10/06/2011

Realidade e compreensão

Sonhar faz bem, viver no sonho é doença.

Amigos de vez em quando reclamam bastante de algumas características minhas. Tenho uma (em parte justa) fama de pessimista, por causa do modo cru como encaro a realidade. Na verdade às vezes até irrito, fico parecendo escorregadio... eu sou meio escorregadio, desculpem pois não é de propósito, faz parte da minha natureza.

A velha pergunta "um como pela metade está meio cheio ou meio vazio?" para mim não faz sentido, ao meu ver está pela metade e ponto final, não discuto impressões pessoais, ideologias ou especulações de que o copo "não conseguiu sair daquele nível" ou "só falta metade para encher". Um recipiente com capacidade para um litro de água, que estiver pela metade, estará suportando meio quilograma e ponto final. Divagações sobre cheio ou vazio não vão alterar a resistência do recipiente, sua cor ou mesmo as leis da física. É mais ou menos assim que eu raciocínio.

Parece simples? Para mim é, mas para quem conversa comigo complica, porque a maioria das pessoas (senão quase todas) está acostumada a fazer um juízo e mantê-lo mesmo depois que uma investigação frustra suas expectativas. Muitas vezes gente leiga disseminando suas opiniões a respeito de assuntos especializados, como se fossem de origem técnica.

A realidade como a enxergo é dura, sem amenidades, mas a prefiro assim. Não, não sou catastrofista, detesto filmes de terror e de pancadaria, não partilho de idéias de revolução armada e não me visto como pit-boy. Digo que a realidade que vejo é dura, porque ela não acompanha o conforto de especular sobre culpados, nem o de buscar um álibi para me livrar da minha parcela de responsabilidade. Não culpo o sujeito em um Mercedes-Benz por eu ter que usar um dos piores transportes públicos do país, também não posso dizer que ele fez por merecer o carro porque não o conheço. Não sou um coitadinho vítima da sociedade, mas sei que não tenho um por cento do que faço por merecer como a maioria dos compatriotas.

Não culpo os nordestinos pelo aumento da criminalidade em Goiânia, isto vem de um processo muito mais longo e emaranhado do que os acusadores tentam fazer parecer. Desde os anos oitenta eu vejo gerações nascendo, crescendo e morrendo nas ruas, sem jamais terem tido um teto. Com o tempo, muitas dessas pessoas não conseguiram mais se adaptar a um lar fixo, pois perderam completamente os vínculos sociais, a não ser os de suas turmas de rua. Se isto não lhes  parece ser tanto um problema, digo que é pelo facto de desde então a criminalidade ter crescido muito, bem como diminuído os limites na educação das crianças que nascem em lares constituídos. A população de rua acaba cercada de um lado por marginais que não têm vínculo algum com nada, de outro por jovens violentos que não tiveram qualquer limite em sua educação, nem em seus cartões de crédito. Daí a sobreviventes jurarem vingança sem saber direito a quem, se juntarem a grupos criminosos, et cetera. Os jovens que estão nas ruas hoje, em grande parte, saíram de casa para poderem usar drogas sem serem incomodados pela família. Hoje não há mais inocentes nas ruas de Goiânia, está nelas quem quer permanecer nelas. É comum eu ver garotões muito bem arrumados pedindo esmolas nos cruzamentos.

Se eu tivesse procurado um bode expiatório, como certos idiotas fazem, não teria percebido essas nuances ao longo dessas três décadas de observação. A política tem culpa sim, e como tem! Mas grande parte das mazelas que acometem Goiânia começou aqui dentro, coma aquiescência da população, nos lares, desde bebês até os adoelscentes que saíram do controle. A maior responsabilidade, pelas minhas conclusões, é da própria população goianiense, que não soube dar atenção e limites aos filhos, não soube eleger gente nova quando ela apareceu e ainda estava descontaminada, não soube aposentar as piores múmias do Brasil quando já davam sinais de caduquice e abandonou hábitos salutares que tinha, deixando bibliotecas e escolas serem abandonadas pelo poder público.
Nordestinos continuam chegando, assim como gaúchos, cariocas, matogrossences, americanos, coreanos, japoneses, argentinos e toda uma patota que tem renovado a cara do goianiense. A esperança mínima que tenho de ver mudanças está quase toda neles.

Um dos meios mais comuns de se tentar fugir da realidade, na verdade maquiá-la temporariamente, é buscar prazeres fáceis. Quaisquer prazeres. Sexo casual, drogas (inclui álcool e cigarros), jogos, programação televisiva ruim, som no último volume, diversões perigosas e por aí vai. É comum um vir acompanhado de dois ou mais. Anestesiar momentaneamente a percepção da realidade é o que ajuda muita gente a se manter viva, muitos trabalham arduamente apenas para sustentar esses prazeres. O problema vem quando a pessoa passa a viver em função dessa anestesia, é sinal que de não suporta a realidade, ou não está disposta a suportá-la ainda que consiga. O segundo caso é típico de filhos mimados, o que infelizmente não se restringe às famílias abastadas. Em ambos os casos o indivíduo acaba se viciando.

Justo por saber da gravidade do mundo que me contém, prefiro manter a vigília. É escolha minha. Com o tempo ficou mais fácil abandonar certos prazeres, como café e refrigerante. No começo sentia falta, mas hoje o cheiro de café me enjoa e o gosto do refrigerante é grosseiro demais para o meu paladar. Da mesma forma eu não sou contaminado pelo efeito manada, eu sou muito eu para me permitir ser diluído em um grupo. Posso fazer parte dele, mas sempre serei uma peça, nunca uma área de um monobloco. Há  vinte e poucos anos eu tive um estalo, em vez de sair com um pão pela casa, comendo e sujando o chão pelo caminho, sentei-me à mesa, coloquei no prato com mais alguns acepipes, pouca cousa, e comecei a comer com a devida calma. Eu me vi sendo tiozão e naturalmente me deixei moldar pelos novos hábitos. Não me senti melhor ou pior, me senti eu mesmo daquele momento em diante. Tenho problemas de sociabilidade com isso, mas é porque o meu caso é agudo, acabo não compartilhando do modo como as pessoas vêem com circunflexo o que me mostram. Às vezes constrange, mas eu consigo compensar de algum modo. Não sei como, ainda, mas acabo conseguindo.

Mas reconheço que a falta de um filtro torna as cousas mais difíceis para mim. Esse filtro, que permite à pessoa selecionar (inconscientemente) os aspectos da realidade que consegue digerir, em mim é quase inexistente. Mesmo o que não chega até aqui fica claramente à minha vista. É como se uma penca de bichos invadisse o meu quarto e só os elefantes ficassem de fora, com as trombas bisbilhotando a minha mesa. A realidade bate na minha cara o tempo todo.
Para quem tem o filtro de realidade (chamemos assim) são, só poucos tipos de bichos entram, aqueles que o indivíduo consegue controlar, seja colocando rédeas, seja se escondendo de medo, seja pedindo ajuda ao vizinho. As outras espécies não conseguem passar, seja por serem grandes ou fracas demais para atravessar a trama. Assim é uma "pessoa normal"... De perto as diferenças aparecem.

Ligar o som alto é um meio de as pessoas se desligarem da realidade, seja por entorpecimento dos sentidos, seja se colocando como parte da sociedade que faz a cousa certa, porque isto também distorce o modo como elas se vêem. Um grupo acaba se enxergando como integrante de um grupo que consertaria tudo se tivesse poder para isso, o outro não dá a mínima e prefere nem se enxergar para não chorar de tristeza, outro ainda usa factos históricos para acreditar que nada vai adiantar e nada jamais mudará, isentando-se de qualquer responsabilidade pelos rumos da coletividade. Se o som ficasse dentro dos limites de suas residências, seria tão bom!

Eu uso a música para me acalmar, estimular, concentrar, às vezes para ter minha introspecção sagrada de cada dia. Não quero perder contacto comigo nem com o mundo, por isso o volume me permite ouvir o que se passa lá fora. Infelizmente o barulho de fora nem sempre me permite ouvir o que toca aqui dentro. Eu sei que me faria bem fugir da realidade, de vez em quando, mas já estou plantado nela. Tudo o que começa como entretenimento, termina como trabalho, provocando reflexões e outros bichos do gênero. Questão de adaptação. Eu estou adaptado ao meu modo de ver o mundo e nenhum outro me serve mais.

Ver pessoas capazes se refugiando em distrações e vícios me deprime. Aquilo é uma parcela da sociedade que poderá fazer falta, porque cedo ou tarde a negação da realidade vai fazer essas peças falharem. Minha visão das pessoas não é monopolar, eu vejo o indivíduo em sua função social e sei da importância de cada um no funcionamento da sociedade. Uma pessoa que tem falência antes da hora gera uma lacuna, porque seu substituto ainda não está pronto e seu antecessor, certamente não está mais em condições de reassumir o papel. Ultimamente minha depressão tem feito hora extra, porque tornou-se raro encontrar pessoas que não tentam fazer de suas vidas uma sensação de prazer. A vida não é feita de prazeres, tem prazeres, mas eles são apenas parte dela. As obrigações mesmo de quem acredita viver isolado, incluem aparar as arestas que encontram no decorrer dos dias, é assim que viabilizam sua subsistência. Mesmo quem tem tudo de mãos beijadas, precisa se ajustar ao meio para ser bem sucedido em viver. Mas as pessoas estão querendo se poupar de todo e qualquer sofrimento, mesmo os mais elementais e insignificantes. Jogar uma cadeira na garota que recusou a cantada já tornou-se normal.

Costumo comparar os prazeres com cavalos. Quando estão sob arreios, a carruagem não tem obstáculos intransponíveis. Quando estão no coche, o cocheiro é que acaba sob arreios. Nossos cocheiros nem percebem que estão sendo açoitados pelos próprios cavalos. Quando percebem, não raro atribuem os açoites à traição de alguém, não admitindo que se deixaram dominar pelo animal.

Assim, enxergar a realidade como a enxergo não se torna apenas um jeito de ser, torna-se um alarme para não ser pego de surpresa, quando o barco começa a fazer água. Compreendo meu papel  e procuro desempenha-lo a contento.

2 comentários:

Vy disse...

Entendo perfeitamente o que pensa, e assim como você não tento camuflar o que me acontece em volta, tentando anestesiar algo que depois da anestesia estará ali, talvez ainda mais forte, mas te digo que a úncia coisa que você pode fazer é tentar mudar você, e nada do que está em volta. É o que estou tentando fazer com coragem e determinação. E adivinha quem está me ajudando? Pois é... Percebo que se a gente mudar por dentro, acaba mudando o que está por fora, ou pelo menos o Universo te leva pra longe disso. Eu PRECISO acreditar nisso, porque não vou mascarar que o "maldito som do vizinho" não me incomoda. Mas vou abrir as fronteiras da minha mente e encontrar no meio dos escombros uma saída. Vou encontrar e no final vou te agradecer como sempre pelo tanto que tem me ajudado. Não creio mais que o ser humano possa ser melhor, acho sim que ele pode piorar a cada dia, mas eu não me encaixo nesse meio, e nem você. Mas aquela luz que te ilumina a escrever está aí, se você fosse tão insensível, não poderia escrever com tanta sensibilidade, pelo menos pra mim!
Boa semana meu querido! Vy

Nanael Soubaim disse...

Fadinha, tratarei contigo (quando tiver a internet operacional de casa) por e-mail, que o negócio é meio pessoal para eu dividir com leitores estranhos.