29/08/2013

A valsa triste

Não pensava que fosse passar por isso. Já fora hostilizada pelas patricinhas acomodadas, que só querem
arranjar um marido rico que as sustente, com luxos e mimos, em troca de não precisar lhes das satisfações com o que faz noutras camas. Sabem aquelas aprendizes de dondocas, cheias de não-me-toques, que publicam as coisas mais fofas do mundo nas redes sociais, mas humilham sem dó o garçom que trouxe o prato errado? Estas já a tinham execrado, a chamavam de comunista, de cubanista, adoradora de petralhas, feminazista abortadeira e um monte de outros adjetivos que não lhe serviam. Ela não era e não assumia absolutamente nenhum rótulo, muito menos os "istas".

Não queria ser guerrilheira de coisa nenhuma, conhecia muito bem a história, que estuda com gosto, e sabe das mazelas de ambas as polaridades ideológicas. Por isso mesmo também é olhada torta pelas turmas às quais pensam que pertence, acham-na muito bem adaptada ao sistema, muito mulherzinha, muito romântica, com gostos muito burgueses. Sabem aquelas marxistas de boutique, que clamam por direitos e morrem de amores por ditaduras sangrentas? Estas ainda a toleram porque ela é engajada e contraria interesses de multinacionais, embora por motivos totalmente adversos. Uma vez ela soltou "Salário não é um tipo de lucro?" e quase foi linchada. Teria sido, não fosse praticante de kung-fu.

No cotidiano, porém, o verniz social se juntava ao medo de levar uma surra, e todos a tratavam com alguma civilidade. Às vezes até riam sinceramente das mesmas situações. Os professores, no entanto, não tinham a mesma simpatia, não os ideologicamente definidos. Eles podiam puní-la, então não tinham tanto medo de levar uma surra.

A gota d'água, porém, veio quando ela apareceu na sexta-feira, dia de traje livre no colégio, em um vestidinho trapézio com estampas geométricas, um vintage sessentista que comprara em uma feira de pulgas.

No fim de semana anterior, viajara com a família para São Paulo, onde havia um evento de antigomobilismo e memorabilia. Ficou encantada com aquelas peças e pediu aos pais que seu debute fosse temático. Não dispensaria a valsa, mas queria todo mundo com roupas retrô, se possível também a decoração. Nisso, trataram de comprar as primeiras peças dos anos cinqüenta e sessenta, o que incluía revistas, para se orientarem, e dois jogos de roupas.

Aquela visão era o pretexto que tanto sonhavam para enquadrá-la em seus padrões de difamação. De ambos os lados, incluindo professores "engajados e politizados", aquela indumentária suscitou os adjetivos "fútil", "reacionária", "prostituta", "alienada", "americanóide" e "nonsense". Ninguém falou uma palavra, não na frente dela.

Um dia, no mural do pavilhão, um convite estilizado com a imagem de um drive-in de época, convidava os amigos a aparecerem para seu debute. Foi a gota d'água. Para um grupo, ela estava ultrajando uma tradição sagrada, para o outro estava se entregando à subserviência patriarcal que tanto combatiam. Perseguição? Imaginem! Para um grupo, perseguição é desculpa de quem quer ser o coitadinho. Para o outro, só minorias historicamente oprimidas podiam ser perseguidas.

Chegou o dia. Não havia pompa, mas tudo estava um brinco! O bar temático montado, um velho frigobar transformado em juke box ao lado, mesas pequenas e bem distribuídas por todo o salão, exceto o bom espaço para dança. Os parentes quase todos foram, mas todos mandaram presentes. Alugaram câmeras de segurança para filmar de vários pontos do forro, e dar um diferencial ao evento. Lá fora, duas Vespas e três Lambrettas faziam companhia a um DKW 1963, um Fusca 1968, uma Rural 1960 e um Mustang 1967.

Arrematando, a discoteca era de época, com discos de vinil. Dezenas de títulos, com artistas das quais a debutante nunca tinha ouvido falar, antes de pegar o vírus vintage. Para se diferenciar, copiou um modelito dos anos trinta, com xale e chapéu ornamental.

Com o passar das horas, chegaram três professoras. Só elas e ninguém mais. a noite avançava e quase metade dos lugares estava vaga. O pai da moça, vestido de motoqueiro rebelde, foi ver com elas qual seria o motivo da ausência massiva, não agüentava ver a filha ansiosa e tristonha. Pediram para chamar também a mãe da moça, vestida da personagem Sabrina, de Audrey Hepburn, e contaram em voz baixa o que colegas e professores realmente pensavam dela.

O homem, indignado, quase pegou uma Lambretta para ir tirar satisfações, mas foi detido pela esposa. Conversaram e acharam melhor dizer-lhe que todos os seus veerdadeiros amigos, estavam naquela festa, mesmo sabendo que iria chorar. E chorou. Precisou retocar a maquiagem. Agora ela precisa prolongar a infância por alguns minutos, nos braços da mãe, depois retoma a alvorada da vida adulta.

Choro passa e ela volta ao salão. Manda tocarem Mireille Mathieu, porque agora será uma moça, não mais uma menina. É para isso que serve o debute, para avisar formalmente que não serão mais toleradas reações infantís da moça. Ela agora está a poucos passos de ser uma adulta. Será uma valsa triste, mas será a sua valsa e não abrirá mão dela por quem não merece.


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