23/11/2013

Silêncio e solidão


Não importava onde estivesse, sempre havia alguém a achando triste. Nem todos se manifestavam, mas sempre havia alguém  olhando e se perguntando o que lhe teria acometido. Bem mais de uma vez, lhe ofereceram um lenço, acreditando que estava para chorar.

Seu semblante era mesmo tristinho, dava sempre a impressão de que estava deprimida, mas não mentia. Melaine era uma garota muito introspectiva. Desde criança preferia ficar em seu canto, quieta, só olhando os outros brincarem, quando muito. Geralmente preferia ficar sozinha mesmo. Uma plantinha costumava ser entretenimento melhor do que qualquer uma de suas bonecas. Não se dava com as outras meninas, elas falavam demais, gritavam demais, e ela queria aproveitar o momento.

Na escola não foi muito diferente. Continuou preferindo ficar só. Detestava quando precisava fazer trabalho em grupo, porque os outros falavam demais, davam palpites demais, discutiam demais. Gostava de expor seu ponto de vista, quando necessário, mas não de prolongar indefinidamente as argumentações. Não fazia questão de estar certa.

No colegial, pouca coisa mudou. Aliás, só uma coisa mudou, estava dez centímetros mais alta. O mesmo corte chanel, o mesmo olhar tristonho, a mesma indisposição social e a mesma implicância dos colegas, que chegavam freqüentemente a ser perversos.

As aulas de educação física eram uma tragédia. Usar aqueles shortinhos dos anos oitenta na frente de todo mundo, era um constrangimento só. E quando começou a onda de aeróbica? Meu Deus, que pé no sacovisk! Aquela empolgação forçada, aquela mania que querer ser sexy de qualquer jeito, aquela música em volume insuportável e aquele maiô que teimava em entrar no rego. Era uma garota tímida, nem ao clube ia, para não chamar atenção.

O pior era essa alegria plastificada toda não condizer com uma época extremamente pessimista, com guerras civis e regionais proliferando por toda parte. Quando voltava da escola, se fechava no quarto, fazia suas tarefas e ficava quieta. Silente, solitária, apenas aproveitando o momento de sossego. Os pais chegaram a pensar que estivesse usando drogas.

Não chegou a ter festa de debute. Se fosse convidar todos os amigos, não daria meia dúzia. Não falo de colegas, conhecidos e gente que simplesmente via todos os dias no colégio. Amigos mesmo, deveria ter dois ou três, se muito, nenhum com intimidade. Os parentes todos moravam muito longe, o mais próximo estava em Goiânia, preso por receptação de carga roubada.

O vestibular não foi lá grandes coisas também. Tentou três vezes, sem se desesperar, sem mesmo ter apreço por qualquer um dos cursos existentes. Como era boa em matemática, estudou engenharia da informática. Curso novo na época, sem grandes perspectivas para um mercado ainda restrito. Namoro? Não, nenhum. Melaine acabou ganhando tardiamente um apelido, derivado de seu nome: Melão Colia. Pelos corredores da faculdade, só a chamavam de Melão. Nada a ver com seu corpo de curvas discretas, seios pequenos e glúteos pouco desenvolvidos.

Na faculdade se via obrigada a conversar mais. Menos mal ser acadêmica de exactas, mas infelizmente as matérias de webdesigner rendiam as odiadas discussões acaloradas, porque nelas a subjectividade galopava louca a toda velocidade.Sua preferência sempre foi por fractais e padrões geométricos, especialmente utilizando as proporções áureas. Não era arrojada e despachada, como se esperava de uma moça tão jovem. Seus trabalhos sempre tinham a simetria de uma pintura clássica, ainda que quem olhasse de relance não a percebesse.

Triste era quando se encontrava com estudantes de humanas. Por Cristo, como eles falam! Parecem gostar de fazer brotar argumentações em terreno estéril! Melaine logo fez alguns desafetos, apenas cortando o assunto com "Pode ficar com sua razão e me deixe em paz". Sua figura tristonha fez o apelido se alastrar pela universidade inteira. Seus desafetos tiveram, sem querer, a maior vingança que poderiam imaginar, a tornaram famosa.

Alguém aventou a possibilidade de ela ainda ser virgem e sua vida acadêmica se tornou um purgatório. Passou a receber convites extremistas, de um lado crentes insistindo para que se convertesse e se tornasse "noiva de Jesus", do outro gente oferecendo ou se oferecendo como "cura para a doença". Acreditavam que era triste por ser virgem.

Foi isso até a formatura. Melaine só teve alguma relação com os professores, não com todos e não com profundidade. Entretanto, era confiável, algo raro em gente tão jovem. Conseguia, assim, trabalhos para websites de empresas e instituições. Ela não delirava, ouvia com atenção o que o cliente pedia, do que ele precisava e o que pretendia, então construia a página inteira, às vezes do zero. Só nos últimos meses de curso é que começaram a ver utilidade na introspecção dela, quando passou levar dinheiro para casa.

Por ironia, e para preservar sua privacidade, passou a usar Melão Colia como alcunha profissional. Não queria ficar rica, famosa, prestigiada, nem, cousa alguma. Só queria que respeitassem seu silêncio e sua solidão voluntária. Isso lhe custou a fama de fria e indiferente, para com os dramas alheios. Na verdade ela é que não entendia por que teria que compartilhar sua intimidade com todo mundo, como costumavam fazer.

Agora podia trabalhar em casa, só saindo quando fosse estritamente necessário. Infelizmente, para ela, a era das redes sociais estava consolidada. Precisou, para o bem de sua carreira, abrir um perfil. Para a tristeza dos pais, o perfil era meramente profissional, não dava uma linha de quem era Melão Colia Webdesigner.

Na vida civil, continuava a ser uma fonte de preocupações para os pais. Nenhum namoro, nenhuma amizade conhecida. Se restringia à cadeira de balanço na varanda do quintal, onde podia passar horas no mais absoluto silêncio.

Um dia Melaine conheceu um homem, quando parentes do Acre despencaram até São Paulo. Uma viagem tão longa justificava uma permanência prolongada. Ele não era bonito nem feio, não era o rei da popularidade e não tinha um repertório de piadas engraçadas, mas foi a primeira pessoa no mundo a respeitar as coisas que ela mais prezava, depois dos pais, seus momentos de silêncio e solidão. Ele não fazia absolutamente nada, além de mostrar que estava por perto, se precisasse. Pela primeira vez ela era vista sorrindo.

Casaram-se na semana passada, para o alívio dos pais temerosos por seu futuro, quando tivessem que deixá-la. Fora de casa, especialmente em público, continuava a mesma Melão Colia que todos conheciam. Em casa, com seu Alberto, era a Melaine. Descobriu que nos braços dele, também conseguia o silêncio e a solidão de que precisava.

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