21/12/2014

Tragédia de natal

  "Coma uma fatia de panetone, Berenice" insiste Adalberto. Mas ela não come, sequer responde. Está há anos neste estado, como se estivesse morta. Ele a vê à sua frente, aquele olhar lacônico que a acompanha desde a adolescência, aquele coque quase vertical, aquele terninho imitando os modelos Chanel que ela mesma fez. Tudo como sempre foi, exceto que ela não responde mais.

  O natal há duas décadas tem sido uma época triste para a casa, o último filho se casou e tudo ficou muito vazio. Foi coisa de três anos. Num dia a primogênita apresentava o namorado e no outro o caçula saía em lua de mel. Seis casamentos em três anos. A euforia pelas festividades seqüenciadas logo deu lugar à ressaca da casa vazia, enorme, construída pelo casal quando decidiu pelo matrimônio. Já nem há mais decoração natalina na sala, que outrora foi um festival de luzes coloridas.

  Os sete primeiros netos deram uma alegria estrondosa, o último nasceu poucos dias antes de o caçula se casar. Hoje estão todos adultos, donos de seus narizes e sabe-se lá por onde andam. Sabe que estão com as vidas encaminhadas, deixando seus pais a sós com o patrimônio que construíram. Eles sabem por onde andam seus rebentos, todos nos exterior, mas são nomes de lugares aonde Adalberto nunca sonhou em ir. Não que a miséria tivesse batido à sua porta, apesar dos sufocos e revezes de uma vida longa, mas sempre foram ele e Berenice, um casal com os pés no chão, não se iludiam com o que na época era um luxo.

  Aos poucos ele desiste de oferecer o acepipe à esposa. Não está irritado, compreende sua situação. Aquela era a casa mais festiva do bairro, afinal eram seis jovens que a habitaram por muitos anos. Eles sim, conheceram o mundo, trazendo de volta aos pais a riqueza do que tinham aprendido lá fora. Photos, presentes, revistas e miudezas que até hoje repousam com carinho, no baú do quarto de casal.

  Lembra-se de como as pessoas faziam troça, quando dizia que se casaria com aquela moça linda e risonha. Era a alegria em pessoa. Com tantos rapazes em carros caros e vivendo de mesada do papai, por que ela o aceitaria? Pois por isso mesmo ela o aceitou. Foi um casamento dos sonhos, com todos os problemas que a vida doméstica tem, foi um conto de fadas.

  Lembra-se ainda de que a esposa era alegre até demais, em algumas ocasiões. Era uma estrela radiante, mas depois que o caçula se casou, as coisas mudaram muito. Ela nunca mais foi a mesma desde que ele saiu em lua de mel, pegou a estrada prudentemente pela manhã, mas logo na saída teve seu Chevette Hatch 1982 esmagado pelo Scania 113 de um motorista drogado.

  Ninguém se recuperou de verdade até hoje, mas todos aprenderam a conviver com a dor. Todos, exceto Berenice. Coração de mãe, também, mas a mídia estampando o corpo esmagado do rapaz em todos os jornais, tornou irreversível o que era extremamente grave. De então em diante o olhar lacônico não ra mais uma armadilha, Berenice definhava a olhos vistos, para a tristeza do marido dedicado.

  Morreu, como disseram os médicos, de coração partido. Hoje Adalberto chora sozinho, conversando em vão com o último retrato da esposa, tirado há quinze anos, pouco antes da morte súbita.

15/12/2014

Fusqueando no fim do ano

 Ele entra no Fusquinha 1967 verde, decidido ao que se propôs. Mal sai do bairro residencial e já vê luzes piscando por todos os lados. Mal entra em uma via principal e se vê cercado de carros em vários tons de cinza, praticamente parados. De que adiantou ter importado o Plymouth Superbird numerado, se naquela muvuca o ronronar encorpado de seu V8 permaneceria em marcha lenta o tempo todo? Vai no Fusca mesmo.

  Das janelinhas mínimas ele vê as pessoas apressadas, com celulares e smartphones dividindo as mãos com as sacolas. Uma mulher nem percebe que roubaram as suas, se tão entretida com o maldito tablet. Consegue andar uns dez metros e o trânsito para de novo, desta vez por causa de uma batida. Um Gol enfiou na traseira de um Up! e a maioria estava perto demais para poder desviar. Briga de família, pensa ele, melhor não se meter. Espera pela primeira brecha e se aproveita do metro e meio que manteve do Cruze para trocar de pista.

  A cerca de vinte metros à frente, um Caio Alpha Vip caindo aos pedaços pressiona uma Grand Besta que insiste em respeitar o sinal vermelho, o motorista da Kia estaciona e o ônibus avança o sinal, batendo em outro logo adiante e arruinando de vez o trânsito. Quanta irritação, quanto estresse, quanta vontade de de encontrar um portal das fadas e sumir deste mundo! E olha que estamos na época do amor e da fraternidade! Em época de carnaval ele vê o próprio diabo fugindo do inferno que se instala na cidade.

  Sem escolha, desiste do itinerário que traçou e pega a primeira via transversal que consegue, entrando em bairros mais caros e cheios de luzinhas que simbolizam o que suas casas não têm. Um Azera branco entra na contramão, buzina e vai embora, chamando o milionário do Fusquinha de pobre e intruso. Ele segue pelo reino da plebe esnobe, em meio a casas ajardinadas e repletas de temas natalinos. Tudo tão bonito quanto falso, pelo menos nas que conhece, como a daquele contraventor que quase bateu no seu carro e não o reconheceu.

  A motorista de um Mercedes-Benz E-400 Hybrid preto até demonstra civilidade, dando-lhe a preferência em uma rotatória. Talvez porque ela também esteja farta de tudo aquilo, se há algo que aquele carrinho tem de sobra é honestidade, não parece ser o que não é e dependendo do uso, entrega até mais do que promete. O completo oposto do que está acostumada naquela vizinhança. Sabe de muita gente que arrota Cadillac, mas pena para pagar as prestações do Impala.

  Enfim consegue entrar em uma zona comercial. Aqui, pelo menos, pobre com dinheiro na mão tem alguma consideração. Ele em sua fantasia de pobre pode circular com menos medo. Os panetones que estão à venda desde Outubro não dão para quem quer, mesmo os ruins. Já se preveniu, o carro tem tudo de que vai precisar. E ser bairro caro não o poupa das mazelas de um prefeito que não tem gestão, tem uma congestão à frente da capital do Estado. As madames não têm com seus esportivos utilitários a desenvoltura de seu mini Panzer, em meio a todos aqueles buracos e poças de lama.

  Consegue sair da babel. Agora anda a mais de quarenta por hora, mesmo com asfalto cheio de remendos, desníveis críticos e buracos. Engata a quarta marcha e o boxer ronrona macio. Liga o rádio e ouve "Solitaire" na voz de Karen Carpenter. Acalma-se. Finalmente vai passar o fim de ano sossegado, sem ter que exibir dentes e participar de selfies infames. Participou ontem do último encontro oficial do clube do Fusca, já avisando do que iria fazer, e que por isso não poderia aceitar convites de fim de ano. Hpuve insistência, mas ele está decidido a ter um tempo para meditar e ter em mente o que fará da vida de agora em diante.

  Sua intenção é ficar só, ele e a solidão, mas mudanças de planos que não comprometam o objectivo podem correr, como a de itinerário para pegar as ruas largas de bairros industriais. Encontra uma amiga à beira da alameda, com seu Fusquinha 1968 vermelho parado. Nada de mais, um alicate e uma argola de chaveiro resolvem o problema que mandaria os carros modernos para o guincho. Ela não foi ao encontro de ontem, teve a mesma idéia, passou meia hora antes pelos mesmos lugares, passou pelos mesmos sustos, teve as mesmas irritações e seu Fusquinha está cheio das mesmas coisas.

  Vão os dois Volks então para o recanto que ele preparou, onde até há bons sinais de celular e internet, mas quase não usam os recursos, querem mesmo usufruir da solidão a dois. O ano novo começa com uma senhora dando ordens na casa. Só digo uma coisa, não digo nada. E digo mais, só digo isso.

03/12/2014

Papai Noel da depressão

Fonte: Bear Tales
  Carta: Querido Papai Noel, eu pedi uma conta gorda e um corpo magro! Por favor, não confunda novamente as coisas.

  Resposta: Eu te dei um emprego de gerente em uma academia grã-fina, você ganha o bastante para trocar de carro todos os meses e tem direito de usufruir de graça de todos os recursos da academia. O que você fez? Malhou? Fez o pé de meia? NÃO! Você se empenhou em dar em cima dos instrutores e quase perdeu o emprego por isso! Passa mais tempo pensando em como ferrar aquela sócia linda e maravilhosa que malha pouco e tem muitos resultados, do que se cuidando. Sua preguiça é tamanha, que torra quase três quartos do seu salário em clínicas de estética para preguiçosos que não querem malhar. Mas eu sei o que te falta, vou te mandar embrulhada em uma caixa aveludada com laços de fitas douradas, uma dose cavalar de vergonha na cara.

  Carta: Aí, Noel! Tô com a Maria e o Menino Jesus! Se não trouxer o que eu pedi, você nunca mais vai ver eles. VLW!

  Resposta: Aí, boçal! Pensa que está falando com quem? Com a turminha "Telma eu não sou gay" da sua rede social? Pode enfiar esses bonequinhos de gesso onde você já tomou, na cadeia, e é para onde vai voltar se não tomar jeito de homem, rapá! Vê se toma vergonha nessa cara lerda e usa o computador que EU TE DEI para aprender alguma coisa que presta, em vez de bancar o mano revoltado e oprimido que você nunca foi! Se vacilar de novo, mermão, vais ganhar é um par de braceletes judiciais e um apê com vista pro pátio do Carandiru.

  Carta: Eu não fui um bom menino, mas foda-se! Meu pai é deputado, tem imunidade, tem grana e vai me dar o que eu quiser! Chupa, velho chato!

  Resposta: Seu pai vai ser cassado antes de comprar os presentes, vão aparecer todos os podres, as amantes e O amante dele vão aparecer para dilapidar o fruto do furto ao erário, vai virar boneca na cadeia porque o diploma dele é falso e você vai estudar na escola municipal pipoco feliz. E você sim, vai correr o risco de chupar algo na pior acepção da palavra, se tentar montar banca por lá, fedelho insuportável.

  Carta: Querido Papai Noel... Ah, qualé, isso é invenção da Coca-Cola pra vender aquele desentupidor de pia que ela faz todo mundo beber! Por que continuo escrevendo essas cartinhas idiotas?

  Resposta: Querida adolescente revoltada que pensa que sabe tudo, meu nome verdadeiro é Nicolau e eu fui monge na idade média. A roupa vermelha não foi invenção de nenhuma companhia industrial, várias propagandas do século XIX já me mostravam assim, o que eles fizeram foi contractar Haddon Sundblom para criar uma imagem mais amigável às crianças, e o artista retratou a si mesmo para agradar à neta. Veja aqui e aqui. Quanto a evitar refrigerantes, você faz muito bem. Quanto a continuar escrevendo essas cartinhas idiotas, é porque você é o melhor tipo possível de idiota. Você não pediu nada, mas vou te dar uma bolsa em Harvard.

  Carta: papai noeu eu keria ganha um plestexiom e porke todo mundo ja tem e so eu q nam tem e poriso me intristese muitu eu vou fi k felis se ganha o plestexion. Vlw.

  Resposta: Ai, meus olhos seculares! Vou te dar é um ano de internato, para aprender o que essa escolinha empurrista não te ensinou.

  Carta: Querido Papai Noel, eu não quero um presente, propriamente dito, quero uma ajuda sua. Tenho muitos amigos, mas alguns deles são meio "politizados" e ideológicos, me trollam porque eu te escrevo cartinhas todos os anos, berrando que eu tenho problemas mentais e deveria é lutar pelos preceitos ideológicos de mudanças e eleger os candidatos que eles apóiam. Toda vez que eu falo em algum sonho, aparece um deles para me criticar de novo, afirmando que o sonho é um governo dos militantes que eles apóiam e que o senhor é invenção de exploradores para alienar as crianças. O que eu faço?

  Resposta: Então eles acreditam em discursos de políticos e te criticam por acreditar em mim? Meu filho, quem tem problemas mentais são eles! E te digo mais, eles nunca foram seus amigos, se não te respeitam. Vou te dizer o que farei, vou te dar um endereço novo e um emprego de meio período, para poder continuar estudando e não ter tempo de ser encontrado por esses caras, de quebra vai ter seu próprio dinheirinho.

  Carta: Aí, Noel! Ohooo! Valeu, aí!

  Resposta: Só, bicho!