23/07/2019

Ah, você acha que lá tem liberdade?



    Um grupo de caminhoneiros se rebela contra o governo e, impunemente, organiza protestos e gigantescas carreatas por todo o país, ameaçando subliminarmente a população com desabastecimento e pondo em xeque a autoridade estatal. A mídia dá cobertura completa e destila sua tradicional peçonha, aproveitando para desenterrar assuntos correlatos e lucrando horrores com toda essa movimentação. Os líderes se tornam celebridades instantâneas, mostrando a todos que nenhum figurão, mesmo do primeiro escalão do governo, é mais protegido pela lei do que um varredor de ruas. Passadas quatro décadas, esses caminhoneiros ainda são lembrados e tomados como exemplo de mobilização para quem conhece a história, esta disponível na íntegra para quem quiser estudar o assunto, a qualquer momento, de qualquer lugar e sem restrições de qualquer tipo.



    Um escândalo político é exposto contra um presidente popular e bem-sucedido na condução de seu país, próspero e poderoso como nunca se viu. A imprensa novamente lucra rios de dinheiro com patrocínios para a cobertura do caso e o mundo inteiro fica sabendo que houve espionagem contra o partido adversário. Manifestações em todo o território nacional acontecem, a maioria pedindo a cabeça do presidente, com a insaciável cobertura dos jornais, revistas e de publicações jocosas de praticamente todos os humoristas daquele país. Para algumas publicações, isso representa o auge de sua popularidade. Mesmo os protestos que tomam países hostis como exemplos a serem seguidos são respeitados, apesar da vontade de alguns, especialmente fugitivos de regimes, de torcerem os pescoços dos manifestantes. A rigor, todos saem ilesos, impunes e retomam suas vidas; exceto claro o presidente renunciante. Há uma miríade de publicações a esse respeito, pró e contra o então presidente, das mais realistas e sólidas às mais absurdas teorias conspiratórias, até mesmo louvores a ditaduras tomando o caso como exemplo, tudo circulando livremente sem qualquer interferência estatal, é só pesquisar qual deseja, encontrar e começar com sua leitura.



    Protestos de “paz e amor” pipocam pelo país a exigir que as tropas se retirem das zonas de conflito em que estão. Como a mídia do outro lado não passa de um informativo dos regimes, a mídia local faz parecer que seu próprio país é o malvadão da história sem se questionar como tudo teria realmente começado, até porque jamais teria permissão do outro lado para fazer uma cobertura semelhante, como ainda hoje não teria. O resultado é a saída de uma situação que estava trocando de lado e pendendo para uma vitória, mas foi abortada pela pressão popular, cuja manifestação ocorreu livre e ainda hoje é lembrada pelos que lá estiveram. Claro que a mídia novamente encheu as burras com patrocínios em sua cobertura unilateral alucinada, enquanto do lado autodeclarado vencedor nada saía sem a permissão do governo, que ninguém explicava como conseguiu recursos para a empreitada. Ainda hoje surgem publicações com “descobertas bombásticas” sobre o acontecido, aos milhares, que são avidamente devoradas por teoristas da conspiração, impunemente, sem que seu governo sequer esboce intenção de editar uma linha que seja. Esses mesmos manifestantes, anos depois, são os turistas que visitam impunemente os países com que estavam em guerra… e voltam sem serem presos ou interrogados.



    Um dito “ativista” assassina declaradamente policiais, espalha doenças venéreas no meio artístico, faz discursos acalorados pedindo a destruição de seu próprio país, faz apologia às drogas e às ditaduras ideológicas, amaldiçoa os mesmos brancos com quem transou promiscuamente, viaja regularmente para o país que foi pivô de uma crise que quase eclodiu uma guerra nuclear e volta impunemente para o país que amaldiçoa, espalhando as mensagens ideológicas de um lugar onde a imprensa é só um informativo do regime. A imprensa livre o idolatra e lucra fábulas com patrocínios, cobrindo sua breve vida de agente patogênico, impunemente, sem que o governo possa restringir senão por faixa etária as transmissões e publicações. Durante essa breve vida, ele aguarda em liberdade plena o decorrer dos processos aos quais responde, indo e vindo como jamais seria possível nos lugares que idolatra e apregoa como paraísos reprimidos. A história nunca foi editada, então é fácil a quem o quiser conseguir informações, das mais precisas às mais fantasiosas, com níveis variáveis ou mesmo nulos de lastro documental, sem o risco de os federais baterem á sua porta por isso.



    Um promissor funcionário “revoltado e bem-intencionado” das forças armadas simplesmente trai seu país, entregando informações sigilosas para um estranho simpatizante de regimes fechados, que escancara o que chama de “hipocrisia” daquele país, sem jamais mencionar as atrocidades de seus regimes de estimação. O escândalo é basicamente sobre perda de privacidade, não há relatos nem mesmo vagos de prisão arbitrária e tortura seguida de execução, como é comum em regimes bonzinhos. Em princípio esse funcionário é preso, mas assim que se vê em liberdade simplesmente foge do país que traiu e se refugia em outro hostil com controle de mídia interna. A mídia do país traído segue os passos do jovem e o transforma em uma celebridade antissistema, lucrando horrores com a exposição dos podres de seu próprio país e fazendo os pivôs parecerem heróis. Pelo menos os líderes de regimes fechados acham que são, pois usaram seu material em proveito próprio. Não fossem outras acusações, um dos pivôs estaria livre leve e solto, gozando da liberdade que de que seu informante usufrui se fazendo de vítima diante das câmeras. Os jornalistas que cobriram e ainda cobrem o assunto estão todos vivos, livres e trabalhando. Ainda fornecem material praticamente contínuo para quem quiser estudar o assunto, por mais que isso desagrade ao seu governo.



    Ex agentes secretos aparecem repentinamente aos montes, dando entrevistas livremente, inundando a televisão e as publicações com uma revelação aterrorizante: Os líderes do serviço secreto são humanos! Pior: eles são passíveis de falhas! Com essas escabrosidades imperdoáveis, o serviço secreto é bombardeado com críticas ferozes de inimigos do sistema, adoradores de regimes que editam até a memória do cidadão e artistas que se acham intelectuais. Alguns métodos da agência são postos à público de forma clara e didática, inclusive os de recrutamento e fases iniciais de treinamento. Horror! Qualquer cidadão pode pleitear ser agente secreto, mesmo que não goste do governo! Que espécie de país dá ao cidadão comum um poder tão grande, e ainda permite que saia do serviço para a vida civil, impunemente e ainda escancare os vícios de sua agência? Estão todos vivos, livres e trabalhando, ao contrário dos que deram suas vidas para proteger seu país e até países vizinhos, esses a imprensa ignora solenemente porque não dão linhas à narrativa e nem patrocínio farto em programas antissistema… e poderiam afastar a audiência que os artistas antissistema ainda conseguem alavancar.



    Um fanfarrão é eleito presidente, a despeito de todas as previsões e toda a pressão midiática. Há manifestações violentas pelo país, com depredações e ataques físicos que formam pequenas praças de guerra. Facções declaradamente antidemocracia atacam aos berros os cidadãos e queimam propriedades de gente humilde, às vezes destruindo as ferramentas de trabalho dos que em discurso dizem defender. Próximo ao local da festa de posse, uma cantora antissistema faz um discurso inflamado dizendo que explodiria a sede do governo com o novo presidente dentro, se pudesse, aplaudida pelo seu público e dividindo palco com inimigos declarados de seu país, inclusive defensores da sharia. Novamente a imprensa lucra fábulas com patrocínios, cobrindo a bagunça e veladamente desejando o fracasso do presidente eleito, fazendo prognósticos dignos de esquizofrênicos com abstinência de controlados. O caso é recente, é então até mais fácil conseguir informações a respeito, inclusive saber que só os responsáveis por ataques violentos e perturbação da paz pública foram punidos, todos os outros estão vivos e em liberdade, inclusive a cantora e outros “artistas” adoradores de regimes que punem com execução sumária quem fizer o que eles fizeram. Esses mesmos “artistas”, que não toleram opiniões contrárias, adoram dar palpites na política interna de outras democracias, o que fazem sem medo de punição… pelo menos não no país que odeiam declaradamente.



    Uma mídia declaradamente inimiga desse país e defensora de outro hostil, onde a mídia é controlada com mãos de ferro, inicia a transmissão atacando livremente o país que a acolheu, suas instituições e seus valores mais caros de livre pensamento, eufemicamente chamando de “ponto de vista não ocidental dos factos” o que expõe. Com material proveniente exclusivamente da censura de seu regime, obriga seus funcionários nativos a falarem mal de seu próprio país e permanece no ar, mesmo após âncoras terem se demitido ao vivo e em rede nacional, expondo as mentiras que eram obrigados a falar. Nenhum artista se levantou contra essa mídia mesmo depois disso, e a mídia local lucra até com isso. É tudo garantido legalmente pela liberdade de pensamento e opinião, que não existem no país de origem dessa mídia, pelo que o governo local nada pode fazer a não ser que a segurança nacional esteja realmente posta em risco.



    Com tudo isso, facilmente verificável, vocês vêm tentar me convencer que naquele país não há liberdade, que é tudo invenção da mídia? A mesma mídia que ataca com fervor o seu próprio país? País para onde os “artistas intelectuais” adoram ir, em vez dos que eles apregoam como exemplos e paradigmas?



    Qualquer um afronta uma autoridade, qualquer um faz discurso em público contra as instituições, qualquer um contesta publicamente as leis, qualquer um processa o governo, qualquer um pode se candidatar ao que quiser e vocês querem me convencer que lá não há liberdade? Vão mandar ler o quê? Os manuais daquelas ditaduras?



    Façam a si e ao mundo um favor, voltem aos ventres e recomecem do zero.

15/07/2019

Ao abismo






            Vejo à frente o abismo, mudo e retumbante em sua luz negra, que preenche todo o vácuo turbulento que me rodeia. Ainda que recuasse eu avançaria, porque recuar é dizer “não” e o abismo desconhece negativas. Só conhece “fazer” e “cessar”. Cessar seria permanecer na supermorte em que se tornou a existência mórbida de sorrisos tênues, fatigantes e dolorosos.


            Não existe escolha senão avançar. Parar é abdicar de escolher e tornar-me alvo passivo das edges incessantes. Avançando escolho os motivos pelos quais devo sofrer, em vez de sofrer por motivações terceiras. Não se controla e não se pode defender-se das dores alheias.


            A vida é triste? Cruel? Vale a pena? Abdique desse drama supérfluo. Questionar a validade é renunciar automaticamente àquilo que se questiona. A vida já estava aqui quando chegaste e aqui estará muito depois de tua partida. Não é ela que deve ou não valer a pena, és tu.


            Ainda caminho para o abismo, às vezes consciente, às vezes de modo meramente automático; aqui quando as forças e os motivos se mostram pequenos demais para alimentar a ação. Às vezes me esquecendo de que já caí de outros abismos, cada vez mais profundos em sua sucessão. Às vezes pareciam não ter fim, mas eu sempre cheguei ao piso rochoso da fossa após quedas cada vez mais prolongadas.


            Quanto mais me aproximo de sua bocarra escancarada e faminta, mais o vácuo frio e turbulento me queima por dentro, mas também mais me faz perceber o quanto a bonança do ponto de queda era tão mais triste e dolorosa, que faz então o óbito incessante parecer vida plena. Era só um analgésico que não curava realmente a enfermidade, e para o qual eu já estava insensível.


            Não, eu não direi que todas as pessoas são infelizes e não o sabem, não estou em suas mentes para saber o que realmente sentem e, ainda que lá estivesse, certamente não saberia traduzir os dialetos que somente a cada um cabe compreender; decerto que nem mesmo cada um tem ciência plena daquilo que lhe povoa cada pensamento, que dirá um observador? Afirmar aquilo seria pedância de um paciente que se nega ao tratamento psicanalítico.


            Enfim, nem as pessoas se conhecem realmente e não serei mais um a pleitear um busto por fazê-las duvidar de seus próprios motores de vida. Minhas dores são mais do que suficientes e só se aplicam a mim, não quero disseminá-las. Fazendo isso, eu seria tão pior do que os agentes agressores, que parar doeria menos do que o remorso.


            Ao abismo. Vejo tanto nada que tudo o que existe caberia ali com sobra de espaço, e realmente tudo se apresenta em uma fração de tempo que não posso medir. Ainda que pudesse, por que o faria? Estaria atrasado? Para quê? Tampouco tenho pressa de que se dê o desfecho. Urgência talvez, mas não pressa. Gostaria que tudo acabasse de uma vez por todas, mas quem me garante que realmente se acaba? Quem diz ao corpo já se apagando, que está terminado? O cérebro que já se terá ido? Onde está o registro do fim? O há?


            Não estou a um passo dele, estou a ele. A diferença entre a queda ao chão e a queda ao vazio, está simplesmente na direção para onde cairei. Ironicamente, tudo o que me acometeu até aqui foi colheita de meu plantio, mas agora, no zênite deste platô, a escolha é do vento que me empurra hora para o chão que piso, hora para o vazio adiante. A bem da verdade, meus pés já estão metade à frente, sem apoio, no ponto crítico do equilíbrio.


            A dor não aumenta e nem diminui, ou talvez eu é que não perceba mais se há variações. Talvez tenha me embrutecido justamente por não ter podido parar e me analisar. Ainda que parasse regularmente pelo caminho, que parâmetros eu teria para essa análise? E de que vale isso agora, se antes já não me valia? Homenagens póstumas não cicatrizam feridas. O que não foi dito ou feito até aqui, não o será mais.


            Pendendo para o abismo, puramente por força das conseqüências já plantadas, olho para ele e não, ele não olha para mim. Ele está pouco se importando comigo. Ele fará, ou não, diferença para mim, para si eu não significo mais do que mais um; não serei o derradeiro cadente em seu vão. Aliás, a escuridão infindável é clara e nítida, até mais do que a que já me contém. Em um tempo que não meço já não me contém mais.


            A ausência de pressão sob meus pés e pernas informa que a queda começou. Não é assustador como a tantos pode parecer, em verdade vos afirmo que a espera me tolhia mais a respiração. Não me atemoriza a iminência do impacto, isso é quase certo e não me desgasto mais com aquilo que não me cabe, mas se desgasta o animal que me veste e quer sobreviver a qualquer custo, bradando um grito que não ouve na vã tentativa de obter um eco que não vem. E não virá.


            Ainda que sinta o atrito cada vez mais intenso com o ar e a aceleração que me faria por para fora tudo o que tivesse em meu estômago, não há nada ao redor que possa me fazer mal. Tudo o que poderia me atormentar e ferir está dentro, não fora. E nesta solidão que já havia quando cercado por multidões, nem haveria agente externo a quem imputar qualquer culpabilidade. Ainda que pudesse fazê-lo, a culpa é apenas um expediente cruel de uma vingança eufemizada, somente o reconhecimento da responsabilidade, que poucos se dignam a assumir e levar a termo, teria os resultados que valeriam meus esforços.


            Ainda que o silêncio congelante me queime da pele até os ossos, não esboço mais qualquer reação no decorrer da queda. Chorar e sorrir se mostraram, no final das contas, a mesmíssima cousa, ambas me causam dor e cansaço que não me convém mais sentir sem a mais absoluta necessidade; até que essa queda se finde, não existe absolutamente necessidade alguma. Tudo que não seja a própria existência está indefinidamente suspenso.


            Vejo ao longe as trevas engolindo o horizonte que nem sei se existe. Talvez essas trevas se devam à cegueira e não ao ambiente, mas ainda que não seja tudo tão realmente escuro, a luz é tão tênue que não faz diferença, sequer eleva um grau em minha temperatura também cadente. Mas o que eu veria, se enxergasse, senão uma parede rochosa subindo cada vez mais rápido?


            Ainda estou caindo. Até quando eu não sei. Sinceramente, não me vale fazer cálculos sem parâmetros, se só existe agora a queda. Calcular agora não mudará o desfecho, o qual desconheço e ainda que conhecesse, não poderia evitar. É uma queda livre. Na verdade a única cota de liberdade que me foi permitido até hoje. Caio no meu tempo, do meu jeito, se vivo ou morto não importa mais. Apenas caio até o fim… se houver fim.


            A única coisa que me dói é a única certeza que tenho, e não é uma afirmativa: Quem se importa?