09/09/2013

O longevo Século XIX

Fonte: No Amazonas é Assim
Os mais novos não se lembram, mas muita gente esperava que, na virada para este século, o mundo fosse
transportado para o universo dos Jetsons. Lamentavelmente, as coisas não andaram como o esperado e este século, apesar dos avanços tecnológicos, ainda está muito longe de ser o que poderia. Mas que século é este mesmo? XXI? Não, meus amigos, assevero que não. Estamos em pleno e deformado século XX. Não levem o calendário tão à sério, ele só marca o tempo, a entidade secular é outra coisa, e ela ainda não mudou.

Antes de prosseguir, me digam quando terminou o século XIX. Heim? 1899? Não, garanto que foi um "pouco" mais adiante. 1900? Tampouco. A euforia da bélle époque só mascarou tudo, mais ou menos como um anti inflamatório,  que alivia o incômodo, mas não ataca suas causas. O século XIX, meus caros, terminou em 1994, com o fim do apartheid na África do Sul, que era mantido por princípios que de cristãos, não tinham absolutamente nada. Da mesma forma, a máscara de pós-modernidade mascara o psicótico século XX, que ainda vigora.

Fomos iludidos por nossas próprias conquistas tecnológicas, nos convencendo de que estávamos evoluindo e nos tornando mais civilizados. Longe dos olhos sociais, as máscaras caem rapidamente. A idéia de que há pessoas que merecem mais do que as outras, e muitas que não merecem mais do que a subsistência animal, é o que sustentava não só o regime segratório sul-africano, como também o que havia nos Estados Unidos até meados dos anos setenta. Até 1974, em muitos estados americanos, era crime um branco se casar com uma negra, ou vice-versa. E o presidente que os tirou da crise foi justo um negro gaiato com nome oriental!

É a mesmíssima mentalidade que ainda existe, de que mulheres devem ser separadas dos homens, de que elas são as culpadas pelas desgraças do mundo e não podem exercer altos cargos de poder, e nem sempre têm o direito de ganhar seu próprio sustento. A mesma que tem devastado o país com a onda de machismo extremo, que já custou a vida de milhares de ex-namoradas e ex-esposas, já que os fedelhos mimados não toleram perder o que julgam lhes pertencer. E não é só com as moças que fazem isso, essa mentalidade se estende a quem não é do seu grupo e não pode se defender. Tal qual as políticas de colonização vigentes até o século retrasado. Aliás, alguns países ainda têm colônias, algumas voluntárias, outras nem tanto.

Está acontecendo um exemplo claro no Brasil, onde as manifestações estão se dividindo em basicamente dois grupos, um rechaçando as reivindicações e legitimidade do outro. Por que? Porque estão tão apegados às suas bandeiras, ao conceito de que tudo no outro é errado e tudo nos seus é certo, que não se dão conta de que estão ambos sendo manipulados da forma mais elementar do maquiavelismo, ambos pelas mesmas pessoas. Típico do colonialismo, separar para enfraquecer e dominar. E as aldeias idiotas, crentes de que estão do "lado certo", se digladiam, enquanto os colonizadores se apropriam do que é seu.

Assim como no século em questão, vivemos uma época de revolução tecnológica e industrial sem precedentes. Tecnicamente falando, já é possível improvisar com dois guindastes, uma impressora 3D capaz de construir um palácio em uma fração do tempo que levaria, pelo ultrapassado e ainda vigente método de tijolos. é possível construir uma espaçonave, se o interessado tiver recursos, e alugar um avião de grande porte para o lançamento. É possível até mesmo construir um continente no meio do oceano, com recursos suficientes para formar uma nação e prosperar. Já podemos cultivar alimentos de modo a não macular o solo, e fazer com que renda muitas vezes mais do que conseguimos hoje, tornando o custo unitário absolutamente desprezível.

O problema seria que, por serem tecnologias relativamente recentes, ainda são demasiadamente caras, então vamos esperar que ALGUÉM comece a comprar, para que ALGUÉM barateie, e após ALGUÉM atestar que é viável, então compraremos. Só que o problema não é este. Assim como nos anos 1890, ainda estamos com medo das inovações, temerosos de que elas nos engulam, e o cinema não ajuda, só mostrando o lado sombrio de uma humanidade dominada pelas máquinas. Houve, quando do advento da locomotiva a vapor, uma histeria mundial, inclusive em solo americano. Um político chegou a mandar uma carta ao presidente (não me lembro qual, não me pressionem) exigindo a proibição daquela máquina demoníaca. A carta falava em urros selvagens, celeiros e plantações incendiados, animais mortos ou assustados pela visão, crianças atemorizadas, e que Deus certamente não queria que o homem viajasse a velocidades tão perigosas.

Notem que ele se ateve ao medo. Não utilizou absolutamente nenhuma argumentação fundamentada. E Deus não tem nada a ver com nossa burrice, é culpa nossa! Basta ver o episódio recente, em que um senador americano jogava em seu aparelhinho irritante, enquanto o representante da Casa Branca explicava os motivos do bombardeio a Síria. Ou ainda o que aconteceu há poucos minutos, quando o senador Álvaro Dias deu uma prova de patetismo, sugerindo que as prospecções no pré-sal sejam suspensas por conta da espionagem americana... Ele sabe algo de política internacional?

O cidadão médio, e infelizmente inclui quem faz, executa e defende as leis, não sabe muito mais coisas realmente úteis, do que quem morreu em 1900. Não falo de fofocas de subcelebridades, de capítulos de novelas falsamente engajadas, tampouco novos meios de burlar a receita federal; tudo isso é da idade média. Falo de conhecimentos técnicos, científicos e, se for o caso, verdadeiramente teológicos, algo que vai muito além de memorizar cada parágrafo de um livro que foi retraduzido dezenas de vezes, e que precisa ser lido com muito discernimento. Ainda hoje, tem gente que pensa que o sol gira em torno da terra, mesmo com diploma universitário. Como era no século XIX.

Quase todo mundo sabe lidar com um celular, mas quase ninguém faz idéia de como sua conversa vai pra lá e a do outro vem pra cá. Nem se importam, mas deveriam. Os cérebros atrofiados pela comodidade e pelo uso restrito de suas faculdades, fazem falta ao bem comum. Quem se acostuma a investigar um pouco de vez em quando, só um pouco mesmo, tem uma percepção de realidade muito mais lúcida e cristalina. Pode até errar, mas mesmo no erro presta bons serviços à posteridade. Na realidade, até sabedorias populares estão se perdendo, então o cidadão do século retrasado leva alguma vantagem.

As guerras continuam, por motivos que não ameaçam absolutamente em nada as fronteiras, as segregações continuam na marra e legitimadas pelo rótulo de "tradição nacional", as pessoas continuam com medo das inovações, o desprezo por quem não é do grupo continua arraigado e por aí vai. Tudo típico do século XIX. Não vou me aprofundar no fundamentalismo e na intolerância dogmática, que nada tem de religiosa, é só dogma mesmo. Isso tem explodido desde 1979. "Traficantes de Jesus" expulsando espíritas do morro... Qualquer semelhança com o obscurantismo de séculos passados é mera realidade.

A chegada do Século XX foi desastrosa, tanto quanto se poderia esperar. Ele só existe mesmo desde 1995, praticamente, foi espremido pelo antecessor, que durou quase dois séculos. Como uma criança que demora muito a nascer, e nasce em meio a violências diversas, ele tem esquizofrenia grave. Não bastasse a saúde debilitada e a personalidade muito agressiva, ele não sabe quem é, o que faz aqui e tem horror às pessoas que vivem neste tempo, tanto que as liquida sem dó.

O facto de o século ter finalmente virado, não significa grandes cousas, porque a influência do anterior persiste pelas primeiras décadas. Ainda estamos nelas. A mentalidade fechada, o raciocínio focado nas satisfações animais, a rejeição de idéias que lhe são desconfortáveis e o apego agressivo ao que se acredita possuir, seja um conceito, uma coisa ou mesmo uma pessoa. Isso não é exclusivo de uma ideologia, é uma obsessão quase "religiosa" de todas elas, porque todas empunham bandeiras e não arredam pé de um milímetro sequer.

Preciso dizer que ditaduras sangrentas ainda existem e que ainda encontram defensores, que não dão a mínima para a população oprimida, desde que sustentem suas ideologias ou o os conceitos que lhes são anestésicos? Não, não preciso. E ai de quem disser que são regimes nocivos, viram inimigos mortais de seus defensores, ainda que tenham acabado de salvar-lhes as vidas.

Ainda hoje as pessoas confiam cegamente nas fontes com que simpatizam, bastando que continuem a dizer o que lhes anestesia. Ainda hoje as pessoas interpretam ao pé da letra tudo o que lêem, isso quando lêem, em vez de simplesmente repetir como um papagaio o que ouviram falar. Ainda hoje as pessoas vêem com desconfiança quem simplesmente tem um sotaque diferente, não raro isso é motivo para agressões, como na época das cruzadas.

As pessoas não compram algo pela sua utilidade, ou pela sensação de afeto que suscitam. Quase sempre, compram para parecerem o que não são, como os penetras de festas palacianas do século XIX. Quase ninguém compra carro colorido, por exemplo, porque o outro pode não querer comprar, na hora da revenda. Assim, o outro também evita comprar o que gosta, porque o outro outro pode não gostar e se recusar a comprar, já que também visa agradar o outro outro outro e assim por diante. Ou seja, ainda hoje sobrevivemos de aparências, nos esquecendo de viver nossas próprias vidas. E quem não vive a própria vida, vocês sabem, se mete na alheia ainda que não dê o mínimo por ela.

Bem, queridos leitores, eu poderia escrever páginas e mais páginas a respeito, mas este resumo dá bem o recado do que eu quero dizer. Não se iludam com a evolução técnica e científica, que resultou mais em quinquilharias supérfulas do que realmente em soluções reais. Este século ainda é o XX, e rogo que ele dure pouco, ele e sua mentalidade perniciosa. Espero de coração, que não chegue aos anos sessenta.

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