06/12/2021

O maldito opressor do bairro

  

Via Área de Mulher


           Pedro Exelissómenos era um homem comum de um bairro pobre comum, com uma vizinhança pobre comum, que preferia pagar cem por cento de juros em prestações a perder de vista em uma televisão maior do que a parede, a ter uma de tamanho médio e investir os recursos restantes no bem-estar da família. Pedro, porém, não se sentia confortável nessa situação, estava mais se espremendo para se adequar do que propriamente usufruindo da vida que levava. Certa feita, na volta para casa, o ônibus com suspensão e chassi de caminhão precisou fazer um desvio, passando por um dos poucos bairros nobres restantes, posto que a maioria se mudara para cidades privadas que chamam de "condomínio fechado", como se este já não existisse aqui dentro. Enquanto os outros se admiravam com a riqueza e alguns cuspiam nos carros estacionados, inclusive em um raro Mercedes-Benz SL500 com a capota baixa, Pedro observava o que até então lhe passava desapercebido. Não era só pela coleta mais freqüente que aquelas ruas eram limpas, todo o lixo era depositado em local adequado e bem organizado, mesmo as coisas que os ricos não queriam mais eram postas de modo a não atrapalhar o caminho dos vizinhos. A grama também era interessante por estar bem cuidada e bem aparada, enquanto sua rua era um matagal só. Bem, aquilo ele poderia fazer, não precisava ser rico para ser limpo e civilizado. De repente reconsiderou a compra daquele celular caro e badalado. Estava mesmo na hora de comprar um novo, mas optou por um modesto que, surpresa, atendeu com sobra a todas as suas necessidades. Como custou menos do que um carro usado, pôde parcelar em menos vezes e pela primeira vez sem juros.


            Pedro chegou em casa e viu aquela baderna em frente à sua porta. Na falta de um tesourão, pegou um facão e deixou aquele mato com cara de grama, voltou para dentro a tempo de pegar o lixo e o colocou em uma caixa à porta, então foi tomar seu banho. Para quem passava em frente, a diferença era gritante, a casa de Pedro estava cercada me mato que os vizinhos esperavam que a prefeitura roçasse. Com o lixo bem acondicionado, os coletores levaram rapidamente sem deixar cair nada pelo caminho, com isso sua frente também estava bem mais limpa do que as dos vizinhos. Até aqui tudo bem, era só uma casinha mais limpa do que as outras, situação que pensavam que não fosse durar muito tempo. Mas durou. Com aquela imagem de civilidade pulsando em sua mente, Pedro começou a prestar mais atenção à sua casa e à sua família, mudando suas prioridades e realocando seus parcos recursos para seu lar. Em vez de comparar aquele televisor O-led de cem polegadas com imagem tridimensional e sistema de som tetradimensional, manteve o seu de quarenta que já tomava boa parte da parede. O dinheiro não gasto foi investido na família. Pôde pagar um tratamento dentário em uma clínica melhor e não deixou de prestar atenção à decoração que, olhando de perto, poderia fazer similar em sua casa com madeiramento que vê jogado fora no bairro. Não foi difícil encontrar a matéria-prima de precisava. Tratamento com óleo queimado, cortes bem feitos em uma marcenaria e pronto. Toras mais brutas se tornaram um caminho do portão à porta de casa, que por dentro recebeu painéis de madeira em todos os ambientes, que inclusive permitiam pendurar prateleiras e elementos de decoração.


            Para os que passavam a trabalho pelo bairro, era como ver uma casinha de classe média em um espaço limpo no meio do lixão. O carteiro já não confundia mais os endereços, inclusive porque o da casa estava bem nítido e ladeado por pastilhas de cerâmica azul, enquanto na vizinhança o melhor que havia era algo pintado à mão em pedaços de lata que a ferrugem já carcomia, muitas vezes ilegível. Por dentro as mudanças eram comentadas pelas visitas, porque eles estavam comendo melhor, não necessariamente gastando mais, mas os hábitos da casa estavam se refinando quase que inconscientemente. Nem tudo vinha mais do supermercado do bairro, que já não supria mais as necessidades da família, muita coisa era trazida de lojas mais centrais, o que também não deixou de ser notado pelos vizinhos, que não viam mais Pedro torrando seu dinheiro nos botequins próximos. Alguns amigos se afastaram e gente nova tomou seu espaço, acentuando mais as mudanças, que não demoraram a se refletir na indumentária, eles não aceitavam mais pagar caro para parecerem mendigos e fazerem propaganda grátis para marcas da moda. Um discreto e eficiente Prisma branco não demorou muito mais a encontrar vaga na garagem daquela casinha, do lado oposto ao do alpendre com seus bancos rústicos de madeira de toras descartadas em podas m al feitas pela prefeitura. Estavam tão imersos nessa nova vida, que só os comentários dos parentes os fez se darem conta do que estavam fazendo. A bem da verdade, só trabalharam com o que já tinham, em cima daquela mesma casa que passaram a cuidar melhor, e isso por si já tinha feito uma gigantesca diferença, o facto de estar limpa e com a pintura em dia a destacava das demais.


            Pedro e sua família começaram a pegar gosto naquilo em que estavam vivendo, em poucos meses sua humilde casinha já não tinha mais "suja" e "sufocante" como adjetivos. Só com material descartado, e algumas velhas revistas de decoração, conseguiram transformar sua casinha humilde em uma humilde ilha de beleza e bom gosto naquela vizinhança. Sua parte da calçada estava limpa e com a grama aparada, o lote contando com jardins verticais e lugares para se sentar e descansar. Claro que nem tudo fugia à regra, eles tinham suas contas em redes sociais, então publicavam normalmente imagens e vídeos curtos, cuja diferença paulatina foi notada e comentada pelos contactos, até chegar ao ponto em que pareciam ser uma família de classe média não deslumbrada. Agora não só comentavam como compartilhavam as postagem aos milhares, fazendo o mundo ver gente pobre sem pobreza mental, arrancando elogios de várias partes do mundo, com o bom gosto e a originalidade arrebanhando fãs pelos quatro cantos do mundo. Ah, isso foi demais! Quem eles pensam que são para querer parecer mais do que seus vizinhos? Não demorou para um ou outro jogar seu lixo na frente daquela casa, e as queixas não demoraram a serem respondidas com violência, então parecia que o bairro todo jogava seu lixo na calçada bem cuidada deles. Facilitou a vida da coleta, mas os coletores não gostavam do que estavam vendo, aquilo de jeito nenhum era lixo de uma casa só.


            Pedro conseguiu em uma demolição uma grande estrutura de condomínio para o lixo, acreditando que isso resolveria o problema, mas não. Ignorando a providência, continuaram jogando lixo em sua calçada, e eles tiveram que trabalhar mais para manter sua frente limpa. A ousadia, nutrida pela impunidade, posto que o poder público deu de ombros para as denúncias, fez os autores publicarem em vídeo o que faziam, e nesta era em que o podre tem mais apoio do que a sanidade, os vândalos conseguiram fãs. Não demorou a aparecerem fezes bem na saída da casa, e o lixo ser jogado para dentro do lote. Com tristeza a família Exelissómenos decidiu se mudar, mas em silêncio, sem nem mesmo contar aos parentes. Em um dia de jogo de futebol, com todos amontoados e berrando em poucos lugares, conseguiram ir embora levando o que conseguiram de toda aquela decoração já feita, mas muita coisa simplesmente não podia ser transportada. Findado o jogo, com a derrota amargando e sendo nutrida pelo álcool, alguém aventou que Pedro seria torcedor do time vencedor, então graças a Deus que saíram cedo e sem alarde, porque o que eles puderam destruir, foi destruído. Só não tiveram o linchamento que pretendiam porque a esta altura Pedro estava ajudando a organizar sua nova casinha, ajeitando como podia os elementos de decoração que tanta ira atraiu daquela vizinhança. Aos filhos autorizou continuarem a postar imagens e vídeos, desde que não revelassem seu endereço.


            Mas para a felicidade deles, estavam mais próximos daqueles internautas que tanto elogiaram suas postagens, e reconheceram de cara o estilo enquanto passavam por aquela nova rua. Ao baterem à porta para pedirem indicação, encontraram o próprio artista, cujas feições e olhar não escondiam suas origens humildes e sofridas, mas já não era aquele olhar de derrota e rancor de outrora. A tristeza então era pelas circunstâncias que obrigaram sua família a sair à francesa daquela casinha, que virou ponto de tráfico e aterroriza a antiga vizinhança. Ele começou orientando os novos vizinhos sobre o que poderiam fazer com o pouco que tinham, no caso dos passantes mais abonados como não parecerem cafonas deslumbrados. Como gosta de crianças, fez coisas com compartimentos secretos, surpresas, elementos que mudam de forma e se transformam em outra coisa, com isso encantando até os adultos. Foi no primeiro Dezembro na casa nova, com a decoração deslumbrando e virando notícia, que Pedro precisou deixar seu emprego, porque as insistentes encomendas de lojas e residências tomaram todo o seu tempo, precisou abrir um CNPJ e colocar a família para trabalhar. Decorações de natal com compartimentos secretos, surpresas, alta interatividade e alto grau de personalização deram início à vida para a qual então já estavam realmente prontos e familiarizados. Comprar celular caro? Televisor gigantesco? roupa brega e cara com jeito de mendicância fazendo propaganda para a grife? Atormentar a vizinhança com som no último volume e obrigar todo mundo a ouvir o que eles querem? De jeito nenhum! Até porque o que eles gostam de ouvir hoje, simplesmente não combina com exibicionismo, não combina com pobreza mental.