23/05/2019

Marchetaria, Hakone e Nerikomi


Imagem de Lurury Wood Flooring

    Antes de responder gritando “É A MÃE”, adianto que não são xingamentos. Marchetaria, hakone e nerikomi são artes ancestrais da madeira e da cerâmica, sendo as últimas tipicamente japonesas. E quando digo “ancestrais”, me refiro a tradições milenares, que a maioria das pessoas sequer imagina que existam.



    Mas como toda tradição de artes manuais, que pareciam em processo de extinção no último terço do século XX, essas três foram retomadas com paixão e vigor desde a virada do século. Assim como já há gente vivendo da forja tradicional, máquinas a vapor, aparelhos valvulados, carpintaria e marcenaria artísticas, alfaiataria e estilo de vida do meio de século passado, podemos dizer que voltou a crescer o contingente de mestres no tema deste texto. Explicarei, dois pontos…

 
Art déco





    A marchetaria é, simplificadamente, a arte de juntar madeiras diferentes para formar padrões e efeitos visuais. Pega-se, por exemplo, um pedaço de ipê-branco, trabalha-se sua madeira, corta-se em tamanhos e formatos desejados, então junta-se com um pau-brasil que tenha passado pelo mesmo processo. Os pedaços recebem um adesivo apropriado (nem tente usar cola escolar para isso) são unidos de acordo com o que o marcheteiro planejou e então submetidos a grandes pressões por períodos prolongados. O método tradicional é simplesmente amarrar o mais apertado possível, enrolando a corda por toda a extensão do material; se for o caso de peças longas e finas, pô-las entre tábuas robustas serviria para evitar empenamento.

Painel do Rolls Royce Phantom. A Rolls Royce oferece marchetaria como opcional


Marchetaria decorativa
    Ainda que se utilizem métodos modernos, para acelerar a produção sem prejuízo à qualidade, as partes essenciais do processo de marchetaria ainda dependem do trabalho directo de artesãos qualificados. Por isso, mesmo que peças enormes sejam feitas em larga escala para baratear o producto final, a necessidade do trabalho manual meticuloso e tranqüilo mantém os custos relativamente altos.



    É muito diferente de apenas pegar cacos de madeira, cortar e colar em cima de uma superfície. Embora folhas tiradas de peças marchetadas possam ser, e são, coladas sobre outras superfícies, os elementos e figuras dessas folhas fazem parte do conjunto como se tivessem nascido assim, dentro da árvore que cedeu sua madeira. Pedaços colados podem se soltar uns dos outros com o uso, uma peça de marchetaria não. A coesão é tão forte, que peças marchetadas podem ser usinadas e trabalhadas para fazer utensílios e peças de arte, como uma tora de madeira comum.



    A técnica é tão eficaz, que pode ser aplicada até mesmo a outros materiais, como pedras e marfim. O suporte porém continua a ser a madeira. Há uma irmã, a Intársia, que se presta a trabalhos muito mais elaborados e com proposital ilusão óptica de profundidade.

Mais sobre marchetaria, clicar aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.


Parece papel, mas é madeira; Hakone



    O hakone é, simplificadamente, a laminação da marchetaria. Como nesta, peças de madeira, muitas vezes restos para reciclagem, são selecionadas e trabalhadas para formar padrões e figuras geométricas, acrescentando-se aqui a obsessão dos japoneses pela precisão de medidas. Quase sempre as peças têm superfícies bem pequenas e são feitas em grande número, com cada peça colada e prensada individualmente em seus elementos. Quando prontas, as peças são coladas entre si e o processo de pressão e espera se repete, até que se obtenha o painel nas dimensões e proporções desejadas.

 
Da madeira se tira a fina folha


    Até aqui é como a marchetaria ocidental, inclusive na possibilidade de tirar folhas da peça pronta. Em ambos os casos o folheamento confere uma beleza estonteante à peça coberta e uma grande agregação de valor.



    A diferença é que a folha é o objectivo do hakone. A espessura de 0,2mm torna essas folhas tão translúcidas quanto as de papel, a ponto de muitas vezes serem usadas em luminárias. Pegue uma régua de boa qualidade, não aquelas de plástico genérico vagabundo vendidas am pacotes de centenas por um real, e veja os dez traços que subdividem a escala de centímetros; o espaço ente cada um desses traços poderia empilhar cinco, talvez até seis, folhas de hakone. Os padrões intrincados e harmoniosos, derivados da facilidade de quem cresce acostumado à matemática, algarítmica ou não, dão a beleza característica dessa arte. A impressão é que quanto mais nos aproximamos, mais detalhes aparecem.



    Por serem folhas muito finas, em espessuras próximas ao limite de resistência do material, são muito fáceis de serem trabalhadas e moldadas a superfícies com curvaturas em direções diferentes, como peças de cantos abaulados. É quase como trabalhar com papel. Em mãos hábeis de um bom artesão, não precisa ser extraordinário, peças vulgares podem ganhar um refinamento digno de obras de arte. E por serem como papel, como tal, costumam-se colar várias folhas, lado a lado, como se fossem papéis de presente, só que sem a fragilidade climática do papel.

 
1 iene, hoje, vale 0,037 real. Não há centavos no iene, por isso parece pouco.



    As peças decoradas, e mesmo folhas avulsas, não são baratas, mas estão longe de serem caras. As técnicas de laminação do hakone permitem produzir em escala muito maior do que na marchetaria ocidental, por isso os preços caem bastante, a ponto de serem acessíveis ao bolso do cidadão comum. Em geral, por cem reais um turista traz uma linda peça decorada do Japão. E é uma peça única, apesar de a “estampa” poder ser encontrada em outras. E as peças podem ser as mais inimagináveis, fugindo do óbvio da decoração de interiores, incluindo katanas e varas de pescar.. ou até o painel do teu carro, se o artesão se dispuser a isso.


Mais sobre hakone clicar aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.




    A técnica nerikomi é como suas irmãs, só que aplicada à cerâmica... NÃO! Não é catar caquinhos de cerâmica e juntar com cola! Olha o respeito!



    O processo inicial é parecido com a fabricação artesanal de massas comestíveis. Porções de argila de várias cores são trabalhadas, amassadas e esticadas, então o perfil é moldado até que se obtenha a forma desejada para a “estampa”. Isso é feito e repetido em várias unidades do “macarrão” até que todas possam ser juntadas e então formarem o padrão desejado, para quem olha pelas extremidades. Aqui terminam as semelhanças com o trabalho em madeira.




    Após unir todas as peças de argila, o conjunto é literalmente batido. Pancadas controladas em todas as faces da massa, para não danificar os padrões formados, ajudam a compactar e dar coesão à peça. Quase sempre as faces superior e inferior são descartadas, porque receberam directamente as pancadas e nem sempre mantém a contento os desenhos feitos pelo ceramista. Pode variar desde um padrão simples no centro de um prato até uma jarra com padrões complexos e ricamente estudados. Claro que os preços acompanham a complexidade.



    Aqui há dois caminhos básicos para a massa: moldagem e laminação, mas ambas podem ser extraídas da peça, depende do talento e da experiência do artesão. Em peças de grandes áreas, a laminação é a mais aplicada. Com um fio fino e resistente tira-se a folha de argila e molda-se-a ao formato desejado. Bandejas, canecas, copos, grandes jarros, abajures, quadros, enfim, uma infinidade de peças para uma infinidade de usos. Em geral são as peças mais baratas feitas com a técnica nerikomi.




    Um trabalho misto costuma ter resultados muito bonitos, apesar de relativamente simples. De tarugos com não mais do que a largura de um punho fechado, tiram-se pedaços em espessuras uniformes e estes são dispostos em uma mesa. Geralmente os padrões são espirais ou em forma de alvo, os mais fáceis e rápidos de se conseguir, ficam parecendo biscoitos de frutas, então manter longe das crianças pequenas. Esses biscoitos de argila são postos juntos ou com espaços preenchidos por outra argila, então o processo de amassar, umedecer e alisar recomeça, com mais delicadeza. O resultado pode ser facilmente transformado em copos, pratos e bandejas. Como sempre, o talento e a experiência do ceramista faz sapo virar príncipe.



    Moldar uma argila nerikomi é bem complicado, o ceramista precisa antever a deformação que seus padrões sofrerão durante o trabalho. O simples facto de necessitar espessuras maiores já implica em deformação. Entretanto, os resultados podem ser de uma beleza ímpar de uma personalidade única. E como toda boa cerâmica, ainda pode receber apliques de laminados finos, seja para reforçar, seja para realçar ou mesmo ambos.


Parece pintura, mas o padrão está dentro da cerâmica. Ar by Eiko Maeda.



    Acabamento e queima são os padrões, mas as peças não. Existem argilas prontas no mercado, mas os mestres ceramistas têm suas próprias fórmulas e geralmente vivem próximos às fontes.

Mais sobre nerikomi clicar aqui, aqui, aqui e aqui.



    Além das similaridades, essas três técnicas têm em comum o prazer de quem assiste aos vídeos, são fáceis de encontrar em qualquer bom canal de vídeos.

Bônus, a cidade de Hakone, no Japão, clicar aqui.

15/05/2019

Hanna Barbera para maiores


Mas é claro que eu editei! Isto é um blog de família!

    Não é de hoje que os fãs dos personagens da Hanna Barbera esperam pelo retorno da grife ao mundo da animação e, quiçá, seu glorioso ingresso ao crescente e altamente lucrativo universo das versões live action. Sim, tivemos Scooby-Doo, mas sinceramente não foi o que nós, mais velhos, conhecemos quando o desenho era repetido ad infinitum na televisão.



    Nem vou falar daquele vexame que fizeram com o Manda-Chuva que foi um personagem rico, mas incompreendido pelos americanos na época porque se tratava de um malandro tipicamente brasileiro, o que eles ainda hoje simplesmente não comprendem.



    Que dirá dos Jetsons? Era moderno demais para a época, dizem alguns especialistas, mas eu acredito mesmo é que as pessoas não estavam tão interessadas em ver então uma série futurista baseada no cotidiano de um cidadão comum; ainda mais que os problemas tipicamente mundanos estavam presentes e escrachados no desenho.





    Eu poderia passar anos escrevendo e não abrangeria decentemente todos os personagens HB, seria um livro só para listar os nomes de todos eles.



    Acontece que mesmo com a simplicidade extrema da maioria das animações, a Hanna Barbera conseguia o feito de dar carisma e personalidade a TODAS elas, mesmo quando não pareciam ser mais do que versões diferentes de um mesmo tema; o que geralmente era, mas aí vai o talento de uma equipe que pega um Fusca e transforma em Variant, Brasília, TL, TC, Karmann Ghia, Kombi, Puma, Miura, MP Lafer, bugues infinitos e kits a perder de vista. Todos têm a mesma base e origem, mas cada um tem seu próprio comportamento e prazer de dirigir para tipos diferentes de motorista.



    Era esse o mote da HB. Fazia o pasteurizado ter personalidade, como se uma montadora tivesse divisões ou concessões homologadas para customização para versões de nicho. Alô, General Motors, esse puxão de orelha não é uma indirecta, é para vocês mesmo!




    Voltando ao tópico de entretenimento, é justo essa versatilidade que fazia personagens que eram praticamente copiados e colados terem personalidades próprias, e fazia a legião de fãs angariada relevar uma base secreta do alto de um edifício no centro de uma metrópole de onde saía um jato e NENHUM VIZINHO SEQUER PERCEBIA O ESTRONDO. É um absurdo? Sim, é um tremendo absurdo, mas fazia parte da diversão; era para rir mesmo, quem quisesse chorar assistia ao jornal logo a seguir.



    Ao contrário do que se pensava até os malfadados anos 1990, essa legião de fãs não só não desapareceu como cresceu. Gente que nunca tinha visto as reprises no festival Hanna Barbera, nas tardes ao longo da semana, simplesmente ama a grife. Gente que sequer tinha nascido quando a internet começou a trazer toda essa nação de personagens de volta à tona, constitui uma verdadeira torcida organizada.



    Basta um ilustrador talentoso divulgar um pôster alusivo e a rede se enche de esperançosos pelo não só retorno à programação televisiva, ou por streaming, como por filmes block busters que realmente valham o ingresso e a memória de William e Joseph. Perceberam o que quero dizer? Em uma época em que as franquias de heróis veteranos se expande mais rápido do que o universo, há um público cativo ávido por gastar seu suadi dinheirinho em ingressos e bugigangas com a marca Hanna Barbera. É um pomar de bilhões só esperando pela colheita.



    Ok, já apresentei o paraíso, agora mostrarei o purgatório. Assim como a Marvel com o quarteto fantástico, as melhores intenções para com a HB esbarram em um imbróglio incompreensível de licenças e patentes em que NINGUÉM se senta para discutir a divisão de dividendos, que seriam imensos, decorrentes do sucesso da exploração adequada desses personagens. Fica todo mundo emburrado de cara para a parede e mostrando a língua para quem tenta argumentar. É como se um monte de confeiteiros tivesse cada um, um ingrediente para um bolo viciante, mas nenhum se dispusesse a entregar o seu para fazer esse bolo.



    Só que ao contrário do que acontece com o quarteto, zombado com memes (“As coisas estão estranhas”, “esticaram demais o filme”, “roteiro invisível”, “a franquia se queimou”) os fãs da HB dedicam sua fúria aos executivos engomadinhos que não saem de suas salas climatizadas; síndrome da Chrysler, talvez: excelentes carros e péssimas decisões.





    Enquanto isso, os fãs continuam a se nutrir de versões independentes na internet, onde artistas e roteiristas (que são artistas das letras) esbanjam seus talentos em quadrinhos e pôsteres de fazer inveja a qualquer estúdio gigantesco de Hollywood. Eu me surpreendi há uns dez anos, quando digitei os nomes de alguns personagens e vi uma miríade, do mais tosco ao mais refinado, de desenhos independentes relacionados. Mesmo com a estilização que a maioria impunha, cada personagem era perfeitamente reconhecível, desde as versões mais fofas e inocentes até as mais adultas… e picantes… e indecentes... e outras coisas que nem se o que são… é aqui que a porca torce o rabo, meus amigos.



    Digite “Captain Caveman” e aparecerão milhares de resultados, alguns impróprios para menores. Acrescente “hot” e, em vez de restringir, os resultados serão maiores e mais diversificados. Coloque “hentai” ou “porn” e vais se surpreender tanto com a quantidade quanto com a ousadia. Isso vale para todos os personagens, aliás, podem até procurar genericamente por “Hanna Barbera” que esses resultados dignos da Sexta Sexy aparecem, ainda mais acrescentando as extensões. Pinterest e Deviant Art estão repletos deles. Nem adianta colocar filtros, porque aparecem assim mesmo e, dou a mão à palmatória, a arte geralmente é invejável. Os produtores dessas versões se esmeram em realçar a beleza facial das garotas como nenhum estúdio oficial foi capaz até hoje. Quem não está procurando por onanismo simplesmente fica hipnotizado pelos rostos que eles pintam.





   Torcendo mais o rabo da porca, conclui o que já suspeitava há tempos, a indústria da pornografia é a que mais preserva e divulga a memória do entretenimento, e também a que mais lucra com isso. Alguns vão dizer que estou de sacanagem, mas asseguro meus amigos, aquilo que os filtros tentam barrar sem sucesso é justo o que me levou a conhecer versões renovadas e não eróticas dos clássicos da Hanna Barbera. Hoje não me rendo mais ao rubor, é digitando “Josie and the Pussycats hentai” que as versões em arte mais finas e bem-acabadas, e apresentáveis à família, são encontradas com mais facilidade e profusão. Eu não estou brincando, precisaria praticamente viver disso para poder vasculhar todas as opções de censura livre! Imaginem as com tabela etária…



    Enquanto os estúdios de quadrinhos e filmes se digladiam, cada um escondendo seu ovo e sua farinha, a enxuta e ágil indústria do erotismo vende pequenos e bem-feitos bolos em larga escala. Os bocós não querem ganhar fortunas de uma só vez com nababescos bolos de noiva? Eles ganham fortunas com pequenos cupcakes de fino acabamento vendidos aos milhares, não se envergonhando em desenhar mulheres com traços graciosos e encantadores. Enquanto muitas vezes os estúdios apelam ao “custo/benefício” e depois se perguntam o que teria dado errado, os independentes ouvem seus seguidores e fazem o melhor que eles querem comprar, e fazem em grandes quantidades; e vendem tudo.






    Eles não perdem tempo com disputas internas e reuniões intermináveis, eles focam nos interesses comuns e depois acertam o resto, o importante é atender à demanda e pagar os custos da produção, os dividendos e a distribuição da renda resultante são meras conseqüências dessa agilidade e racionalidade: o fã quer, o fã tem. Ah, claro! Eles LÊEM os quadrinhos e VÊEM os desenhos clássicos, discutem em iguais condições com os nerds mais avançados, enquanto o executivo engomadinho com NBA em coaching pensa que Ben Grimm é um dos irmãos Grimm!



    Sem trocadilhos infames, os estúdios deveriam voltar às suas origens, reaprender a atender ao público vendo seus rostos e se inserirem até o fundo daquela caverna de criatividade e frescor que há décadas eles não conhecem, mas os artistas independentes, livres leves e soltos exploram com fervor.



    Até lá… Well… Até lá vamos continuar digitando “Penelope Pitstop hot” para suprir superficialmente a demanda que os engravatados não conseguem, inclusive com os crossovers mais bacanas que se possam imaginar… mas o mimimi corporativo proíbe.