O cineasta estava desiludido com seu país.
Não que não o amasse, mas quem já não teve ganas de torcer o pescoço de quem ama? O problema é que sua profissão exigia que escolhesse entre a completa alienação, e a petulância midiática escancarada. Escolheu a segunda.
Fez um filme para mostrar que seus compatriotas comiam muito e muito mal. Que gastavam rios de dinheiro para se envenenar e ainda fazer caras de comercial de fast-food. Na realidade, ele mesmo se usou como cobaia, uma cobaia meio conveniente, já que sempre fora bom de garfo, mas acredita que deixou seu recado.
Deu resultados interessantes, uma vez que as redes de lanchonete afins, passaram a oferecer opções menos adiposas, algumas até bem saudáveis, embora o tradicional pão com sabor de papelão engordurado continue figurando no cardápio. Deu tão certo, que se especializou no gênero.
Não que quisesse o fim da democracia, de jeito nenhum, morreria de fome se isso acontecesse. Seus ataques ao capitalismo, ao menos ao modelo vigente, já que não conhece outro, no entanto, estava a cada dia mais retumbante. Fazia críticas ao consumismo desregrado e descriterioso a que seu povo se entregara. Lhe doía o peito ver gente vitimada pela crise, causada por especuladores inescrupulosos, com dificuldades em se sustentar.
Estava vendo o terceiro mundo dentro de seu território nacional, isso o incomodava. Na verdade, isso o deixava muito furioso, a ponto de não dar mais bola para o cofrinho aparecendo, de vez em quando. Então ele passou a atacar o governo de todas as formas não violentas que podia. E, vivendo em uma democracia, e contando com seu prestígio, ele podia muito. Chegou a ser execrado por boa parcela dos políticos de seu país, e até por uma pequena parcela de colegas de profissão.
Alegavam que ele, que tanto combatia o capitalismo, era a própria personificação de que o sistema funciona. Meia verdade, ele sabia. Funcionava até certo ponto, e era implacável com quem falhasse, como se seres humanos não fossem susceptíveis a falhas, mesmo os mais atentos e bem preparados.
Como quem ama de verdade, ele passou a falar muito mal do governo, mas muito mal mesmo! Escancarando toda a hipocrisia histórica que seus compatriotas nem sempre se lembravam que havia. Na realidade, sua luta mesmo, de verdade, era contra a ignorância funcional deles, e atacar o sistema era uma forma eficaz de chamar suas atenções, embora nem sempre da maneira que planejava.
Sendo cineasta, viaja muito, para várias partes do mundo, mas sempre volta para seu amado e odiado país, com o qual vive entre tapas e beijos. Ele fala muito mal dele, mas sempre volta, simplesmente porque pode voltar sempre que quiser; sempre mesmo.
A blogueira estava desiludida com seu país.
Não que não o amasse, mas quem ama tem que corrigir as faltas. O problema é que sua formação exigia que ela escolhesse entre a cumplicidade cega, e a arriscada postura crítica. Escolheu a segunda, com todos os riscos afins, que com o tempo se confirmaram.
Fez um blog para mostrar que seu povo vivia muito mal. Que faziam vistas grossas para violações diárias da dignidade humana, especialmente de mulheres e homossexuais, e que o regime não tinha abolido o racismo, com apregoava.
Na realidade, ela mesma se burilava enquanto escrevia. Deu resultados interessantes, uma vez que conseguia cada vez mais seguidores, dentro e, principalmente, fora de seu país. Embora ela e seu marido fossem constantemente chamados a dar explicações, não raro presos sem explicações formais, mas acredita que está dando seu recado.
Não que quisesse ver gente vivendo em condições sub humanas, como sabia que havia em países mal administrados, apesar de ver isso em seu próprio, tinha uma cultura de solidariedade bem arraigada. Seus ataques ao regime estavam cada dia mais escancarados. Fazia críticas à miséria do povo, enquanto os "líderes" viviam cercados de luxo e pompa, como uma casta.
Como quem ama de verdade, passou a mostrar para o mundo inteiro, que a vida por lá não era essa maravilha que as cartilhas ensinavam até lá dentro, que havia sim o crime de opinião em seu país. Chegou a ser execrada pelos intelectuais mais próximos ao governo, até pelos simpatizantes de outros países, que até a hostilizaram quando finalmente pôde sair.
Alegavam que ela, que teve a educação custeada pelo Estado, agora o atacada como uma traidora de seus líderes. Meia verdade, ela sabia, o dinheiro não saía dos bolsos deles, mas do trabalho da população explorada. e dos dissidentes que eles mesmos chamavam de traidores, mas do qual não abriam mão.
Como quem ama de verdade, ela começou a falar muito mal do governo, mas muito mal mesmo! Escancarava a hipocrisia do discurso marxista, que lhe desgostava cada vez mais, porque via que a prática não estava correspondendo à teoria. Na realidade, sua luta mesmo, de verdade, era contra a ignorância funcional de seu povo, que servia de propaganda para um serviço público que já não existia, herdado do antigo regime, e que já mal dava conta do básico.
Sendo uma ditadura, só lhe foi permitido viajar para fora uma vez, após inúmeras tentativas. Lá fora, foi seguida por espiões do seu governo, que incitavam os simpatizantes a hostilizá-la e de modo algum deixá-la se expressar, embora sempre, em seus países, reivindiquem para si o contrário. Ela voltou, após a turnê financiada por amigos, sem saber se um dia voltaria a ter essa liberdade, nem o que lhe custaria, doravante.
O espião estava desiludido com seu país.
Não que não o amasse, mas quem ama não tolera desvios de caráter. O problema é que suas funções exigiam escolher entre fechar os olhos e fingir que estava tudo bem, e jogar farofa no ventilador, jogando junto um futuro brilhante que o esperava.
Repassou documentos secretos a um activista que colocou tudo na internet, para quem quisesse ver. Para mostrar que certos direitos não estavam sendo respeitados, que ninguém estava a salvo da espionagem em seu próprio país.
Deu os resultados esperados, até os ruins. O povo passou a questionar, pensar um pouco por conta própria, e descobriu o que era na verdade aquela lei de segurança aprovada pouco antes da posse do presidente; que ele não podia se negar a cumprir.
Não que quisesse derrubar o sistema, sabia que ele poderia funcionar muito bem, se fosse levado com escrúpulos e no estrito cumprimento das leis mais básicas das liberdades individuais. A coleta indiscriminada e sistemática de dados sobre os passos dos cidadãos, especialmente os estrangeiros, que não eram protegidos por suas leis, o colocaram em um dilema ético, moral e até religioso.
Estava vendo a guerra fria se voltando contra seu próprio povo, dentro de seu território, e avançando por todos os países do mundo; e sabia por experiência que todos eles juntos, não seriam páreo para o seu, por isso decidiu agir. Foi indiciado, chegou a ser preso, mas soube de uma consoladora solidariedade de uma parcela significativa de seu povo.
Fugiu, na iminência de receber pena perpétua, se refugiando em países que sabia que matariam sumariamente quem fizesse o mesmo que ele. Também sabia que não poderia fugir para sempre, na verdade estava muito assustado para agir com a racionalidade que lhe foi ensinada, pois conhecia o poderio do serviço secreto que o treinou.
Não queria, no entanto, dar aos ex-chefes o gosto de lhe cuspir na fronte e chamá-lo de traidor, que em seu íntimo, sabia que se tornara. Não fez por mal, fez pelo bem da humanidade, e especialmente de seu próprio povo. Hoje se pergunta se fez certo. Não que se arrependa, absolutamente, a questão é se realmente fez a coisa certa da maneira certa.
A prisão perpétua, ao contrário da pena capital, é reversível a qualquer tempo, mas é uma possibilidade com a qual não pode contar. Morrer sem a liberdade pela qual lutara a vida inteira, lhe amedrontava mais do que a iminência de ser abatido por um agente secreto de seu país.
Ele sabe que não é por ter falado mal, por ter se rebelado contra o sistema ou qualquer coisa assim. Ele sabe que cometeu um crime e é por isso que está sendo caçado, não perseguido, mas caçado. Crime que em países que lhe oferecem asilo, poderiam tê-lo mandado para o paredão... Talvez o que queira, seja não ter o desgosto de ser morto por um compatriota.
Ele sabe que o que fez, é crime em qualquer parte do mundo, mas não sabia de outra forma para fazê-lo.
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