26/10/2012

A Lebre e a Águia

Fonte: http://predadores.wordpress.com/
 A lebre estava muito desconfiada da águia. A ave sabia de tudo o que se passava na floresta, tudo mesmo, mas pouco se sabia do que ela estava fazendo. Um dia, decidida a colocar um controle nessa liberdade, para mostrar que estava sendo vigiada, a lebre decidiu seguir os passos da águia. Não poderia fazê-lo o tempo inteiro, afinal tinha seus afazeres, mas tinha amigos e poderia juntar o que conseguisse, com o queles tinham.

O primeiro dia apresentou um problema sério, o sol. A lebre quase ficou cega, olhando para cima. Precisou se acostumar a só olhar quando a luz estivesse favorável. O problema é que a águia, rápida como era, desaparecia ao menor piscar de olhos, mas era o que tinha.

No segundo dia, já conseguia seguir sem ser ofuscada e sem tropeçar. Tomava nota de tudo o que a água parecia fazer, o que no começo não fazia muito sentido, mas estava ali para aprender sobre o que considerava uma ameaça. O seu temor, é que a águia sabia muito a respeito de seus hábitos e dos de seu grupo, não sabia por que ainda não os atacara, mas não poderia esperar pela sorte.

O facto de aprender, não significava que a lebre se via livre de enrascadas. Uma vez, tentando acompanhar um razante da águia, acabou caindo em um ribeirão, que tinha recebido muita água da chuva e estava bravio. Teria se afogado, não fosse a presteza da própria águia que, noutro razante, a alcançou, mas tendo o cuidado de não perfurar as orelhas com suas garras afiadas. Foi constrangedor, mas precisou agradecer e ouvir "Disponha sempre, mas tenha cuidado, tem chovido muito nas montanhas, os rios ficarão bravios por algum tempo ainda".

O constrangimento e a gratidão não lhe demoveram. Mesmo grata, ainda considerava a águia uma ameaça potencial, e precisava vigiá-la. Aprendeu com o erro e com o aviso da águia, passando a ter uma atenção pouco comum, para quem não é predador natural de ninguém.

Se há algo de que a obstinação teve utilidade, foi ter-lhe tornado uma lebre extremamente astuta e engenhosa. Lebres não sobem em árvores, mas ela aprendeu a subir e descer com segurança, para vigiar seu alvo. Conheceu predadores dos quais nunca tinha ouvido falar, e alertou às outras lebres sobre eles. Mas a águia, ah, a água ainda tinha uma incógnita que a tornava ameaçadora, aos seus olhos.

Ainda ficava confusa, quando a água fazia manobras complicadas, não via motivação nem como isso ajudaria a atacar a presa. Às vezes, por uns segundos, ela parava no ar e dava meia-volta, para depois voltar com tudo e garantir sua refeição. Já a viu carregar um cabrito inteiro para o ninho, com a espinha gelando, imaginando-se no lugar do animal.

Lhe veio uma dúvida cruel. Por que a águia ainda não tinha atacado o seu grupo? E por que se arriscou, salvando-a da correnteza? Havia o risco de ambas se afogarem. Isso só aumentava a desconfiança.

Certo dia, julgando-se expert no comportamento da águia, a lebre foi confiante para o ponto costumeiro de partida. Estranhou não ver a, se assim poderia chamar, amiga no poleiro de sempre. Subiu na árvore, observou, desceu e deu de cara com quem? Com a águia...

- Procurando por mim, lebre?

A imponência, a majestade, toda a beleza e todo o poderio belicoso daquela ave, tão temida, estavam logo à sua frente, sem haver chances de escapar. Engoliu a gagueira, respirou mais fundo do que uma lebre normal conseguiria e respondeu...

- Sim, águia, eu estava observando você.

- Por que?

Deixou, a águia, que a lebre desembuchasse, para se acalmar e poderem conversar como adultas. Mas a pobrezinha estava nitidamente nervosa, acabou soltando seus temores, sua confusão em lidar com desconfiança e gratidão ao mesmo tempo, enfim, arrancou (sem trocadilhos) pena da águia...

- Lebre, lebre, lebre! Oh, lebre! Eu já conversei com as outras, para saber o porquê de você viver seguindo minha sombra!

- Sua sombra?

- Tudo o que você fez, lebre, tolinha, foi tentar seguir minha sombra! Lá do alto, também confusa com isso, eu observada todos os seus passos. Você estava vigiando uma sombra, que sumia a cada vez que as nuvens encobriam o sol! Não era a mim que estava seguindo.

A lebre não sabia o que fazer, estava muito envergonhada, não só por ter sido pêga sem ter notado, mas também pela ingenuidade em acreditar que aquela sombra e a águia, eram a mesma pessoa. Por detrás dos pêlos, viam-se suas bochechas fiarem rubras de vergonha...

- Eu não vou mentir, eu sou uma caçadora. Eu me alimento de animais menores, e às vezes até maiores do que eu. Me alimento inclusive de lebres. Mas não de vocês. Vocês são meus amigos, lebre. Se eu quisesse te atacar, teria tido um mês inteiro vendo você dar bandeira, se expondo a outros predadores, que eu precisei afugentar mais de uma vez.

Agora, ainda mais envergonhada, a lebre compreende aquelas manobras estranhas. A águia a estava protegendo. Estava tão ocupada que não vira os lobos, as raposas, as cobras, enfim, uma série de predadores dos quais foi poupada pela águia...

- Se eu quisesse comer vocês, eu já o teria feito e ninguém poderia me deter. Mas vocês são meus amigos. Eu desculpo, desta vez, a sua desconfiança. Também teria, no seu lugar. Mas lembre-se disso, lebre, eu não confundo amigos com refeição. Aquele beija-flor que mora no galho, logo acima da sua toca, eu já teria bicado, mas ele é meu amigo.

- D... Desculpe...

Começa a chorar. A águia a acolhe, certa de que o episódio se encerra ali. A lebre aprendeu que é absolutamente natural a alguém indefeso, não representar ameaça, não significa que seja amistoso. Um predador poderoso que faça o mesmo, com todas as chances apresentadas de lhe ser nocivo, dá uma prova rara de amizade, porque os outros não perderiam a primeira chance.

2 comentários:

iracema disse...

Bom dia Nanael

Belíssima história!!!
Nem sei expressar o que senti em termos de Sabedoria!!!
Pena que os humanos não saibam o que significa ser "um Amigo" !!!
Abraços

Nanael Soubaim disse...

8-)