27/04/2012

Algumas lembranças claras


Passei boa parte da meninice em quartéis. Eu via e ouvia cousas interessantes, mas tudo muito discreto e... quer dizer, nem tudo. Isso foi no auge da ditadura, auge que também marcou seu declínio, para o desespero do rouba-mas-faz. Peço aos amigos que não façam birrinha e leiam tudo até o fim, não sou de direita, de esquerda, de cima nem de baixo, eu sou o que sou e é isso que eu sou. Eu sou o marinheiro Popeye! Poo-poo!

Lamento informar, mas gente inocente morreu sim, torturada. Comentava-se a boca miúda de pessoas que, de alguma forma, desagradava figurões, ou era excêntrica demais para a mente estreita de muita gente com prestígio, confessou crimes que não cometeu para ser assassinada de forma rápida, após longas sessões de tortura. Não, petebas, os policiais em questão não falavam disso com satisfação, falavam com muito pesar. Mesmo os oficiais diziam que já tinham passado tempo demais no poder e que deveriam ter respeitado os seis meses de prazo que deram, quando do golpe, ou revolução para alguns; palavras mudam de significado, neste início de século, então, até cueca ganhou bolso!

Tenho conhecimento pessoal de policiais que usavam do aparato da repressão, para controlar suas famílias. Especialmente se fosse com filhas. Assim que chegavam em casa, da escola, eram interrogadas de forma bruta sobre o porquê de terem conversado com um homem, durante o recreio, ainda que esse homem fosse um professor antigo. Os outros, apesar de nada poderem fazer, pois tratava-se de gente preciosa para quem estava e queria permanecer no poder, expressava claramente sua discordância. Levar o quartel para casa, comentavam, era como um médico levar um rim para operar na mesa da sala de estar.

Não, meus queridos, eu não imaginei tudo isso. São cousas claras que ainda trago nas lembranças, mais vivas do que factos recentes.

Não que o Lula seja boa bisca, na verdade não o conheço e não posso dizer se é, trata-se de um político e desconfio dele por antecipação, mas em uma época em que nem todos (na verdade, bem poucos) tinham telephone em casa, era comum nestas terras planaltinas as convocações de emergência, com oficiais mais ligados à política alegando que o "Lula está marchando para Goiás". Imaginem o que significava isto na época. Se hoje, com internet e todas as facilidades de se conseguir uma informação mais ou menos confiável, as pessoas têm preguiça ou nem sempre lêem o que não querem, imaginem naquela época. Havia censura, censura acirrada, então era fácil deduzir que não mostravam para não alarmar a população, e os soldados ficava aquartelados, alguns tirados da lua-de-mel para isso. Grande parte da raiva que muitos militares goianos têm dele, saiu disso. Grande parte das teorias da conspiração brotaram assim.

Por falar em telephonia, foi uma época em que o governo tinha o monopólio dos serviços essenciais, pelo que poderia ter popularizado as telecomunicações, sem praticamente ninguém para se opor. Mas não o fez. Os motivos são fáceis de se imaginar. Linha telephônica era tão difícil, que muita gente, há até pouco tempo, ainda vivia de alugar as suas. Havia uma bolsa de linhas telephônicas no Partenon Center, na Rua 4. Na praça em frente, uma central de telephones públicos toda de acrílico. Pasmem, eu me lembro ainda hoje daquela sede futurista, linda de se admirar, e sempre com bastante gente dentro. O acrílico das cabines era fumê, para dar privacidade. Hoje, infelizmente, é só lembrança em minha memória maltratada. Aliás, a Goiânia linda, limpa e civilizada, é uma lembrança dolorosa.

Lembro com clareza dos escândalos gerados pela máfia portuária. Muitas mortes, muitas ainda hoje insolutas (ou encobertas) e chocantes foram motivadas por disputas de poder, por desavenças e tudo mais. O sindicato que monopolizada o Porto de Santos, escolhia quem poderia ou não trabalhar, quase sempre escalando mais que o dobro do necessário de mão-de-obra, mas só dos sindicalizados. Metade fazia corpo mole, a outra metade fazia cousa nenhuma, encarecendo muito as operações portuárias. Quando havia eleição para a presidência desse sindicato, então, as delegacias ficavam sob tensão de guerra, mas pouco podiam fazer, porque o clima de máfia era muito maior do que só aparente, havia um código de silêncio que custaria a vida do delator, quando não também de sua família.

O descontentamento dentro dos próprios quartéis, aliado às dificuldades enfrentadas pelo povo, era maior do que a censura, então o humor ácido dos Millôr, Jaguar, Kateka e cia ltda aflorava. O problema é que toda a boa infra estrutura que o Brasil erguera, foi conseguida a custa de muito endividamento externo. Dizia-se que, quando um presidente brasileiro ia à Nova Iorque, passar o chapéu (sim, havia charges descaradas ilustrando isso) alguém perguntava "Como vai o Brasil?" e o presidente, constrangido, respondia "O Brasil vai bem, mas o brasileiro vai mal". O caso era muito mais grave no Nordeste, onde os coronéis que queriam uma ditadura eterna (e se diziam 'cristãos') ainda eram absolutos, e ainda hoje mandam muito. Lá, as constantes secas nos faziam ter imagens que hoje só conhecemos dos países mais sofridos da África. Chegou-se a cogitar, também em conversas de quartel e a boca miúda, reduzir a altura mínima para alistamento, porque a desnutrição estava nos dando uma geração de nanicos, que também sofriam com a falta de glicose, que estaria prejudicando também a capacidade de raciocínio. Exagero ou não, o facto em si aconteceu, e durou até fins dos anos oitenta, sempre com prefeitos clientelistas cadastrando quem tinha título de eleitor, para escolher quem receberia a visita do caminhão-pipa; outra máfia, diga-se de passagem, que nunca permitiu a construção de aquedutos. Doações para o Nordeste eram abundantes, mas poucas chegavam ao seu destino.

Sabem aquela história que seus pais falam de "lei que pega e lei que não pega"? Metade não pegava, especialmente as de trânsito. Foram décadas para que a ausência de capacete ou cinto de segurança, realmente começasse a dar punição. Lembrando que essas leis foram criadas quando a polícia militar era responsável pela fiscalização de trânsito, tendo então poder de flagrante e prisão. Mas sempre aparecia alguém que conhecia um político ou um oficial e quebrava a multa. E o coitado do policial, tentando fazer seu trabalho, queria quebrar a cabeça na primeira parede que visse pela frente, só de raiva, já que não podia fazer mais nada. Afinal, ensinar 'macheza' ao garoto, dando-lhe o volante antes de ter ideia na cabeça, era mais importante do que a segurança alheia.

O último general a assumir a cadeira eléctrica da presidência, foi João Batista de Oliveira Figueiredo, dele eles gostavam, mas não comentavam muito. Coube-lhe a tarefa de fazer transição, de se livrar da batata quente e deixar os militares fazerem o que era sua função. O que lembro dele, é que era curto e grosso, dando recados inequívocos aos rouba-mas-faz que queriam continuar no poder sem dar satisfações ao povo que os sustentava... e sustenta até hoje... eleitor idiota. Foi ele quem deu o pontapé nos fundilhos do pro-álcool, hoje rebatizado ridiculamente como etanol, como se o álcool de supermercado não pudesse alimentar o motor. Na época, estávamos no auge da crise do petróleo, deflagrada pelo Kadaffi (que hoje se contorce nos umbrais mais profundos) e que deu fim à era dos muscle cars, inclusive os nossos. Apesar dos problemas iniciais, e da inicial necessidade de se subsidiar o combustível, ele apresentava uma vantagem inegável, permitia ao motor gerar mais potência e emitia só o carbono que a cana retirava do ar.

Para terem uma ideia, um Fusca 1600 à gasolina, produz 52cv, o à álcool despeja 59cv, diferença suficiente para parecer que tem um motor 1800 empurrando o carro, especialmente na arrancada. Com a compressão muito maior, responsável pelo ganho de potência, a diferença de consumo era bem menor do que a de hoje. Devidamente preparado, o rendimento térmico do motor era ainda maior. Claro que os flex mal adaptados acabaram com essa vantagem, no máximo 2cv a mais em motores de 120cv, que poderiam ter fácil 25cv mais potência, se fossem só à etanol.

Também havia subsídios ao gás de cozinha, motivo pelo qual era vetado (mas se faziam vistas grossas) ao uso automotivo, e ao diesel, motivo pelo qual era vetado (mais vistas grossas) ao uso em carros de passeio; embora o motor de ciclo diesel não seja necessariamente proibido. Hoje o diesel não tem mais subsídios, mas continua proibido graças às donas maricotas que a base aliada impõe ao governo, no lugar de técnicos.

Algo que vem de longe, é a mentalidade medíocre do "É do governo, então pode quebrar". Claro que não se compara à delinqüência que temos hoje, mas o próprio funcionalismo público depredava e dilapidava o patrimônio público, como se fosse coisa sem dono. E quem se importava? Todo mundo tinha raiva do governo, à exceção dos que participavam dele, é claro. Ninguém parava para pensar que estava onerando seus próprios bolsos, que levar um aparelho usado de telephone para casa seria corrupção. Qualquer semelhança para com os dias de hoje, não é mera coincidência, é continuismo.

Há mais uma cousa que lembro do Figueiredo. Uma vez, um garoto do povo, pobre de marré-marré, lhe pediu um vídeo-game. Era novidade no mundo todo, no Brasil, então, nem se fala! Pois lá foi ele, depois de algum tempo, levar o Atari (se não me engano) que prometera. Difícil encontrar alguém que não gostasse dele, até porque a inflação galopante da época, era atribuída aos fracassos do então Ministro da Fazenda Delfim Neto. Alguém aí lembra de alguém ter prometido um notebook, para fazer um garotinho calar a boca, e não cumpriu? Ah, claro, pobre é OBRIGADO a gostar de futebol e detestar esporte de elite...

Estou cá, selecionando e ordenando as lembranças... Lembro de o episódio de 1964 constar nos livros de história, mas sem qualquer detalhamento. Eu acredito que um grupo de garotos idiotas e bem manipulados, tenham intencionado um golpe, como quem tenta atirar pedras na lua, mas qualquer um que tenha investigado dá por ridícula a conversa de 'Intentona Comunista". Jango era latifundiário e o brasileiro ainda estava muito influenciado pela propaganda de guerra, acreditava mesmo que comunista comia criancinha. Sem apoio do povo, sem chance. Lembro também de reclamarem que a bomba tinha estourado nas mãos do Sarney, quando da época da hiper inflação, em que os preços mudavam literalmente mais de uma vez ao dia; só que ele já fazia parte do governo, durante a ditadura, disso quase ninguém lembra.

Está ficando longo!... O que mais posso dizer, sem eternizar a redação, é que as pessoas que estavam no poder, na época, ainda hoje são eleitas, especialmente a turma do rouba-mas-faz. O Figueiredo tinha tentado desburocratizar o serviço público do país, fez até campanhas para que os brasileiros abandonassem o estereótipo do machão, mas teria sido suficiente ensinar o povo a votar... Certo, estou ficando velho mesmo.

19/04/2012

Não me chamem de 'doutor'!

Uma das piores mazelas deste país, responsável por grande parcela da corrupção (e suas conseqüências) é a obsessão do brasileiro em parecer mais do que realmente é.

Não se trata só de alugar (ou mesmo roubar) um carro caro só para ir a uma festa e impressionar os outros, para depois voltar a andar em um pau-de-arra do transporte público. A vaidade antiga, talvez remanescente da dor-de-cotovelo de quem não conseguiu um título nobiliárquico, durante o Brasil-Império, ser chamado de 'doutor' é uma das (se não A) adulações mais populares em todo o território nacional.

Não, não é o mundo inteiro que gosta disso, na verdade mesmo aqui nem todos aceitam essa bajulação, inclusive eu. É um vício endêmico de países subdesenvolvidos com pretensões de desenvolvimento, mas que raramente fazem algo para se desenvolver, principalmente na mentalidade; e a nossa é cambriana.

Lembro da história contada por um motorista de táxi brasileiro, em Nova Iorque, que falou de um passageiro cujo sotaque ele reconheceu. No decorrer da conversa, o fulano exigiu "'Senhor, não"! 'Doutor'". Meio constrangido, durante a conversa, o taxista descobriu que o indivíduo era apenas bacharelado em direito, se recusou a continuar chamando-o pela titularidade que não tinha e provavelmente arranjou um inimigo.

Como tudo sempre pode piorar, e geralmente piora, um vício se banaliza com facilidade, quando mexe com os brios do sujeito. Hoje, especialmente no serviço público, todo mundo é 'doutor' ou 'doutora', mesmo quem mal conseguiu um bacharelado, como o cidadão do parágrafo acima. Onde trabalho (ao menos tento) eu comecei a cortar a bajulação pela raiz, mesmo percebendo a contrariedade do outro lado da linha telephônica. Alguém liga perguntando pela 'doutora Thaís' e eu logo emendo 'A Senhora Thaís' está em reunião. A moça com cara de menininha e riso fácil, é minha chefe imediata, não serei um condutor de adulação barata, ainda mais uma que envelhece tanto quem a recebe.

Aos que insistem em serem chamados por 'doutor fulano', digo três pequenas cousas, que a soberba do diploma (que talvez nem tenham) os fez esquecer: 'Doutor' não é pronome de tratamento, é titularidade; exigir tratamento titular, indevidamente, pode dar processo por falsidade ideológica; não há artigo algum na constituição que obrigue alguém a te chamar de 'doutor'. Ah, ficaste chateado? Que pena, bacharel.

É diferente de chamar um juiz (de direito, jamais o de futebol) de 'meritíssimo', especialmente em serviço. Aqui é um dos poucos casos em que cabe chamar pela titularidade, porque o cidadão só a perde se for muito estúpido, especialmente em um país onde tudo o que é ruim costuma ser relevado. Mesmo assim, já há os de bom senso que preferem ser chamados pelos próprios nomes, fora de uma sessão. E nem sempre gostam de ser chamados de 'meritíssimo' o tempo todo mesmo dentro de um fórum, mas aqui já é questão de se ser uma pessoa bem resolvida e segura daquilo que é e de suas responsabilidades, então não precisa ouvir bajulações o tempo todo.

Aliás, leitoras e leitores que foram baptizados com nomes antes de terem títulos, se há algo que o brasileiro médio não tem, é segurança de si mesmo. Costumamos ver filmes e paródias chamando o americano médio de idiota metido a besta, mas não olhamos com o devido cuidado para nossas próprias mazelas. O brasileiro é mais bairrista do que os ianques, às vezes chegando ao ponto de se considerar regional, depois nacional. Bairrista a ponto de muitos se considerarem 'paulistas' e desprezarem o resto do país, só para citar um exemplo mais em voga, porque isto é generalizado e não se restringe às regiões abaixo de Brasília, há paraenses que sonham em fazer do Estado um país soberano... E lá ter o título honorário de 'doutor', seja lá do que for.

O que um tem a ver com o outro? Tudo. A raiz é a mesma, tanto que em ambos os casos, não basta se achar o máximo, precisa esfregar sua condição imaginária nas caras dos outros. Tudo para, logo em seguida, voltar às suas frustrações e seus traumas de sempre, que a empáfia não é capaz sequer de ajudar a enfrentar. Não precisa de diploma de psicologia para saber que o brasileiro médio, à amiúde, é muito mal resolvido consigo mesmo e com seu país. Poucos conseguem se colocar no centro, a maioria se extrema na auto-piedade ou na arrogância sem embasamento.

A ilusão psicossocial de um título, ajuda a disfarçar o mal-estar íntimo. Sim, é o que vocês estão concluíndo, o Brasil precisaria importar psicoterapeutas, se o brasileiro assumisse seus complexos e decidisse acabar com eles. Não, não estou dizendo que o arrogante-mor do teu emprego é um coitadinho, eu disse que ele precisa de ajuda, se não reconhece é problema e hematoma para ele. Aliás, não tarda a encontrar alguém ainda mais doente e bem equipado para dar-lhe lições de humildade. Doentes psicológicos podem ser mais perigosos do que toxicômanos em crise de abstinência.

Como no caso do brasileiro que é (ou era, sei lá) taxista em Nova Iorque, pessoas apegadas a titularidades costumam guardar rancores com relativa facilidade, porque não adulá-las é tirar-lhes uma muleta. Cambaleiam e caem com muito mais facilidade. A ausência de um adulador, no grupo, para eles constitui uma ameaça. Claro que os aduladores profissionais estão atentos, prontos para defender a qualquer custo a honra e o prestígio do 'doutor zé mané'. Agora, além de platéia, ele tem um fã, que vai exaltá-lo e tirar proveito de tudo o que puder. Para quem ainda não percebeu, o adulador, na verdade, adula a si mesmo e se vê no direito de tirar o que puder do orgulhoso. Aqui, o 'doutor' pode ser traduzido como 'é um assalto' civilizado. Procurem por 'Fagundes, de Laerte Coutinho' e leiam as últimas tiras, é o exemplo que melhor ilustra este caso.

Alguém seguro de si, não tenta ser mais (nem aceita ser menos) do que realmente é. Não se esforça em provar algo, nem provar que não precisa provar cousa alguma. Não rebaixa e não exalta o outro, enfim, cuida da própria vida e só se mete na alheia se for convidado, ou se a vida alheia acabar invadindo a sua. Quem insiste em fazer de um título um pronome, ignora tudo isso, porque a insubmissão alheia o incomoda. Ele quer do outro o respeito que não tem por si mesmo.

Eu sou um extraterrestre por estas bandas, porque trabalho em uma autarquia em que qualquer um ao telephone é chamado de 'doutor', mas eu corto. Uso de toda a diplomacia possível, que ainda assim não evita o choque, para mostrar que não sou e não faço questão de ser tratado por 'doutor'. No máximo um 'senhor', porque já tenho idade para isso.

O melhor meio de interromper o círculo vicioso, é não aceitar ser chamado daquilo que não se é, porque a recusa tira a segurança do adulador, que não espera de ninguém a recusa à adulação. Quem sabe meu nome de baptismo, é por ele que me chamam (alguns me chamam de 'Mago') quem não sabe pode me chamar só de Nanael, nada mais.

12/04/2012

Façam um computador assim


O estagiário (coitado, sempre ele) chega ao chefe do departamento com um pedido em mãos. Dana a relatoriar a encomenda e a descrição do que o cliente pediu, enchendo o sujeito de alegria pela comissão gorda que se apresenta, mas logo nota que o rapaz não está muito feliz em seu tom de voz...

 - Você não parece muito feliz.

 - Descabriado.

 - Logo você, mercenário? Então a coisa é séria, que foi?

 - O problema é a personalização que ele quer pro computador.

Ele mostra uma pequena brochura, claramente feita à mão, mas muito bem acabada, com vinte páginas detalhadas. Toma-a e se põe a ler...
 
 - Putz-que-paralho, meu!!! O cara quer que a gente reinvente o computador pra ele!

 - Era esse o problema... Não, ele disse que paga o que for cobrado, mas quer desse jeito aí.

Leva a brochura para seu gerente, que fica encafifado com a encomenda. De início o cliente deixa claro que foi recusado por setenta empresas, e que esta é a última tentativa antes de ele mesmo abrir uma fábrica e fazer concorrência, nem que tenha que abrir mão do lucro para tomar o mercado deles. Fazem uma reunião de emergência e o gerente apresenta à directoria, um resumo das exigências:
  •  Eu sou um homem, devo ser amo e senhor das máquinas, não lhes dando satisfações e exigindo sua pronta cooperação para o que forem solicitadas. Tudo o que eu exigir delas, naquilo que for de sua programação, deverão estar prontas a qualquer momento para execução imediata, sem protocolos nem burocracias, como é com um automóvel. Quero, comparando, mudar de faixa, converter, sair da estrada, encher o porta-malas, usar pneus diferentes, mudar a cor, trocar o motor, enfim, fazer o que for preciso para que fique ao meu gosto, e que funcione a contento não importa o que eu modifique, como é com meus automóveis.
  • Quero um botão que liga e desliga. Não uma tecla que manda um sinal para o processador gerar um conflito e fechar os programas. Quero um botão mecânico, que encoste e afaste dois pedaços de cobre, assim cortando a alimentação e fazendo o aparelho parar de funcionar, sem eu precisar pedir permissão para aquilo que me pertence e, portanto, me deve obediência cega; para que serve uma máquina, afinal, se não for para servir seu dono? Ressalto que ao religar, não importando quais tenham sido as circunstâncias do desligamento, ele deve retomar suas funções sem qualquer falha, como um automóvel.
  • Quero que ele aceite o que eu quiser colocar, como um automóvel. Que não recuse programas sob qualquer pretexto, que aceite todos e se adapte sem maiores problemas com dificuldades meramente técnicas, não de protocolo ou jurídicas. Ele deverá aceitar acessórios (como câmeras, novas impressoras, et cétera) sem precisar contractar um técnico, ou mesmo pedir permissão ao fabricante do software. Aliás, isto me lembra...
  • O software deverá ser meu, minha cópia, da qual farei o que quiser, como quiser, sem dar satisfações. Todas as conseqüências resultantes serão de minha responsabilidade, mas todos os direitos e bônus também, como é com o meu carro. Me reservo o direito de procurar assistência técnica em outras empresas, se o desenvolvedor não conseguir resolver eventuais problemas a contento, como é com um automóvel.
  • Novos plug-ins deverão ser aceitos sem absolutamente nenhum protocolo impeditivo, apenas passando pelo crivo do anti-vírus. Uma vez instalados, deverão rodar com a desenvoltura necessária e sem apresentar qualquer falha. Assim como um automóvel não tem incompatibilidade com cores e estofamentos novos, o meu computador também não deverá recusar plug-ins que passem pelo anti-vírus. Dou ao desenvolvedor o direito de contactar por e-mail e receber cópias das soluções resultantes das novas aquisições, dando-lhe vantagem comercial sobre a concorrência.
  • Concedo permissão prévia, registrada em cartório, com cópia anexa à brochura, ao compartilhamento das actualizações resultantes do uso com outros clientes, sem necessidade de pagamento pelo uso de minha propriedade virtual. Exijo, porém, o pronto comparecimento do técnico à minha presença assim que for solicitado. Não aceitarei ser transferido para um atendente de central telephônica, quero o técnico fisicamente presente e trabalhando da solução do problema que ocorrer.
  • Em última instância, no caso de um conflito de comandos, normal em frágeis sistemas digitais, que o simples fechamento do programa resolva tudo, no máximo com a necessidade de desligar a chave mecânica, como é com qualquer automóvel. E como um automóvel, deverá ser confiável e fácil de modernizar por muitos anos, sem precisar ser trocado, aceitando o que quer que equivalha a uma retífica, guariba e demais recursos que aquele permite. Não tolero máquina rebelde, tolero pessoas falhas, nunca máquinas.
  • Os comandos deverão ser intuitivos, de modo que até um completo alienado no mundo da informática consiga se virar, e aos poucos se familiarizar com o uso do computador, como acontece nos comandos de um carro. Nomes comuns, do cotidiano e não dos jargões de nerds, deverão ser dados a tudo o que estiver lá dentro, hardware ou software; Em vez de 'entrar no set-up', deverá haver 'comandos avançados', 'configurações profissionais' ou similar. Minha avó, que mal aprendeu a ler, deverá ser capaz de abrir a internet e procurar receitas, sem ajuda.
  • O prazo não será estendido, mas me coloco à inteira disposição, disponibilizando inclusive minha visita à empresa, para conversar e esclarecer qualquer dúvida. Relembro que sou bilionário, pago o que for pedido, nas condições que forem impostas, em moeda ou seja qual for o objecto solicitado.
O silêncio sepulcral toma conta da sala, sabendo eles que o prazo para aceitarem ou não a encomenda, não será prorrogado. Se entreolham...

 - Um computador confiável e simples de usar como um carro?!?

 - Lascou-se... Teríamos que abrir mão de todas as certificações, que nos dão exclusividades e garantem a amizade do desenvolvedor do sistema operacional.

 - Podemos modificar o sistema operacional, mas vamos nos encrencar com os caras.

 - Posso dar uma sugestão?

O estagiário pede a palavra. Sem saída, desesperados e loucos pela grana, concedem. Ele lembra que em momento algum o cliente disse que queria algo de marca, que eles se comprometessem e tudo mais. Apenas quer que se responsabilizem pela manutenção, correção e reparos necessários, quando necessários. Diz que os hackers da empresa podem dar conta do recado em poucos dias, mais um mês para montar o pacote de programas...

 - Tudo pode ficar no nome do cliente, a gente fica só com a parte de prestar socorro, actualizar, essas coisas... Lembram daquela réplica de Mercedes que tinha, que o cliente montava e colocava a estrela na frente por sua conta? Então!

Simples como um automóvel, embora um automóvel de luxo seja bem complexo. Ligam para o cliente, negociam, aceitam e ele pede logo um lote inteiro das máquinas. O fabricante do sistema operacional não pode reclamar, tudo está no nome do consumidor final, e ele ainda aceita todos os aplicativos de sua autoria. Só não aceita ser servo daquilo que comprou.

06/04/2012

Por que, Miriam?

Teu bom coração não se nega, Miriam, ele te trai tenro e sensível, detrás de tua postura épica e destemida. Ele sofre, pede que pares e lhe dê atenção. Mas como, não é mesmo? Tens tantos corações para cuidar e tão pouca ajuda para fazê-lo, na verdade tanta gente atrapalhando, que não sobra atenção para o teu próprio.

Sabes que há quem se disponha, Miriam! Por que então, não aceitas a ajuda? Não é só a ti que feres, feres os que a amam, presos na impotência das barreiras que tu colocaste ao auxílio. Eles sofrem, Miriam, ainda que seja o que queres evitar.

O que te impede, Miriam, de aceitar a ajuda, é o teu apego. És apegada à tua independência e tua liberdade. Ironicamente, é este apego que lhe tolhe aquilo que mais prezas, tua liberdade e independência.

Por que, Miriam? Por que? Acaso temes que uma ajuda seja porta para tentarem controlar tua vida? Isso não existe, tu mesma não deixas que a proximidade exceda a linha de teus domínios!

Ainda que tentassem, ainda que procurassem brechas em teus sofrimentos, para tentarem te dominar, não confias nos que te amam, Miriam? Eles não são páreo para o contingente que tens em teu favor. Quem, entre eles, Miriam, pode ser dar o luxo de ter um ex-protegido vindo de longe, apenas para dar um abraço e dizer o quanto o ama? Só tu, Miriam. Só tu.

Os recursos que movem em teu favor, não fazem falta, não se preocupes. Não fazem porque não são mais de quem os moveu, eles se dissiparão sendo ou não empregados, porque não servem para mais ninguém, Miriam. Os recursos que os seus movem em teu favor, são teus. Ninguém mais conseguirá usufruir do que te pertence.

Aceite a ajuda, Miriam. Aceitando-a, estarás ajudando a quem te oferece, acalentando o coração de quem se dispões a aliviar a tua cruz. Duas cruzes levadas pelos que as trazem, têm o peso de uma cruz, cada uma; duas cruzes levadas por dois que se ajudem, têm o peso de uma só. Entendes, Miriam, por que aceitar a ajuda aliviaria tanto o sofrimento dos que te oferecem, quando o teu próprio? São milhares de cruzes que querem compartilhar contigo, Miriam, milhares que teriam, assim, o peso de uma só.

Não perdes um milímetro de tua independência, Miriam, se aceitares dividir com eles as tarefas que a clausura imposta pelos perversos, te impede de honrar a contento. Não tomaria de cada um mais do que uma fração de tempo, que assim seria tão bem aplicada, que de modo algum se tornaria um ônus. Os teus olhos brilhando pela prestação de contas devidamente feita, ah, Miriam, não sabes o quanto isso vale aos que te amam!

Tua nobreza de sentimentos comove, Miriam, não menos nos comove a resignação em teu sofrimento. Comove e fere, a ti e aos que te amam. Feriria menos se te vissem livre, retomando tua vida de onde ainda podes, para consertar o que ainda pode sê-lo.

Mas pensas que entregar pequenas tarefas de tua pessoa, que não podes honrar a contento, é abdicar da independência tão cara que conquistaste ainda cedo, Miriam. De onde tiraste esta ideia? Acaso tua interferência, além das obrigações contractuais de tuas funções, tolheu a liberdade de algumd e teus pupilos? Algum deles está dependente de ti, depois da ajuda? Não, nenhum ficou menos livre, pelo contrário, mas tu não aceitas o retorno do amparo.

Isto é apego, Miriam. Tudo a que nos apegamos, nós perdemos, deverias saber disso melhor do que eu. Para resguardar tua liberdade, levando a ferro o termo de tanto, a perdeste. Ver a vida como missão, é nobre, transformá-la em um calabouço não é.

Até quando vais agüentar, Miriam? Tua saúde é delicada como tua compleição, não te permitirás muito mais tempo nesta toada. Até quando? Queres legar, aos que te amam, mais um motivo para prantos, Miriam? Não, sei que não queres, mas é o que fazes.

Aceite, Miriam, a mesma ajuda que ofertas aos que te buscam. Aceite que assim, também ajudas aos que te ofertam. Que te custa deitar tua cabeça dolorida em um de nossos ombros? Já nos deste os teus tantas vezes!

Desapegue-se de tua liberdade, Miriam, que ela volta. Tua independência não será sequer arranhada, por isso. Ainda serás dona de tua vida, de tuas decisões, de tudo aquilo que se fizeste senhora. Mas aceite, Miriam, a ajuda que te ofertam aqueles te te amam.

Ainda tens o tempo da maturidade a teu favor, não o desperdice. Nos permita ajudar como nos ajudaste, Miriam. Transformaste responsabilidade em penitência, não permitindo que entremos na cela em que se trancaste. Não aceitas nossa ajuda em cousas cotidianas, só porque, alegas, são de tuas contas. Que nos custa uma hora ou duas, em teu favor, Miriam. Por que não se desapegas do que não te pode ser subtraído?


Por que, Miriam?

01/04/2012

Vai um capuccino?

http://alimentese.net/cappuccino-pode/

Difícil encontrar um blog dedicado a um só assunto, que não seja afetado, ou cheio de termos e procedimentos inacessíveis aos leigos.

Bem, para quem gosta de café, capuccino, barismo e bichos do gênero, a amiga Sônia de Tiamat deu a dica, é o blog Café e Barista (este aqui) que começou a operar ontem e tem duas publicações, uma sobre a profissão de barista (este) e outra com uma receita fácil de capuccinho (esta) para os apreciadores.

O blog atraiu minha simpatia, primeiro porque a amiga em questão é técnica em nutrição, e tem um paladar extremamente afinado. Segundo porque o papel de fundo é igual ao meu actual, o que dá sinal de que eles se preocuparão primeiro em ter conteúdo, para depois colocarem coisinhas bonitinhas e propagandas. Terceiro, porque descobri que ele já me segue, então há uma afinidade de ideias que pode dar segurança aos meus leitores.

Eu não gosto de café, confesso, há décadas não tomo e não sinto falta, então nã há um pingo de proselitismo ou qualquer cousa que valha neste artigo. Lembro ainda, porém, que a qualidade de um bom café torrado e moído na hora, está milhas a frende de qualquer marca encontrada pronta para vender em supermercados.

Quando eu tomava, eu inventava. Desde adoçar com chocolate ou mel, em vez de açúcar, até fazer fortíssimo e sem doce nenhum, para despertar logo do sono. Um chafé com mate fortíssimo também é uma boa pedida, para quem tem o paladar apurado. Espero que dicas assim façam parte do repertório, porque são úteis aos apreciadores, especialmente em noites frias de trabalho.

Bom ressaltar também, que um café ou capuccino feito com esmero, valoriza qualquer mesa, transformando em um evento único, qualquer lanche ou encontro casual. A arte de tomar café ou chá, que só no Brasil é vista como frescura, ajuda a civilizar e controlar a própria índole, porque aproxima as pessoas, mesmo os inimigos. Um ex-inimigo é um amigo fiél como poucos. Digo porque sei de casos e eu mesmo tenho uns.

Vamos deixar algo para trás? Essa ideia de sair para comer fora. Brasileiro se emperequita todo para ir comer comida caseira em um restaurante. Refeição se faz em casa, com tranqüilidade e substância, ou em um self-service, em horário de expediente. Jantar fora é parte de um programa, o restaurante oferece não só comida (até um pit-dog oferece comida) mas também um ambiente propício à sociabilização dos indivíduos, é por isso que bons restaurantes cobram relativamente caro. Quando o brasileiro começar a pensar no lazer acima da linha da cintura, subirá com ele todo o resto, inclusive a actuação política.

O ritual de ver o cardápio, escolher, esperar e conversar, ou meditar durante a espera, é uma terapia sem igual, capaz de colocar as ideias no lugar sem precisar de tarja preta. Ensina paciência, cousa que faz muita falta em nossa sociedade ocidental. 

Então? Vai com ou sem doce?