12/11/2020

Seu território, nossas leis!

 

Assevero que o bebê panda gostou

            Quatro garotas, cidadãs de um país muito sério e com uma cultura muito rigorosa no tocante ao comportamento em público, afagam o bebê panda de um zoológico local, com severas regras sanitárias, cercadas por profissionais competentes de uma equipe que sabe o que faz e jamais permitiria ocorrências arriscadas próximas a animais raros, ainda mais um filhote. Desde 2016 que Lisa, Jennie, Rosé e Kin Ji-Soo são manchete, primeiro porque o grupo da YG Entertainment jogou na lata de lixo o conceito de que cantoras de K-pop precisam entrar na faca até não se parecerem em nada consigo mesmas, segundo porque são quatro anos sem trocas de integrantes e terceiro, porque não têm papas nas línguas; ou seja, subverteram praticamente tudo o que se considerava como padrão para K-pop até então. Elas ralam duro, ensaiam coreografias complexas, às vezes precisam treinar contando piadas em Fa e rindo repentinamente em Do, mantêm a forma física e costumam usar figurinos extravagantes nos shows em que esbanjam suas belezas joviais, há muita pressão e o treinamento prévio para sua estreia foi tão duro quanto longo; é o que as identifica com os outros astros do gênero. A diferença é que elas caíram em boas mãos, num grupo que lhes permite ser mais autênticas e expressar o que pensam, claro que comedindo as palavras, mas podem o que a maioria dos colegas não pode. Os Blinks, seus fãs, sabem valorizar essa rara autenticidade no mundo artístico.

 

            Mas teve gente se irritando com isso. Os mesmos ambientalistas chineses e estrangeiros que fizeram-se de cegos, quando as ilhas militares artificiais dizimaram sítios marinhos, passaram a gritar contra os afagos apontando até para o facto de elas terem cães para acusá-las de terem posto filhote e mãe panda em risco. Nem vou falar novamente sobre a hidrelétrica no rio Amarelo! Nem do uso intensivo de carvão! Nem da pesca predatória em águas territoriais alheias com escolta militar! Para esses ambientalistas melancias nada disso importa. Importa fazer acusações sem investigação prévia de todo o contexto dos acontecimentos, baseando-se apenas em “algo errado nisso poderia ter acontecido”, “na minha opinião não pode” ou “ofenderam o símbolo sagrado da nação”; embora façam troça explícita ao que é sagrado para os outros; a religião lá é o partido. Não consultaram o zoológico, os veterinários, o próprio quarteto a respeito dos cuidados tomados previamente, apenas tomaram as dores de um regime que se considera proprietário de todos os pandas do mundo, inclusive dos que nascem fora de seu território.

 


            Aliás, se considera dono do próprio mundo, dando palpites nas políticas internas alheias e punindo países que contrariem seus interesses… quer dizer, pune os países que não têm poderio bélico e econômico para reagir. Se não dependesse tanto dos alimentos brasileiros para manter a população sob controle, já teríamos sido alvos de sua ira. Sua presença na África já é consistente, muitos países lhe devem os tubos em empréstimos que não conseguirão pagar tão cedo; talvez nunca, porque o PCC pode manipular juros e multas de acordo com seus desejos, assim como faz com o câmbio, ou vocês pensam que a economia local se desenvolveu só na base do “derramar mais concreto do que bombas”, como alardeia a turma do “vai estudar história”? Dinheiro pode ser reposto, o que eles querem é o que não pode ser reposto, como a própria soberania política dos Estados que cometeram o erro de lhes pedir ajuda. Porque não basta fazer os próprios cidadãos terem pavor de dizer em público que se lembram do massacre da praça da paz celestial, usa de seu gigantesco mercado interno para pressionar empresas a baixarem suas cabeças aos caprichos ditatoriais que tanto arrancam suspiros de nossa pseudoelitezinha pseudointelectual.

 

            Aos cidadãos reféns do regime, dizem que o ocidente tem inveja de seu progresso. Se acreditam ou não, pouco importa, mas a quem perguntar é compulsório dizer que acreditam. O agravante é exigirem isso de estrangeiros em seus próprios países, não sendo raro encontrar pessoas que já até moraram lá e foram banidas, simplesmente por terem dito em público algo que pudesse ser interpretado por alguém como uma crítica ao regime (como esta moça). E sim, estrangeiros lá dentro são mais rigidamente vigiados do que o próprio cidadão, a ponto de precisar comprar um celular local porque o que eles não podem espionar simplesmente não funcionam, não têm nenhum suporte; o contrário do que eles fazem em países alheios. Antes um esclarecimento, há uma diferença imensa entre dizer-se insatisfeito com os resultados de uma decisão política, e dizer que precisam de um novo líder; isto se dizia no Brasil entre 1964 e 1984 sem render qualquer sanção, não por isso. Claro que essa completa ausência de oposição ajuda no desenvolvimento material econômico, já que ninguém vai se atrever a perder prazos ou travar uma votação para afrontar o líder... como fazem aqui.

 

            Toda a invejável infraestrutura de internet, mais censurada do que livro ilustrado de pornô pesado em convento da idade média, não é para facilitar a vida do cidadão, isso acontece como efeito colateral até para os mendigos, é para vigiar cada passo, cada atitude, cada comentário, cada imagem compartilhada, cada link postado, cada piada que possa ofender a cultura milenar dos povos ribeirinhos do partido. Foi assim que baniram o ursinho Pooh e banem qualquer vaga menção ao massacre da praça da paz celestial. Como eu já disse, isso é vigiado até em cidadãos de outros países em seus próprios territórios, para tanto se valem de redes sociais e motores de busca que são proibidos na China, até o Youtube, que teve uma repentina explosão de chineses e simpatizantes ocidentais do regime... E com essa hipocrisia escancarada, que passa pelas vistas grossas dos discursadores libertários, formadores de opinião de outras nações são policiescamente vigiados e seus patrocinadores pressionados e chantageados a qualquer mínimo descontentamento do partido único e compulsório, como está acontecendo com Blackpink e já aconteceu com outros artistas, a quem os artistas lacradores não prestaram sequer votos de boa sorte. E ai de quem disser que há mendigos por lá, porque será banido do maior mercado consumidor do mundo.

 

            Aliás, o grupo BST também tem sido alvo de represálias pesadas por terem feito um comentário alusivo à guerra das Coreias, (aqui e aqui) mesmo que superficial e sem citar a participação chinesa naquele ataque pelas costas. Essa parte da história que dificilmente será contada em sala de aula não é nova, mas só têm vindo à tona após o advento da internet, por pessoas que foram banidas e hoje são perseguidas pelo regime, mesmo em países distantes de lá… e a Coreia não fica longe deles… na verdade um pulo geográfico já atravessa a fronteira de terra firme para terra firme. Em suma, os rapazes do BST são obrigados a negar a própria história recende de seu país para não ofender os censores do mundo… eles e qualquer outro artista que não queira ser sabotado, punido, chantageado, banido e perseguido pela gangue comunista e seus minions espalhados pelo mundo. Foi assim que o celular licenciado por eles sumiu do mercado mal tendo sido lançado.

 

Vídeos deles e de outros coreanos

            Não pensem que eles respeitam fronteiras. Se a Índia não fosse tão capaz de se defender, já teria sido anexada, que o diga o Tibete, cujo destino não foi e não é lamentado por aqueles que gritam “Catalunha livre”, sequer é lembrado como um território que já foi soberano e cuja população original foi massacrada e trocada por chineses, restando hoje uma minoria acanhada de tibetanos descendentes dos originais. Quando a Inglaterra devolveu Hong Kong, o que enviaram? Diplomatas? Cidadãos com presentes? Não! Mandaram tanques de guerra! Para deixar claro que todas as promessas feitas ao Reino Unido seriam sumariamente desprezadas. De então em diante alteraram a constituição até hoje nada restar da cidade livre e legre da era britânica. Falar de Taiwan, excluído da ONU por pressão daquela ditadura idolatrada por idiotas acadêmicos, eu acredito ser desnecessário. Se há algo aproveitável que este governo fez, foi nos afastar desses regimes. A alternativa para um mercado gigantesco é a Índia, a maior democracia do mundo. E não, seu preconceituoso, os indianos não fabricam só incensos, filmes toscos e saris, eles têm uma indústria de ponta (https://exame.com/tecnologia/fabricante-indiana-de-smartphones-quer-vender-200-milhoes-de-unidades/) só esperando pela aceitação ocidental. Levaria anos, porque muita coisa precisa ser feita por lá para que o nível de desenvolvimento geral se equipare ao chinês, mas seria um seguro contra novas chantagens, dumpings escancarados e manipulações cambiais. A mentalidade do indiano médio, derivada em parte do sistema de castas e seus costumes, é um dificultador, mas não é intransponível. Sejamos honestos, um país que comprou Cherry QQ não tem o direito de falar mal do Tata Nano!

 

            As empresas americanas já começaram a sondar e demonstrar interesse pelo mercado e pela produção local na Índia, muito tardiamente, mas ao menos estão saindo da letargia. Talvez com as indústrias o prórpio e voraz turista americano comece a ver a Índia com outros olhos. Por essas e outras eu evito a todo custo comprar o que tiver sido feito na China. É extremamente difícil, hoje em dia, mas não é impossível, principalmente porque podemos viver sem quase tudo o que existe no mercado. Sabem aqueles aparelhinhos de MP3 que eram febre no começo do século e todo mundo tinha? Eu não sou todo mundo, então não tive. Isso é como o tráfico de drogas, só que com a quadrilha no poder de um país; quem compra, financia, não há meios-termos aqui. Cansei de procurar um aparelhinho feito na Coreia ou no Japão, na época, mas não encontrei e escolhi não ter. Não, não me interessa abandonar os cidadãos chineses e devolver toda aquela gente à miséria em que Mao a jogou, assim como de jeito nenhum eu vinculo o chinês médio ao partido, e isso não vai acontecer por causa da migração de investimentos.

 

            E, já que nenhuma entidade defensora de oprimidos e perseguidos por censuras de manifesta, começarei a expor minha simpatia pelos garotos coreanos. Eles já sofrem pressões e cobranças mais do que suficientes lidando com a parte honesta de seu trabalho, não precisam da sujeira mafiosa de uma ditadura mimizenta, precisariam sim da manifestação clara e explícita de uma entidade de “classe”, bem como seus préstimos jurídicos e estruturais, mas como isso não acontece, pessoas como eu precisam colocar as acaras a tapa… de novo.

Blackpink: Letras, Pinterest e Youtube.

Mais a respeito: aqui, aqui, aqui e aqui.

03/11/2020

Aqui jaz teu sonho

 

Pity the Sorrows of a Poor Old Man - 1822 - Théodore Gericault - French (MET Museum)

            Aqui jaz o teu sonho não cultivado, legado ao desdém do adulto amargo que se tornaste. O mesmo sonho que em tenra infância ainda se rascunhava em pueris balbucios num mundo que tudo parecia prometer, diante de pessoas que tudo lhe pareciam permitir, ainda que mostrando os limites salutares de tua segurança, enxugando as lágrimas de um pranto repentino por algum susto que só teus olhos e ouvidos sabiam mensurar. Nos mesmos braços que limitavam teu avanço, para não cairdes no fosso profundo, encontravas o bálsamo da segurança oscilante a embalar suavemente teu sono, em cujas brumas os devaneios tomavam formas, cores e toda a miríade de possibilidades com que poderias entreter-se.

            Ainda era cedo, havia tempo de sobra. Era momento para te preparares em aprendizado básico e crescimento sem os perigos ardis que a vida reserva aos que alçam vôo. Ainda havia tempo, os riscos eram ensinados em simulações simples e seguras nas brincadeiras rasas que te ensinariam a enfrentar as adversidades sem temê-las. Quando os temores reais lhes foram apresentados a distâncias e em doses salutares, tão somente para que mesmo em botão, a flor de teus sonhos fosse defendida das pragas e ervas daninhas tão traiçoeiras.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, posto por terra pelas urgências bravateiras. O mesmo sonho que na plena flor da juventude lhe emprestava o perfume balsâmico para curar tuas feridas e ajudar-te a vencer teus medos, quando já sabias que o mundo não tinha obrigação de ser bom, mas que tampouco deveria ser temido como se fosse um mal invencível. Quando as forças lhe pareciam trasbordar e sobrepujar quaisquer decepções pérfidas, dessas que se lhe apresentam com semblantes amigáveis e discursos aduladores em firmes vozes sedosas. Ainda tinhas o amparo de quem pudesse socorrer-te de apuros e, embora certa a reprimenda necessária, encaminhava-te ao curso seguro do caminho reto; que não precisava ser seguido em absoluta retidão, tão somente não se afastar a ponto de perdê-lo de vista já lhe garantiria os louros de teus esforços, pois assim voltarias rapidamente assim que os riscos suplantassem os ganhos... e foram tantas vezes!

            Ainda era cedo, o tempo intercedia em teu favor. Era momento de experimentares os sabores do mundo e decidires que temperos usarias em teu caminho, aqueles que dariam aos teus pares a tua identidade e te tornariam inconfundível, facilitando te reconhecerem e te ampararem na busca de tuas realizações, sob o auxílio prestigioso de mestres e auxiliares, papéis que assumirias vez ou outro, e em definitivo quando os resultados de teus labores deitassem em tuas mãos então experientes.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, em preta mortalha coberto pela vida que deixaste de viver, não importam os motivos. O mesmo sonho que na vida adulta lhe serviriam de muleta nas mais duras adversidades, tanto quanto de cetro no regozijo de tuas vitórias cotidianas, resplandecendo a majestade de quem teria ousado na medida e no momento certos, posto que o cabedal e a experiência amealhados te fariam reconhecer de pronto as armadilhas e os inimigos, hábeis em vestir-se de oásis e benfeitores. Quando as forças ainda seriam abundantes e a mente lúcida dos sábios serviria de habitat aos teus pensamentos, guarnecidos de raciocínio e conhecimentos abundantes, o que ainda te permitiriam sonoras gargalhadas a cada vitória; e seriam elas seriadas em tua longa e venturosa jornada.

            Já seria a tua hora, o tempo então generoso lhe mostraria a longa estrada a percorrer com as pernas fortes dos sonhos em plena realização, de uma vida que nunca precisaria ser perfeita, mas tão somente ser a tua vida, a que só a ti serviria e a em que somente tu serviria, construída e ababada sob medida para os teus pesares serem sempre ciscos diante das vigas de tuas realizações, do amparo que agora seria de tua alçada, do aprendizado que agora sairia de tuas palavras e do vasto jardim de sonhos que agora a ti caberia cuidar para a posteridade; assim como teriam feito por ti.


            Aqui jaz teu sonho não cultivado, em jazigo de pedras cruas que restaram de tua vida desventurosa. O mesmo sonho que te for cobrado por não viveres a vida que deverias ter construído, mas cujos tijolos desviaram-se em amparo de quem jamais construiu senão os próprios mimos, desdenhando assim que se levantava o doador desafortunado do que agora abandona e deixa desmoronar. Quando as forças decaem sem reposição hábil e tua visão se turva diante do horizonte escuro que se aproxima, forçando-te a vencer o íngreme aclive sob as dores que não lhe foram curadas, pela falta dos recursos que nunca te foram cedidos em troca das chances que a outrem concederam. A vida apertada e cnidária que sobrou não permitia iniciativas senão em caminhos tortos, a horizontes perpendiculares ao que teus brios ainda te impulsionam. Sim, talvez seja tudo o que te resta, e te priva da queda de um desenlace precoce.

            Já passou a tua hora, o tempo já cobra o tributo dos ganhos não conseguidos e a estrada, embora se encurte a cada passo, é cada vez mais íngreme, dilapidando as poucas energias que ainda restam em teu corpo debilitado, que ainda assim precisa vez ou outra amparar os que se corromperam e nem mais mantêm-se de pé sem esporádicos auxílios. Vai, que é tua sina arcar com proventos dos dividendos não ganhos, dos lucros subtraídos, de toda a sua miserável existência em uma vida que simplesmente ainda não te cabe dentro. Se é tua culpa ou não, é tão oneroso quanto irrelevante ater-se a tão dolorosas elucubrações, apenas arque com o que te cabe, pois não cabes em mais nada do que te cerca e ainda tens chão pela frente. Tua pena, lamento, é esperar sob duras labutas pelo óbito, já morto em uma vida que nunca deveria ser tua.