde a educação é artigo supérfulo.

Em muitos países, os trólebus modernos estão substituindo os bondes com grande vantagem, porque não ficam presos aos trilhos, eles têm baterias próprias, podem rodar muitos quilômetros sem precisar da fiação aérea. Quando têm um motor para estender a autonomia, ele pode ser pequeno, com uma fração da potência do motor de tração, podendo ser mais silencioso e só trabalhar por curtos períodos. Quando precisar, há casos em que eles têm que ser ligados por alguns minutos, para não travarem por falta de uso.

Mas, é claro, isso acontece em países que levam a mobilidade urbana à sério, que estimulam o uso do transporte público em vez de simplesmente penalizar o uso do automóvel. Resolver problemas não faz parte do repertório da política brasileira, torrar o erário em propaganda enganosa e acusar os críticos de golpistas, fazer-se de vítima, alegar intriga da oposição, quando se é situação, ajuda a enrolar o eleitorado e confundí-lo. Deixar pura e simplesmente de dar manutenção, é um modo de convencer a população que os ônibus a combustão são melhores. Nem Rolls Royce dispensa manutenção regular, eles sabem disso.

A grande vantagem econômica dos trólebus, é que se tratam de veículos com concepção naturalmente muito cara. Um ônibus urbano simples, só com o que a lei manda, passa fácil de duzentos e cinqüenta mil reais. Ver exemplos aqui. Fica mais fácil diluir os custos de uma conversão para tração eléctrica ou híbrida. Embora a compra seja bem mais cara, não muito mais, a manutenção é mais simples, há muito menos peças para quebrar e nenhum movimento alternante para fragilizar o motor. Mas veículo que não dá manutenção, não gera licitação.

Para a população e para o motorista, a primeira vantagem é o silêncio. Quase nenhum ruído sai do trólebus, pode-se conversar em voz baixa, ouvir o MP4 em volume mínimo ou mesmo ler algo sem o ronco constante a encher a cabeça. O motorista, pela ausência de ruídos, não estressa tanto, o que resulta em um padrão de segurança muito mais alto. Ele ouve melhor o que se passa dentro e fora do veículo, se antecipando mais a qualquer emergência. Ele chega ao fim do expediente com a audição intacta.

A ausência de descarga, quando o gerador não está ligado, permite que ele circule em ruas onde um veículo a combustão de grande porte não pode, como ruas onde há escolas e hospitais, o que pode significar um itinerário bem mais curto.

O motor eléctrico tem uma vantagem imensa, ele produz força instantânea. O motor a combustão precisa ganhar rotação, velocidade, para conseguir tirar o ônibus do lugar, para isso serve a embrenhagem. Como conseqüência, muitas vezes ele acaba produzindo mais potência do que seria necessária. Resultando em mais desgaste, mais emissões e muito mais ruído, para o desespero de todos o que estiverem a menos de vinte metros do motor. Fora a mania de motoristas idiotas, de jogar fumaça nos pedestres e carros pequenos.

O limite de velocidade em perímetro urbano, é de 60km/h, mas eles têm que arrancar, acelerar, reduzir, frear, retomar; tudo isso exige uma troca freqüente de marchas. Uma operação que exigiria, em média, 40cv em velocidade normal, acaba exigindo quase que potência máxima na maior parte do tempo, o que às vezes significa usar mais de 240cv. Por suas características, o trólebus pode arrancar usando muito menos potência, na maioria das vezes dispensado troca de marchas, não raro dispensando até a caixa de marchas, trabalhando bem próximo à potência mínima na maior parte do tempo. Não admira que as pesadas e arcaicas baterias de chumbo dos nossos trólebus, dêem conta do recado.

Há ainda o menor custo energético. Um trólebus ruim, custa menos de um quarto do que se paga pelo quilômetro de um ônibus. Um trólebus bom, não chega a um quinto. Um de última geração nem se fala! Nem temos no Brasil! Se levar em conta que dificilmente o kWh passa de R$ 0,50, e que ele pode bastar para rodar vários quilômetros, vocês podem imaginar o impacto positivo que um trólebus bem conservado tem nas contas públicas.

Actualmente, que me conste, só temos uma montadora que fabrica trólebus, e converte ônibus para trólebus no Brasil. A Eletra, ver clicando aqui, é a última sobrevivente nacional de uma tecnologia que só prospera do resto do mundo. Felizmente a empresa teve a visão de considerar o mercado externo, que também atende, ou já teria virado página da história. Porque se dependesse do poder público, já teria fechado. O resultado do esforço, é uma qualidade construtiva e tecnológica de padrão internacional, que por aqui nós simplesmente ignoramos.



Um trólebus antigo, em Santos.

09/09/2013

O longevo Século XIX

Fonte: No Amazonas é Assim
Os mais novos não se lembram, mas muita gente esperava que, na virada para este século, o mundo fosse
transportado para o universo dos Jetsons. Lamentavelmente, as coisas não andaram como o esperado e este século, apesar dos avanços tecnológicos, ainda está muito longe de ser o que poderia. Mas que século é este mesmo? XXI? Não, meus amigos, assevero que não. Estamos em pleno e deformado século XX. Não levem o calendário tão à sério, ele só marca o tempo, a entidade secular é outra coisa, e ela ainda não mudou.

Antes de prosseguir, me digam quando terminou o século XIX. Heim? 1899? Não, garanto que foi um "pouco" mais adiante. 1900? Tampouco. A euforia da bélle époque só mascarou tudo, mais ou menos como um anti inflamatório,  que alivia o incômodo, mas não ataca suas causas. O século XIX, meus caros, terminou em 1994, com o fim do apartheid na África do Sul, que era mantido por princípios que de cristãos, não tinham absolutamente nada. Da mesma forma, a máscara de pós-modernidade mascara o psicótico século XX, que ainda vigora.

Fomos iludidos por nossas próprias conquistas tecnológicas, nos convencendo de que estávamos evoluindo e nos tornando mais civilizados. Longe dos olhos sociais, as máscaras caem rapidamente. A idéia de que há pessoas que merecem mais do que as outras, e muitas que não merecem mais do que a subsistência animal, é o que sustentava não só o regime segratório sul-africano, como também o que havia nos Estados Unidos até meados dos anos setenta. Até 1974, em muitos estados americanos, era crime um branco se casar com uma negra, ou vice-versa. E o presidente que os tirou da crise foi justo um negro gaiato com nome oriental!

É a mesmíssima mentalidade que ainda existe, de que mulheres devem ser separadas dos homens, de que elas são as culpadas pelas desgraças do mundo e não podem exercer altos cargos de poder, e nem sempre têm o direito de ganhar seu próprio sustento. A mesma que tem devastado o país com a onda de machismo extremo, que já custou a vida de milhares de ex-namoradas e ex-esposas, já que os fedelhos mimados não toleram perder o que julgam lhes pertencer. E não é só com as moças que fazem isso, essa mentalidade se estende a quem não é do seu grupo e não pode se defender. Tal qual as políticas de colonização vigentes até o século retrasado. Aliás, alguns países ainda têm colônias, algumas voluntárias, outras nem tanto.

Está acontecendo um exemplo claro no Brasil, onde as manifestações estão se dividindo em basicamente dois grupos, um rechaçando as reivindicações e legitimidade do outro. Por que? Porque estão tão apegados às suas bandeiras, ao conceito de que tudo no outro é errado e tudo nos seus é certo, que não se dão conta de que estão ambos sendo manipulados da forma mais elementar do maquiavelismo, ambos pelas mesmas pessoas. Típico do colonialismo, separar para enfraquecer e dominar. E as aldeias idiotas, crentes de que estão do "lado certo", se digladiam, enquanto os colonizadores se apropriam do que é seu.

Assim como no século em questão, vivemos uma época de revolução tecnológica e industrial sem precedentes. Tecnicamente falando, já é possível improvisar com dois guindastes, uma impressora 3D capaz de construir um palácio em uma fração do tempo que levaria, pelo ultrapassado e ainda vigente método de tijolos. é possível construir uma espaçonave, se o interessado tiver recursos, e alugar um avião de grande porte para o lançamento. É possível até mesmo construir um continente no meio do oceano, com recursos suficientes para formar uma nação e prosperar. Já podemos cultivar alimentos de modo a não macular o solo, e fazer com que renda muitas vezes mais do que conseguimos hoje, tornando o custo unitário absolutamente desprezível.

O problema seria que, por serem tecnologias relativamente recentes, ainda são demasiadamente caras, então vamos esperar que ALGUÉM comece a comprar, para que ALGUÉM barateie, e após ALGUÉM atestar que é viável, então compraremos. Só que o problema não é este. Assim como nos anos 1890, ainda estamos com medo das inovações, temerosos de que elas nos engulam, e o cinema não ajuda, só mostrando o lado sombrio de uma humanidade dominada pelas máquinas. Houve, quando do advento da locomotiva a vapor, uma histeria mundial, inclusive em solo americano. Um político chegou a mandar uma carta ao presidente (não me lembro qual, não me pressionem) exigindo a proibição daquela máquina demoníaca. A carta falava em urros selvagens, celeiros e plantações incendiados, animais mortos ou assustados pela visão, crianças atemorizadas, e que Deus certamente não queria que o homem viajasse a velocidades tão perigosas.

Notem que ele se ateve ao medo. Não utilizou absolutamente nenhuma argumentação fundamentada. E Deus não tem nada a ver com nossa burrice, é culpa nossa! Basta ver o episódio recente, em que um senador americano jogava em seu aparelhinho irritante, enquanto o representante da Casa Branca explicava os motivos do bombardeio a Síria. Ou ainda o que aconteceu há poucos minutos, quando o senador Álvaro Dias deu uma prova de patetismo, sugerindo que as prospecções no pré-sal sejam suspensas por conta da espionagem americana... Ele sabe algo de política internacional?

O cidadão médio, e infelizmente inclui quem faz, executa e defende as leis, não sabe muito mais coisas realmente úteis, do que quem morreu em 1900. Não falo de fofocas de subcelebridades, de capítulos de novelas falsamente engajadas, tampouco novos meios de burlar a receita federal; tudo isso é da idade média. Falo de conhecimentos técnicos, científicos e, se for o caso, verdadeiramente teológicos, algo que vai muito além de memorizar cada parágrafo de um livro que foi retraduzido dezenas de vezes, e que precisa ser lido com muito discernimento. Ainda hoje, tem gente que pensa que o sol gira em torno da terra, mesmo com diploma universitário. Como era no século XIX.

Quase todo mundo sabe lidar com um celular, mas quase ninguém faz idéia de como sua conversa vai pra lá e a do outro vem pra cá. Nem se importam, mas deveriam. Os cérebros atrofiados pela comodidade e pelo uso restrito de suas faculdades, fazem falta ao bem comum. Quem se acostuma a investigar um pouco de vez em quando, só um pouco mesmo, tem uma percepção de realidade muito mais lúcida e cristalina. Pode até errar, mas mesmo no erro presta bons serviços à posteridade. Na realidade, até sabedorias populares estão se perdendo, então o cidadão do século retrasado leva alguma vantagem.

As guerras continuam, por motivos que não ameaçam absolutamente em nada as fronteiras, as segregações continuam na marra e legitimadas pelo rótulo de "tradição nacional", as pessoas continuam com medo das inovações, o desprezo por quem não é do grupo continua arraigado e por aí vai. Tudo típico do século XIX. Não vou me aprofundar no fundamentalismo e na intolerância dogmática, que nada tem de religiosa, é só dogma mesmo. Isso tem explodido desde 1979. "Traficantes de Jesus" expulsando espíritas do morro... Qualquer semelhança com o obscurantismo de séculos passados é mera realidade.

A chegada do Século XX foi desastrosa, tanto quanto se poderia esperar. Ele só existe mesmo desde 1995, praticamente, foi espremido pelo antecessor, que durou quase dois séculos. Como uma criança que demora muito a nascer, e nasce em meio a violências diversas, ele tem esquizofrenia grave. Não bastasse a saúde debilitada e a personalidade muito agressiva, ele não sabe quem é, o que faz aqui e tem horror às pessoas que vivem neste tempo, tanto que as liquida sem dó.

O facto de o século ter finalmente virado, não significa grandes cousas, porque a influência do anterior persiste pelas primeiras décadas. Ainda estamos nelas. A mentalidade fechada, o raciocínio focado nas satisfações animais, a rejeição de idéias que lhe são desconfortáveis e o apego agressivo ao que se acredita possuir, seja um conceito, uma coisa ou mesmo uma pessoa. Isso não é exclusivo de uma ideologia, é uma obsessão quase "religiosa" de todas elas, porque todas empunham bandeiras e não arredam pé de um milímetro sequer.

Preciso dizer que ditaduras sangrentas ainda existem e que ainda encontram defensores, que não dão a mínima para a população oprimida, desde que sustentem suas ideologias ou o os conceitos que lhes são anestésicos? Não, não preciso. E ai de quem disser que são regimes nocivos, viram inimigos mortais de seus defensores, ainda que tenham acabado de salvar-lhes as vidas.

Ainda hoje as pessoas confiam cegamente nas fontes com que simpatizam, bastando que continuem a dizer o que lhes anestesia. Ainda hoje as pessoas interpretam ao pé da letra tudo o que lêem, isso quando lêem, em vez de simplesmente repetir como um papagaio o que ouviram falar. Ainda hoje as pessoas vêem com desconfiança quem simplesmente tem um sotaque diferente, não raro isso é motivo para agressões, como na época das cruzadas.

As pessoas não compram algo pela sua utilidade, ou pela sensação de afeto que suscitam. Quase sempre, compram para parecerem o que não são, como os penetras de festas palacianas do século XIX. Quase ninguém compra carro colorido, por exemplo, porque o outro pode não querer comprar, na hora da revenda. Assim, o outro também evita comprar o que gosta, porque o outro outro pode não gostar e se recusar a comprar, já que também visa agradar o outro outro outro e assim por diante. Ou seja, ainda hoje sobrevivemos de aparências, nos esquecendo de viver nossas próprias vidas. E quem não vive a própria vida, vocês sabem, se mete na alheia ainda que não dê o mínimo por ela.

Bem, queridos leitores, eu poderia escrever páginas e mais páginas a respeito, mas este resumo dá bem o recado do que eu quero dizer. Não se iludam com a evolução técnica e científica, que resultou mais em quinquilharias supérfulas do que realmente em soluções reais. Este século ainda é o XX, e rogo que ele dure pouco, ele e sua mentalidade perniciosa. Espero de coração, que não chegue aos anos sessenta.

29/08/2013

A valsa triste

Não pensava que fosse passar por isso. Já fora hostilizada pelas patricinhas acomodadas, que só querem
arranjar um marido rico que as sustente, com luxos e mimos, em troca de não precisar lhes das satisfações com o que faz noutras camas. Sabem aquelas aprendizes de dondocas, cheias de não-me-toques, que publicam as coisas mais fofas do mundo nas redes sociais, mas humilham sem dó o garçom que trouxe o prato errado? Estas já a tinham execrado, a chamavam de comunista, de cubanista, adoradora de petralhas, feminazista abortadeira e um monte de outros adjetivos que não lhe serviam. Ela não era e não assumia absolutamente nenhum rótulo, muito menos os "istas".

Não queria ser guerrilheira de coisa nenhuma, conhecia muito bem a história, que estuda com gosto, e sabe das mazelas de ambas as polaridades ideológicas. Por isso mesmo também é olhada torta pelas turmas às quais pensam que pertence, acham-na muito bem adaptada ao sistema, muito mulherzinha, muito romântica, com gostos muito burgueses. Sabem aquelas marxistas de boutique, que clamam por direitos e morrem de amores por ditaduras sangrentas? Estas ainda a toleram porque ela é engajada e contraria interesses de multinacionais, embora por motivos totalmente adversos. Uma vez ela soltou "Salário não é um tipo de lucro?" e quase foi linchada. Teria sido, não fosse praticante de kung-fu.

No cotidiano, porém, o verniz social se juntava ao medo de levar uma surra, e todos a tratavam com alguma civilidade. Às vezes até riam sinceramente das mesmas situações. Os professores, no entanto, não tinham a mesma simpatia, não os ideologicamente definidos. Eles podiam puní-la, então não tinham tanto medo de levar uma surra.

A gota d'água, porém, veio quando ela apareceu na sexta-feira, dia de traje livre no colégio, em um vestidinho trapézio com estampas geométricas, um vintage sessentista que comprara em uma feira de pulgas.

No fim de semana anterior, viajara com a família para São Paulo, onde havia um evento de antigomobilismo e memorabilia. Ficou encantada com aquelas peças e pediu aos pais que seu debute fosse temático. Não dispensaria a valsa, mas queria todo mundo com roupas retrô, se possível também a decoração. Nisso, trataram de comprar as primeiras peças dos anos cinqüenta e sessenta, o que incluía revistas, para se orientarem, e dois jogos de roupas.

Aquela visão era o pretexto que tanto sonhavam para enquadrá-la em seus padrões de difamação. De ambos os lados, incluindo professores "engajados e politizados", aquela indumentária suscitou os adjetivos "fútil", "reacionária", "prostituta", "alienada", "americanóide" e "nonsense". Ninguém falou uma palavra, não na frente dela.

Um dia, no mural do pavilhão, um convite estilizado com a imagem de um drive-in de época, convidava os amigos a aparecerem para seu debute. Foi a gota d'água. Para um grupo, ela estava ultrajando uma tradição sagrada, para o outro estava se entregando à subserviência patriarcal que tanto combatiam. Perseguição? Imaginem! Para um grupo, perseguição é desculpa de quem quer ser o coitadinho. Para o outro, só minorias historicamente oprimidas podiam ser perseguidas.

Chegou o dia. Não havia pompa, mas tudo estava um brinco! O bar temático montado, um velho frigobar transformado em juke box ao lado, mesas pequenas e bem distribuídas por todo o salão, exceto o bom espaço para dança. Os parentes quase todos foram, mas todos mandaram presentes. Alugaram câmeras de segurança para filmar de vários pontos do forro, e dar um diferencial ao evento. Lá fora, duas Vespas e três Lambrettas faziam companhia a um DKW 1963, um Fusca 1968, uma Rural 1960 e um Mustang 1967.

Arrematando, a discoteca era de época, com discos de vinil. Dezenas de títulos, com artistas das quais a debutante nunca tinha ouvido falar, antes de pegar o vírus vintage. Para se diferenciar, copiou um modelito dos anos trinta, com xale e chapéu ornamental.

Com o passar das horas, chegaram três professoras. Só elas e ninguém mais. a noite avançava e quase metade dos lugares estava vaga. O pai da moça, vestido de motoqueiro rebelde, foi ver com elas qual seria o motivo da ausência massiva, não agüentava ver a filha ansiosa e tristonha. Pediram para chamar também a mãe da moça, vestida da personagem Sabrina, de Audrey Hepburn, e contaram em voz baixa o que colegas e professores realmente pensavam dela.

O homem, indignado, quase pegou uma Lambretta para ir tirar satisfações, mas foi detido pela esposa. Conversaram e acharam melhor dizer-lhe que todos os seus veerdadeiros amigos, estavam naquela festa, mesmo sabendo que iria chorar. E chorou. Precisou retocar a maquiagem. Agora ela precisa prolongar a infância por alguns minutos, nos braços da mãe, depois retoma a alvorada da vida adulta.

Choro passa e ela volta ao salão. Manda tocarem Mireille Mathieu, porque agora será uma moça, não mais uma menina. É para isso que serve o debute, para avisar formalmente que não serão mais toleradas reações infantís da moça. Ela agora está a poucos passos de ser uma adulta. Será uma valsa triste, mas será a sua valsa e não abrirá mão dela por quem não merece.


22/08/2013

Fórmula Vee

Fonte: Race Brazil

Existe uma categoria no automobilismo, que uma boa empresa de médio porte pode bancar sem problemas.Não estou falando do kart, que já é arroz-com-feijão da mídia especializada. Falo de uma categoria que quase não recebe espaço eu mesmo jamais vi uma reportagem a respeito.

Me refiro a uma categoria que é levada à sério em todos os outros países, por suas federações e confederações, por permitir que adultos ingressem no automobilismo sem serem milionários. O Brasil, como sempre negligencia esta potencial fonte de circulação de recursos.

Trata-se da Fórmula Vee. O princípio é simples, um carro monoposto com a tradicional e acessível mecânica Volkswagen a ar, usando o máximo possível de peças já existentes no mercado, prontas para utilizar, inclusive as usadas na preparação do motor. Com esta receitinha básica, o médio empresário pode usar o dinheiro de uma caminhonete nova para iniciar uma equipe.

Sim, eu sei, automobilismo e "barato" são antônimos. A vantagem econômica da F-Vee, é que ela não tem custos astronômicos. Qualquer categoria excede fácil um milhão de reais, para fazer uma temporada, fora a compra do carro. Sem contar que a Stok Car brasileira não é mais aquela carismática, que utilizava carros de rua de verdade em suas provas. Carisma é o que não falta à Fórmula Vee.

Para começar, eles têm em média, apenas 75cv @, que empurram um veículo muito leve, com uma suspensão que exige braço da ou do piloto. Essa potência de carro popular seria inviável em qualquer outra categoria adulta, mas na Vee ela faz a festa, tanto do piloto, quanto da equipe e do público.

Mesmo pouca, a potência permite uma aceleração bruta dos carrinhos, que se passam fácil por aquelas réplicas motorizadas para crianças. Com o entre eixos, a distância ente as rodas da frente e as de trás, curto, as derrapagens obrigam a alguns malabares em curvas rápidas, oferecendo ao público o que toda competição deveria oferecer, muita diversão. E diversão sadia.

Há, claro, os detratores. A maioria por motivações políticas e pessoais. São eles, infelizmente, que detém a administração das entidades que dão tanto espaço físico quanto midiático, às categorias. A Fórmula Vee é muito equilibrada, o amigo Zullino trabalhou muito arduamente para fazer um projecto que agradasse a federação, com pés no chão e olhos no horizonte. Não há muitas chances de aparecer um super herói nacional que estampe matérias torpes em telejornais.

Sim, meus queridos, infelizmente a doença crônica da adulação invadiu todos os espaços. As pessoas que se esmeram em ter carisma para ganhar poder político em entidades que poderiam salvar o automobilismo nacional, só se preocupam em abrilhantar suas imagens e alçar vôos mais altos.

Ah, sim, a maioria de vocês não soube. Pois bem, muitos autódromos estão sendo vendidos à especulação imobiliária, no Brasil. O de Jacarepaguá foi só o mais famoso e escandaloso caso. O de Goiânia só não o foi ainda, porque o dono apenas concedeu a área, e só para uso automobilístico. Se pensarem em construir qualquer coisa diferente no lugar, ele toma de volta. Sorte que os outros não tiveram.

Infelizmente, um dos grandes trunfos do automobilismo é uma das causas de sua desgraça, em um país onde ser analphabeto funcional dá status. Precisa usar a cabeça. Não é só pegar um carro e sair dando cavalos de pau na pista. É preciso ter raciocínio rápido, conhecimentos mínimos de matemática, saber interpretar as decisões das reuniões com a equipe e, se for o caso, ter altos graus de conhecimento técnico, que inevitavelmente são precedidos de conhecimento acadêmico.

Well... Enquanto o brasileiro se encanta com polêmicas fúteis e baba por causa de "ídolos" que se esmeram em dar péssimos exemplos, esportes que desenvolvem o intelecto e a sociabilidade, como o automobilismo, vão ficando para escanteio, nas mãos de quem pode sustentá-los sem precisar de uma massa midiática apoiando. Quando aparece uma categoria séria e acessível, é o que estamos vendo.

Aliás, os pilantras que estão vendendo os autódromos, patrimônio público, para incorporadoras que não têm mais onde construir espigões, e não querem pagar o preço justo de um terreno no centro, fazem questão de que o povo continue a pensar que "corrida de carro é besteira pra rico torrar dinheiro".

Uma pequena metalúrgica que patrocinasse a Vee, e fornecesse alguns componentes de sua fabricação, teria um laboratório rápido e barato para aprimorar seus productos, se capacitando a crescer e enfrentar as gigantes do mercado. É só um exemplo, um de muitos que poderiam fazer a economia girar mais rapidamente.

Aliás, aqui deixo um adendo. Ao contrário da crença popular, o volume de dinheiro vale, em um sistema econômico, bem menos do que a rapidez com que circula. Um real que circule mil vezes, faz o trabalho de dez notas de cem. Assim uma categoria relativamente barata, conseguiria alavancar fácil a economia de uma região, se lhe fosse dado o apoio de que necessita, porque até agora eles têm trabalhado no peito e na raça.

Dãã... "O Brasil é país de futebol, quem não gosta de futebol não é brasileiro"... "Corrida é só Fórmula 1, o resto a televisão não mostra"... "Corrida de carro não faz copa do mundo"... "Inteligência é frescura de gringo"... Tudo isso é coisa que já cansei de ler e ouvir. Infelizmente este país se transformou em uma nação de umbigos que só raciocinam daí para baixo. Para a parcela que quer evoluir além do que apregoam as estatísticas do governo, acaba taxada de "burguesa reacionária", fútil, elitista, traidora da nação e mais um monte de abobrinhas. Ou seja, gostar ou concordar com outras coisas, é passaporte para a personificação non grata. Os malandros sabem disso e se aproveitam.

Infelizmente não há atalhos, o caminho é íngreme e os sabotadores vivem a molhar a grama da rampa, mesmo quando já está encharcada. Ajudaria se um artista da moda aderisse? Ajudaria, mas ainda assim é difícil, porque seria necessário manter o público mesmo depois do oba-oba que as publicações "especializadas" deflagrassem. Ainda assim, o gigantismo do estrago não deteve os teimosos que mantém o automobilismo honesto vivo.

Pode até acontecer de os campeonatos monomarcas, usados só para fidelizar a clientela, acabem expulsando as categorias acessíveis dos autódromos restantes. Eu já vi coisa pior acontecer por bem menos e em áreas essenciais. O que não vai acontecer, é essa gente deixar um laboratório eficaz e divertido ser extinto pela falta de caráter e compromisso de dirigentes, como fizeram com o Museu Alfredo Nasser, em Brasília... Ah, desculpem, o jornal não deu destaque nenhum, né...

Bem, caríssimos, pois os convido a pararem de colocar culpas em conspirações internacionais, acima de todos os poderes e de toda paranormalidade, e assumirem o quinhão que lhes cabe. Se há culpa de gente de fora, ela não nos exime da nossa, que é deixar nas mãos dos outros a decisão de nossos destinos, do que devemos ver, vestir, ouvir, assistir, comer e até do que devemos gostar. Tênis, como o automobilismo, não é esporte de burguês, é esporte de quem quer jogar tênis. Metam isto em suas cabecinhas, quem deve decidir o que vocês querem, são vocês, e eu sei que uma parcela gigantesca da população é automobilista enrustida. Não se assume com medo de perder suas turmas costumeiras. Pois paguem o preço, quem realmente for seu amigo, não vai se afastar por causa disso. A diversão, como tudo mais o que o automobilismo traz de bom, é garantida.