O estagiário (coitado, sempre ele) chega ao chefe do departamento com um pedido em mãos. Dana a relatoriar a encomenda e a descrição do que o cliente pediu, enchendo o sujeito de alegria pela comissão gorda que se apresenta, mas logo nota que o rapaz não está muito feliz em seu tom de voz...
- Você não parece muito feliz.
- Descabriado.
- Logo você, mercenário? Então a coisa é séria, que foi?
- O problema é a personalização que ele quer pro computador.
Ele mostra uma pequena brochura, claramente feita à mão, mas muito bem acabada, com vinte páginas detalhadas. Toma-a e se põe a ler...
- Putz-que-paralho, meu!!! O cara quer que a gente reinvente o computador pra ele!
- Era esse o problema... Não, ele disse que paga o que for cobrado, mas quer desse jeito aí.
Leva a brochura para seu gerente, que fica encafifado com a encomenda. De início o cliente deixa claro que foi recusado por setenta empresas, e que esta é a última tentativa antes de ele mesmo abrir uma fábrica e fazer concorrência, nem que tenha que abrir mão do lucro para tomar o mercado deles. Fazem uma reunião de emergência e o gerente apresenta à directoria, um resumo das exigências:
- Eu sou um homem, devo ser amo e senhor das máquinas, não lhes dando satisfações e exigindo sua pronta cooperação para o que forem solicitadas. Tudo o que eu exigir delas, naquilo que for de sua programação, deverão estar prontas a qualquer momento para execução imediata, sem protocolos nem burocracias, como é com um automóvel. Quero, comparando, mudar de faixa, converter, sair da estrada, encher o porta-malas, usar pneus diferentes, mudar a cor, trocar o motor, enfim, fazer o que for preciso para que fique ao meu gosto, e que funcione a contento não importa o que eu modifique, como é com meus automóveis.
- Quero um botão que liga e desliga. Não uma tecla que manda um sinal para o processador gerar um conflito e fechar os programas. Quero um botão mecânico, que encoste e afaste dois pedaços de cobre, assim cortando a alimentação e fazendo o aparelho parar de funcionar, sem eu precisar pedir permissão para aquilo que me pertence e, portanto, me deve obediência cega; para que serve uma máquina, afinal, se não for para servir seu dono? Ressalto que ao religar, não importando quais tenham sido as circunstâncias do desligamento, ele deve retomar suas funções sem qualquer falha, como um automóvel.
- Quero que ele aceite o que eu quiser colocar, como um automóvel. Que não recuse programas sob qualquer pretexto, que aceite todos e se adapte sem maiores problemas com dificuldades meramente técnicas, não de protocolo ou jurídicas. Ele deverá aceitar acessórios (como câmeras, novas impressoras, et cétera) sem precisar contractar um técnico, ou mesmo pedir permissão ao fabricante do software. Aliás, isto me lembra...
- O software deverá ser meu, minha cópia, da qual farei o que quiser, como quiser, sem dar satisfações. Todas as conseqüências resultantes serão de minha responsabilidade, mas todos os direitos e bônus também, como é com o meu carro. Me reservo o direito de procurar assistência técnica em outras empresas, se o desenvolvedor não conseguir resolver eventuais problemas a contento, como é com um automóvel.
- Novos plug-ins deverão ser aceitos sem absolutamente nenhum protocolo impeditivo, apenas passando pelo crivo do anti-vírus. Uma vez instalados, deverão rodar com a desenvoltura necessária e sem apresentar qualquer falha. Assim como um automóvel não tem incompatibilidade com cores e estofamentos novos, o meu computador também não deverá recusar plug-ins que passem pelo anti-vírus. Dou ao desenvolvedor o direito de contactar por e-mail e receber cópias das soluções resultantes das novas aquisições, dando-lhe vantagem comercial sobre a concorrência.
- Concedo permissão prévia, registrada em cartório, com cópia anexa à brochura, ao compartilhamento das actualizações resultantes do uso com outros clientes, sem necessidade de pagamento pelo uso de minha propriedade virtual. Exijo, porém, o pronto comparecimento do técnico à minha presença assim que for solicitado. Não aceitarei ser transferido para um atendente de central telephônica, quero o técnico fisicamente presente e trabalhando da solução do problema que ocorrer.
- Em última instância, no caso de um conflito de comandos, normal em frágeis sistemas digitais, que o simples fechamento do programa resolva tudo, no máximo com a necessidade de desligar a chave mecânica, como é com qualquer automóvel. E como um automóvel, deverá ser confiável e fácil de modernizar por muitos anos, sem precisar ser trocado, aceitando o que quer que equivalha a uma retífica, guariba e demais recursos que aquele permite. Não tolero máquina rebelde, tolero pessoas falhas, nunca máquinas.
- Os comandos deverão ser intuitivos, de modo que até um completo alienado no mundo da informática consiga se virar, e aos poucos se familiarizar com o uso do computador, como acontece nos comandos de um carro. Nomes comuns, do cotidiano e não dos jargões de nerds, deverão ser dados a tudo o que estiver lá dentro, hardware ou software; Em vez de 'entrar no set-up', deverá haver 'comandos avançados', 'configurações profissionais' ou similar. Minha avó, que mal aprendeu a ler, deverá ser capaz de abrir a internet e procurar receitas, sem ajuda.
- O prazo não será estendido, mas me coloco à inteira disposição, disponibilizando inclusive minha visita à empresa, para conversar e esclarecer qualquer dúvida. Relembro que sou bilionário, pago o que for pedido, nas condições que forem impostas, em moeda ou seja qual for o objecto solicitado.
O silêncio sepulcral toma conta da sala, sabendo eles que o prazo para aceitarem ou não a encomenda, não será prorrogado. Se entreolham...
- Um computador confiável e simples de usar como um carro?!?
- Lascou-se... Teríamos que abrir mão de todas as certificações, que nos dão exclusividades e garantem a amizade do desenvolvedor do sistema operacional.
- Podemos modificar o sistema operacional, mas vamos nos encrencar com os caras.
- Posso dar uma sugestão?
O estagiário pede a palavra. Sem saída, desesperados e loucos pela grana, concedem. Ele lembra que em momento algum o cliente disse que queria algo de marca, que eles se comprometessem e tudo mais. Apenas quer que se responsabilizem pela manutenção, correção e reparos necessários, quando necessários. Diz que os hackers da empresa podem dar conta do recado em poucos dias, mais um mês para montar o pacote de programas...
- Tudo pode ficar no nome do cliente, a gente fica só com a parte de prestar socorro, actualizar, essas coisas... Lembram daquela réplica de Mercedes que tinha, que o cliente montava e colocava a estrela na frente por sua conta? Então!
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