25/05/2008

O Herói fala


Antes de mais nada, quero que não entendam este desabafo como ameaça (não sou dado às bravatas) nem choramingo (prantos são para quem os merece) de minha parte. Falo pelas mãos do blogueiro que me emprestou sua consciência na dimensão de vocês.

Meus pais adoptivos são verdadeiros deuses. Eles, bem mais do que eu, merecem ser chamados de heróis. Sou um extraterrestre, mesmo assim souberam me fazer sentir um humano normal, me valer das dificuldades humanas para resolver meus problemas e os dos próximos, pelo que minhas faculdades alienígenas só são usadas quando realmente necessário. Aprendi a ser humilde. Poderia ter dominado o planeta de vocês sem dificuldade, o que uma educação equivocada ou negligente teria causado. Mas esses dois terráqueos conseguem ser mais fortes do que eu, basta que digam "sente-se e ouça" para me neutralizarem completamente, ao passo que nem os buracos negros resistem à minha força física. Eles sim, mereceriam uma série e uma revista só para eles, para que ensinassem as pessoas a educar seus rebentos. E é por esta educação exemplar, que beira a perfeição, que desabafarei agora, pois a mim ninguém atinge. Eles tornaram meu carácter mais invulnerável do que meu corpo, mas atingiram as duas pessoas que mais amo no universo, isso sim feriu meu coração. Sim, eu tenho e ele está ferido.

Eu nunca fui contra o progresso, as evoluções sociais e a passagem do tempo. Já tenho sete décadas de criação e minha maturidade me permitiria aceitar até o fim das minhas publicações. Pequenas alterações nos meus trajes, Louis ficou com um gênio ainda pior do que nas primeiras estórias e eu só me apaixonei ainda mais por ela. Um conselho aos mais moços, prefiram as bravas, como a Esther da publicação lá em baixo, são as melhores esposas e mães. Moscas mortas e submissas são um passaporte para o adultério.

Agora me digam, como com uma educação assim, eu poderia me corromper? Tendo me atirado uma série de vezes à morte certa, encarando a kriptonita e estrelas vermelhas, eu teria medo da dor? Aprendi a me virar como se fosse um humano comum, teria então medo de perder minhas faculdades especiais? Meus pais genéticos me salvaram sem pensar duas vezes e sem poderem se salvar, meus pais adoptivos me ensinaram a amar o trabalho honesto e tudo o que ele representa, eu jamais desonraria a doação que esses quatros santos me fizeram. Por isso não posso aceitar que um burocratazinho sem talento venha manchar a reputação que eu levei décadas para construir. Essa reputação deixou de ser minha quando o primeiro garoto, ainda nos anos 1930, começou a brincar de um herói que é uma pessoa normal durante a maior parte do tempo. Meu nome é Clark, o herói é um alter ego que protege minha vida privada, é isso que mais procuro ensinar: A pessoa é que faz o título. O resto é ilusão.

Se antes era honesto porque gostava, desde então sou também por obrigação, tenho satisfações a dar para quem se espelha em mim. E eu gosto disso, pois deixo de ser um simples entretenimento e passo a ter utilidade na dimensão de vocês. Isso vale mais do que todas as riquezas do universo.

Sim, na época da minha criação as crianças eram mais inocentes. Mas não se iludam, não eram estúpidas, percebiam o mundo ao seu redor, eram bastante espertas, em certos pontos até mais que as de hoje. É compreensível que linguagens e hábitos dos quadrinhos acompanhem a, perdoem o neologismo, espertificação precoce das crianças. Natural que tabus sejam abordados e que fique claro que ninguém é perfeito, não havendo motivos para que eu seja. Mas há um abismo entre ser imperfeito e ser medíocre. Estão mediocrificando a minha imagem.

Inventaram um marginal espacial que fizeram dar uma surra em "mim". Pela força ninguém me alcança. Pode parecer uma declaração arrogante, mas falsa modéstia não é o meu forte. Se o mal tivesse metade da força do bem, todos os filmes de terror que vocês já viram seriam brincadeiras de crianças. Se o mal triunfa em algum lugar, é porque os cidadãos de bem se omitem, quando agem a fraqueza dos maus se revela e os derrota. Todas as vezes em que a voz do cidadão honesto se levantou em massa, todas as hordas da corrupção se calaram, tremendo nas bases, pois elas sabem que serão massacradas se um dia enfrentarem vocês abertamente. O que esses idiotas estão fazendo é fomentar o louvor ao banditismo, a desesperança e a banalização das pessoas como coisas. Isso é hediondo! Estão destruindo sonhos, que são o que separa as pessoas da insanidade e a sociedade da barbárie. Uma pessoa sem esperanças não tem motivos nem ânimo para trabalhar por si mesma, é presa fácil para a influência dos vilões e seus mentores. Torna-se um bandido na primeira oportunidade, ainda que não tenha tendências sociopatas.

Em nome de uma falsa modernidade embruteceram o meu personagem, sendo que meus pais sempre me ensinaram (com sucesso) a ser polido com as pessoas, o que não significa que eu deva ser um bestalhão que coloca a cara como alvo de tortas. Pelo contrário, Dark Side conheceu meu aborrecimento e se arrependeu de tê-lo provocado. Não gostei do que fiz, mas farei de novo sempre que for necessário. Isso não é ser ultrapassado. Ser ultrapassado é usar um MP4 e se comportar como um huno em sociedade, dirigir um carro com piloto automático via satélite e jogar no bueiro as leis de trânsito como um medieval errante, chamar a atenção para os desmandos alheios e pilhar na especulação como se estivesse negociando escravos. Meus amigos, esse mundo que tentam vender a vocês só é moderno na aparência, é uma tinta brilhante, mas que se descasca ao menor toque. "Com licença", "Por gentileza", "Me desculpe" e "Disponha" não são cousas que devam ser esquecidas.

Há muitos hábitos bons da minha época de novato, que seriam de grande utilidade para o mundo da internet com vídeos. Eu já baixei um sem-número de músicas e episódios, sempre depositando os direitos de quem trabalhou por eles. Mas não querem que vocês façam isso. Aliás, querem, mas só com os gibis (gostei desse nome, melhor do que "comics") e cacarias que eles produzem. Com os outros eles mais querem que vocês tirem o escalpo, para poderem depois alegar "Todo mundo faz, então eu também posso". Não têm talento senão para arrancar seus suados dólares (ou reais, ou pesos, ou euros...) sem dar a mínima para a origem do dinheiro. Predação é um nome feio para os eufemismos politicamente correctos que inventam para seus actos, mas é o que fazem mesmo sabendo que o predado acaba. Acreditem, não me importo com a tanguinha roxa do último filme com o meu alter ego, embora prefira o velho calção vermelho. O que não quero é que, algum dia, um rapaz escreva uma carta dizendo que é meu fã e por isso decidiu ficar covarde e palermão "igual a mim". Se isso acontecer eu ficarei realmente furioso.
Eu sou um homem honesto, procuro ser gentil e prestativo, relevo as pequenas ofensas do dia a dia, cedo com prazer o táxi para a mulher com sacolas de compras. Não fumo, pois o cigarro dá prazer às custas do vício, e eu sou invulnerável. Nenhuma substância impressiona meu cérebro, apenas percebo o (no caso, mau) odor da fumaça por sinais eléctricos dos neurônios. Bebo porque uma bebida bem destilada tem um sabor refinado, mas não me causa prazer além do paladar. Gosto da vida tranqüila que levo. A maior parte do tempo eu nem lembro que existem ameaças, passam-se meses sem que eu precise sequer voar. Vivo como vocês. Portanto não é a um herói que estão ofendendo, é ao cidadão comum, que resiste à tentação do ganho ilícito e quer que o próximo também tenha uma subsistência digna. Ao contrário do meu amigo Batman, um herói de primeira linha que se disfarça de Bruce Wayne, eu sou Clark Kent e me disfarço de Super Homem para a maior parte dos salvamentos, pois às vezes posso fazê-los sem nem precisar sair das minhas roupas comuns. As aventuras que eu avalizava eram uma amostra pequena do meu cotidiano. Se estivéssemos na mesma dimensão, vocês passariam por mim sem se darem conta, a não ser pelo meu tamanho. O porte atlético é comum aos Kent e me pareço muito com eles. Tenho um bom carro, não é luxuoso nem vai a trezentos por hora, mas satisfaz às necessidades de minha família.
Estão vendo? Não sou um ser de outro mundo, só de outra dimensão. Pois adoptei a Terra como meu lar e aqui quero criar meus filhos, ensinando-os o que meus pais me ensinaram, mostrando que a vida como humano é muito mais divertida do que o pedestal dos heróis. Nisto os roteiristas de talento se baseavam para escrever minhas aventuras, nisto eu assentei toda a minha reputação. E são pessoas que fazem e deixam de fazer. Não existe mercado, nem moda, nem tendência, nem outra explicação canhestra para colocar a culpa do que acontece com o mundo. Só existem as pessoas, e as pessoas têm coração, são melhores e mais sensíveis do que fazem parecer, mas estão com medo de se revelarem.

Topo encerrar minha carreira nos gibis, se isso significar o fim do louvou ao que não presta. Se isso significar que vocês passarão a olhar para o seu semelhante como semelhante, não como "o outro", que é o que eu sempre procurei ensinar nas entrelinhas de minhas aventuras. Se vocês não compram, eles terão que mudar para não fecharem as portas. Podem brincar à vontade: Supermongo, Supersucker, Supermané, Super-ado; eu não me importo. É sabido que a sátira neste nível inverte a realidade, apenas para fazer rir. Eu rio.
Tirar qualidades dos heróis não ajuda senão aos que ganham com o ilícito, com o tráfico de armas, de drogas e com o escravagismo. Gostaria muito que isso voltasse a ser motivo para as páginas policiais e não as colunas sociais e revistas de artistas.

Gostaria muito de voltar a ouvir, sem o disfarce azul e vermelho, uma criança dizer "Para o alto e avante".

16/05/2008

Cousas do Brasil: Pumpkin City


Este meme não é irmão da Mymi, mas também vale à pena. Falarei de minha cidade natal, onde (de uma colônia espiritual muito confortável) me jogaram sem dó nem piedade: Rio Verde. A convite da amiga Andréa Motta.

Logo nas proximidades da cidade, a região já mostra sua veia cômica. A uns oitenta quilômetros da entrada, fica a cidade de Santo Antônio da Barra, mais conhecida como Pito Aceso (!), nome pelo qual todos os moradores da região a chamam. Alguns quilômetros à frente temos o povoado de Santa Cruz das Lajes, mais conhecido pelo nome popular: Levanta Saia (!). Por que? Dizem que ele surgiu ao redor de uma casa de tolerância... E o Pito Acesinho logo atrás.

Passei alguns anos sem visitar Rio Verde e, quando fui, vi uma extensão muito grande avançando para o norte. Minha Pumpkin City tinha crescido. E continua crescendo. No fim da década de 1980 os sulistas começaram a invadir a cidade. Ficou esquisito para os meus conterrâneos verem aqueles gaúchos quilométricos andando pelas ruas, abaixando as cabeças para não se enroscarem nos fios da rede eléctrica. Mas cordial (no melhor sentido) como é, o rioverdense não deixou de acolher bem aquela gente, que precedeu a onda de paulistas, cariocassssh, catarinenses e outros bichos esquisitos.

Uma advertência para quem, ao final deste texto, quiser visitar a cidade: Se não sabes brincar, não vá. Rioverdense é gozador por natureza. Se não apelar, o apelido pega; se apelar, vira nome. Adão Pinguinha, Paulo Doido, Paulo Funfun, Torradeira e Beiçuda são os mais carinhosos. Avisados? Então continuemos.

O cognome Pumpkin City, versão modernosa para Riverde das Abobra, foi dado na época em que o município era grande productor de abóboras das mais diversas espécies. Hoje só não planta pequi, porque só agora as mudas comercialmente viáveis para a agricultura estão sendo finalizadas nos laboratórios da Embrapa, mas é questão de tempo. Gado então, ainda mais com a gauchada instalada e bem à vontade, é o que não falta. A cidade está mais cheia de chifrudos do que na minha época de menino... Ehê! Não vá pensar besteira, sô! Estou falando dos bovinos da pecuária, os domésticos são outra história, não me meto em cornos alheios.

Após o choque de um desenvolvimento subito e acentuado, acompanhado da completa reformulação do perfil do cidadão local, o povo está se acostumando com a nova cidade, pois há bem pouco tempo Rio Verde ainda era provinciana, calçamento era para poucas ruas e os atoleiros proliferavam a cada chuvisco. Além do crescimento demográphico e da modernização meio forçada, os abobrenses ganharam uma cidade com um charme meio europeu. Casas dos anos 1920 até 1980 dividem espaço com edifícios arrojados. As áreas verdes dão, de uma vista aérea, a impressão de que o asfalto ainda não chegou. Jardins em frente às casas são quase uma instituição que delicia os olhos, o rioverdense colabora preferindo a grade ao muro. E mesmo com tanta árvore e tanto asfalto a poeira corre solta. É poeira vermelha, daquela que tinge a roupa e fica, se não houver uma lavagem rápida e bem feita. Trabalhar com roupa branca é uma missão ingrata, estará rubra antes do fim do dia, pois a cidade cresceu ao redor de fazendas, e o clima propício permite que se trabalhe o ano todo. Colheu cana, planta abóbora, depois milho, descansa (exceto a poeira), vai um feijãozinho básico, um pouco de soja, girassol e a prole do quimbim. Fora isso, é divertido. A humidade relativa do ar é boa e bem regular, os muitos aclives e declives proporcionam um bom condicionamento físico, mesmo andando pouco. O Calçadão da Nascimento é cheio de lojinhas charmosas e foi feito privilegiando o pedestre, deixando uma só pista para os carros. Sempre há uma festa agendada, sempre há um Fusquinha envenenado e customizado para ser sorteado em algum mês do ano, sempre há um rioverdense por nascer nove meses após cada festinha dessas. Fazer o quê? O povo não previne.

Minha família era conhecida como Queixada. Era gente brava, temida, até perigosa. Conta a minha avó que, certa feita, uma sirigaita começou a dar em cima dos homens da família. As mulheres se reuniram e deram um ultimato à dita cuja, que fez troça da ameaça. Quem tiver, ponha a trilha de "O Poderoso Chefão" que a cousa ficou feita. Despiram-na, seguraram-na e encheram-lhe a pequiquita de pimenta até o fundo. A infeliz correu desesperada e pelada pela cidade, aos gritos, desaparecendo depois de ter que retirar tudo em uma cirurgia, do útero até o clítoris. Já os Queixadas de pitos acesos, eu estranhava, quando criança, ver homens não tão velhos com tantos dentes faltando. Depois que meu avô também levou um pontapé e caiu na cidade, a história começou a mudar. Homem sábio, embora meio irresponsável, calmo e cheio de autoridade, conseguiu domar a índole genocida da família. Daquela época só ficou a fama de gozação, que deu origem a Cabeção, Farofa, Jacaré e outros apelidozinhos tão fofinhos. Mas é bom não folgar.

Conta também que, na época da Segunda Grande Guerra, houve uma epidemia de uma doença que matou quase todos os habitantes. Dos que não foram embora, só restou o meu avô Joaquim, o sêo Quimbinha, que enterrou o último. O moço ficou sozinho na cidade até o perigo passar e os outros voltarem. Pois esse mesmo moço, décadas mais tarde, aprontou uma com a família. Me pegou (pouco mais que um pacotinho ambulante) e me levou para passear, no decorrer dos doces, picolés e pipocas, ele percebeu que ficara meio tarde e, na volta, viu o desespero instalado. É, fiotes, o celular é uma praga, mas tem sua utilidade.

A rua onde minha avó ainda mora (Rua Goiânia, n° 171) já foi passagem de boiada. Hoje o desfile é de Caminhões modernos, carros Mercedes-Benz, BMW, Fusion, Ômega, picapes do tamanho de um trem; que convivem com Fuscas, Corcéis, Brasílias, Rurais, Jeeps e outros do gênero. Não há discriminação, até porque as estradinhas secundárias ainda têm muitos trechos precários e dá dó colocar um Vectra novinho para arrebentar a suspensão, melhor usar um que agüenta o tranco. Aliás, há um Corcel amarelo (1975, creio) que há até pouco tempo ainda era usado como táxi, agora é carro de passeio, o folgado.
Fora aquele "Cristo Redentor" meio cafona (não sou afeito a modismos e imitações descriteriosas) posto em frente à rodoviária, toda a cidade ficou mais bela. Supermercados modernos, mas não muito grandes, garantem uma diversidade de confeitos difícil de encontrar em Goiânia, pois o paladar do rioverdense ficou mais refinado que o do goianiense. A maior proximidade com São Paulo também ajuda, claro, são duzentos e quarenta quilômetros a menos de buracos e assaltantes para fazer o transporte. O melhor foi o nativo ter aceito bem e aderido, o que mostra que a mentalidade também evoluiu, pelo menos um pouco. Um porém, é que ele continua dirigindo como se estivesse no carro de boi. Imagine isso em uma carroça, forte, mas muito lenta; agora imagine isso em um carro que passa dos cento e vinte por hora sem que o motorista perceba. Atravessar ruas em Rio Verde pode ser uma aventura. Mas compensa, asseguro que compensa. Dá para encher vários cartões de photographia e não esgotar os motivos, especialmente o pôr do sol que, com toda aquela poeira e poucos edifícios no horizonte, é um espetáculo. E olha que nem falei do destemor das moças pelo frio, é preciso o termômetro maltrar muito para a minissaia voltar ao armário... e pouco para um pai bravo correr atrás do abusado. Apenas contemplem, por obséquio. Quem sabe uma gentileza e consigamos a amizade da família, que nos apresenta a mais beldades, quem sabe evolui, quem sabe em um ano ou dois os filhos nascem e o vovô coruja agradece pelos netinhos. Vamos com jeito, que melhor cousa do Brasil é o povo, mas também pode ser a pior para quem não souber se portar.
Pumpkin City recebe bem, mas vá de estômago vazio, na primeira amizade vão te enfiar comida até pelos ouvidos.

04/05/2008

Para Audrey Com Carinho


Aos cuidados de Joanna de Angelis.

Feliz aniversário, Audrey. Hoje faz setenta e nove anos que tivemos a alegria de tua companhia. Parece que foi ontem que Bruxelas guardou segredo do nascimento de um anjo. Quatro de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Nove, logo no auge dos anos loucos nasceu um ícone de elegância e serenidade.

Muitos preferem lembrar de tua partida, mas eu não gosto de celebrar prantos, celebro a vida, pois foi a lição que nos deixaste. Ela van Heemstra talvez não soubesse do legado que deu à humanidade, quando trouxe para nós aquela bolinha de carne tão fofa e dengosa. Talvez para que não se assustasse com a responsabilidade de educar um espírito tão elevado e próximo da perfeição.

Se parecias com qualquer menina dos anos 1930, embora não fosses robusta como se gostava na época. Passarias desapercebida se fosses cega, mas teus olhos arregalados e curiosos intimidavam. Por eles deixavas aparecer a tua autoridade moral, e aquela meia-franja charmosa para a esquerda não deixava dúvidas, teu estilo era e continua sendo só teu. És imitável, pois a tecnologia de hoje transforma qualquer atração do circo de horrores em uma beldade, mas ninguém te iguala. Bastaria abrir a boca para, por mais instruções que recebesse, que a mortal revelasse a abissal distância que separa uma “celebridade” de uma pessoa célebre. Pois tu e tudo o que te diz respeito merece ser celebrado.

Decerto que tua educação foi rigorosa, talvez um pouco dura demais. Mas teus pais não poderiam ter corrido o risco de falhar da lapidação de um diamante do teu quilate. Hoje sabes o quanto o conservatório te fez bem, assim como o mundo agradece teus genitores pela educação que foi a tua maior herança. Teu berço, Audrey, é a união do melhor de dois mundos; todo o refinamento aristocrático de uma Europa que já não existe, combinado com o desprendimento e amor ao próximo que raríssimas pessoas têm, mas muito raramente se encontra entre os actuais ricos.

Ah, boneca, foi tão bom! Tão bom! Tanta cousa que queria te dizer, mas as circunstâncias não me permitiram fazê-lo pessoalmente.

Dividimos o mesmo orbe por duas décadas, mas não tive a chance de apertar tua mão e trocar correspondências. Às vezes é o que mais me entristece, Audrey. Muito pior do que perder uma presença da tua estirpe é, talvez, jamais ter tido a chance de beber da fonte que te deu tamanha sabedoria. Tenho que me contentar com os respingos que ainda restam.

Sonia Gaskell e Marie Rambert nem de longe imaginavam a responsabilidade que tinham em mãos, talvez quando viram “Holanda em Sete Lições”, mas teu brilho não se revelaria antes da hora. Elegância e paciência são sinônimos. Provavelmente tremeram nas bases quando “Sauce Tartare” entrou em cartaz, pois tua presença sempre foi maior do que a cena. Se tivessem falhado, teria sido a maior falha da história das artes.
Mas a produção já quase esquecida pelo grande público deu o seu recado. Audrey Kathleen Hepburn-Ruston já não era propriedade da Europa, mas patrimônio cultural do mundo.

Curioso foi assistir “A Princesa e o Plebeu” e pensar “ela está realmente interpretando?”, afinal a tua educação foi a de uma rainha e isso era absolutamente natural para ti. “Sabrina” teve outras intérpretes, mas nenhuma foi dona da personagem como tu. E quando soltaste a voz em “Bonequinha de Luxo” em 1961! “Moon River” nunca mais teve uma voz tão bem encaixada. “My Fair Lady” deixou, entretanto, patente o gigantismo que teu corpinho esbelto escondia. Tu foste uma caipira da melhor categoria. Eu ri das mancadas convincentes, na tentativa de transformar uma pedra bruta no brilhante que tu já eras.

A tua obra cinematográphica é imensa, Audrey. As alegrias que, mesmo a custa de lágrimas, deste ao mundo não tem preço, faz o ingresso mais caro do cinema mais esnobe ficar barato. Mas nem de longe a sétima arte se compara com o teu real legado, o bom exemplo.
Ainda não era moda nem politicamente correcto se preocupar com os famintos. Na época era cousa de gente visionária sem os pés no chão. Bem, com a educação que tiveste e a tua experiência materna (Sean vai me dar razão) não há como não ter os pés no chão. Tu não só se preocupaste como, em vez de dar festinhas grã-finas para arrecadar roupinhas rasgadas, arregaçaste as mangas e foste pessoalmente ver, à margem dos riscos que corria, a realidade de perto. Pés no solo árido, um chapéu para proteger tua pele européia do sol causticante, abraços em crianças das quais a maioria queria distância, brincadeiras com uma garotada que só conhecia a vida rude e embrutecedora, que ainda hoje impera em grande parte do mundo.

Audrey, isso ainda hoje é raro! Quase ninguém faz isso! As pessoas têm medo até de adolescentes que andam a pé, imagine uma criança faminta que não tem o que perder e não fala o teu idioma! Muito marmanjo foge de medo. Mas tu foste. Tu foste! Foste bela mesmo em um cenário degradado, foste elegante mesmo sob condições de curvar a coluna, foste digna em episódios reais que fazem qualquer um chorar de culpa e desespero. Eu te amo, Audrey. Nunca trocamos uma palavra, mas tenhas certeza de que sou teu súdito leal.

Hoje é difícil alguém se esmerar em fazer uma obra artística de qualidade, ter boa vontade de deixar para a posteridade um acervo que valha à pena preservar. Apenas isso já tornaria uma pessoa célebre de verdade. Mas o teu legado é muito maior do que o cinema, o teatro, a música e qualquer quimera bonitinha que inventem. O Mestre disse “Amai ao próximo como Eu vos amei” e tu obedeceste. Sem hesitar. Sabes quanta gente com a bíblia mofando debaixo do braço faz isso? Menos gente do que as pessoas que podem e vão à África, arriscar seus pescoços milionários para fazer algo que preste. Tu foste rica, na Terra, tinhas mais do que o necessário para sobreviver. Pois era pouco. Mereceste cada centavo que ganhaste, cada viagem de férias e tudo o que uma encarnação humana não é suficiente para oferecer. Ser bilionária, para ti seria pouco. Merecias ter tido tudo.

Não vou me iludir, acreditando que és perfeita. Mas sem dúvida estás bem próxima disso. Também tenho os pés muito firmes no chão e sei o quanto isso nos torna chatos, perfeccionistas e exigentes. Mas tu soubeste direcionar para o bom caminho o que torna insociável a maioria das pessoas.

Confesso que, recluso como sou, em 1993 não me dei conta da perda que tua ascensão nos causou. Mas na época eu era cético, um bobo triste que achava que poderia deduzir toda a existência com a matemática fria e primitiva de que dispomos. Bem, as cousas mudaram. Hoje sei que sou apenas responsável pelo meu destino, não posso controlar de facto seus rumos. Mas posso usar da humildade que as surras da vida me deram e reconhecer a tristeza de, entre 1972 e 1993, jamais ter tido a mínima chance de me sentar no banco de uma praça e dar de cara contigo. Vinte e um anos praticamente desperdiçados. Tu ririas da minha seriedade e da dificuldade que tenho em perceber uma brincadeira. Da mesma forma com a qual sorrias para crianças que só conheciam o ranger de dentes e o ruído do estômago vazio. Pois na época eu precisei disso.

Mesmo assim agradeço. Já não execro a humanidade. Há pessoas seguindo os teus áureos exemplos. Ainda poucas, mas são essas pessoas que realmente importam no mundo, as outras podem se afogar em suas mesquinharias hipócritas e que não me amolem. A onu não é mais a que representavas. Está nas mãos de uma ditadura. Ainda bem que não estás mais ao alcance dela, tuas ações seriam incômodas para essa gente. O clima de optimismo e esperança não voltou, como alguns esperavam, na verdade parece mais um conto-de-fadas do que um registro histórico.

Agradeço, Audrey, do núcleo deste coração castigado, por teres aceitado a missão de descer a este mundo ainda torpe. O que fizeste é indelével e impagável. Encobre com folga os teus erros, paga e dá troco pelas tuas faltas.

O que mais posso te dizer? Feliz aniversário, Audrey. Que tua estadia no plano confortável em que se encontras ainda seja longa, apesar de perdermos com isso. Que tua próxima encarnação possa refletir ao menos um pouco da imensa luz que emanas. Que teus descendentes continuem honrando a obra que deixaste. Que tua fundação só acabe para ser transformada em instituição global. Que tuas bolsas vendam como Mustang. E que eu tenha a sorte de ainda te encontrar quando também subir, embora vá ficar em um plano ligeiramente mais baixo.

Feliz aniversário, Sabrina.