25/10/2009

Vista a camisa

Um dos maiores problemas da actualidade é a falta de compromisso. Não aqueles que enchem as agendas, isto são obrigações sociais. Se parecem muito com o compromisso porque usam roupas muito parecidas, às vezes até coincidem.
Mas uma diferença básica pode ser esta: Obrigação social é uma satisfação que se dá ao grupo em proveito próprio, compromisso é uma satisfação que damos a nós mesmos em prol do grupo.

No caso da obrigação, é necessário que a sociedade em questão tome conhecimento do que foi feito, mas tu faz de tudo para não se envolver e ter o mínimo possível de contacto com os problemas correlatos.

Quem assume um compromisso está preocupado é com os resultados, ainda que a sociedade não tome conhecimento do esforço desprendido, e tu se envolves mesmo sabendo te todos os problemas correlatos. E mergulha de cabeça.

Os homens-bomba, por exemplo, seguem uma obrigação social. Apesar de parecer que eles lutam pelo bem de uma causa, eles acreditam que a morte naquelas circunstâncias lhe renderá glória, seja histórica, seja pós-túmulo. Ou seja, fazem por si mesmos e não pelo grupo, como qualquer um que se rende às facilidades egoicas do radicalismo, seja em que área for. Porque é em nome de "Seja-Lá-O-Que-for" que eles fazem o que fazem, então não é nada de pessoal e dá licença que vou explodir seus filhos para minha exaltação.

Assim se formam as gangues de filhinhos-de-papai que, quando alegam defender a honra do grupo, estão é alisando as feridas de seus espíritos enfraquecidos pelo prazer fácil.

Vestir a camisa é, assim, diferente de simplesmente usá-la. Usar um "Garotas Que Dizem Ni" bordado no bolso da camisa, sob um paletó, pode ser uma prova muito maior do que só usar uma camiseta escandalosa em cores berrantes, se recusando a trocá-la ou vestir algo por cima. O primeiro caso está fazendo algo pela causa, o segundo em nome da causa. O primeiro seria capaz de enriquecer para custear aquilo em que as garotas acreditam, o segundo certamente formaria uma gangue para perseguir quem não é do grupo.

As explicações se delongaram muito mais do que eu pretendia, mas acredito que passei meu recado. Vamos à camisa.

Hoje, como em todo último domingo de cada mês, fui photographar um evento de veículos antigos. Pela primeira vez o clube do Fusca faltou, o do Chevette há meses não comparece. Os que teimam em freqüentar (com trema) reclamam da falta dos correligionários e seus carros. O ponto em que todos eles concordam, é o prazer que sentem lidando e falando de seus carros, o ponto em que nem todos concordam é arcar com os compromissos de serem associados a uma entidade legalmente registrada e reconhecida. Em parte há razões, a prefeitura não dá a mínima para eventos culturais que activem partes acima do abdômen, pois não são inerentes ao eleitorado cativo. Hoje o lugar estava cheio de carroças com bancas desmontadas, sujo e os banheiros, bem, eu não aconselho seu uso por mulheres. Esta é a parte em que podemos culpar o poder público.

Pesa contra o corpo de sócios a má vontade, o vício em repetir "meu carro" em vez de "meu clube". Há pessoas que garantem o pão do dia trabalhando nesses eventos. O ambiente proporcionado (apesar dos espíritos de porco que insistem em atrapalhar) é de uma paz e uma camaradagem raras, como das épocas dos veículos expostos, quando se podia dormir apenas fechando as portas, sem cerca electrificada, alarmes ou monitoramento noturno. Mas poderia ser mais. Esse ambiente poderia ser compartilhado com toda a cidade com passeios temáticos, visitas a escolas públicas, creches, simples impressos a respeito dos carros e suas épocas já despertariam interesse. Falta compromisso. Eles não pensam nos efeitos benéficos que o antigomobilismo gera, só no próprio lazer.

Um dos componentes da última crise mundial é justamente a falta de compromisso das directorias para com suas empresas. Vocês sabem que a Ford passou quase ilesa pelo episódio, ao contrário da General Motors. Acontece que a primeira ainda tem o controle da família que a fundou. Quando um Ford vê o emblema da marca, vê literalmente o próprio nome, existe um compromisso que levou a família a não compartilhar da postura depredatória das demais montadoras. Logo, foram os únicos a não dar satisfações para o Obama. Os outros tinham é obrigação de mostrar números, o faziam a qualquer custo, para não perderem seus empregos. Pois os perderam. E hoje vemos que a Daimler-Benz não mentiu ao falar da Chrysler que, como a GM, não tem nem de longe a solidez de seus productos.

Se o presidente de uma companhia não veste sua camisa, quem o fará? Os ex-fãs das duas marcas estão decepcionados, já não existe a fidelidade de outrora.

Em menor escala, mas não menos importante, temos as empresas locais, que são as bases das grandes. O funcionário reclama do salário, mas não faz o menor esforço para que a administração sinta sua falta durante as férias. O director reclama dos funcionários, mas não faz o menor esforço para que eles sintam falta do trabalho durante as férias. Neste círculo vicioso, a empresa se torna só mais uma que não fará diferença quando falir e outra tomar seu lugar.

Aqui cabe falar da melhor pessoa do mundo, a criatura mais íntegra e honesta de que tenho notícias, a amiga por quem eu daria a vida se fosse necessário: Maria Cristina. Ela sim, veste a camisa, o terno, a saia plissada e os sapatos de onde trabalha. Posso dizer, em resumo, que no dia em que o Tribunal de Contas da União baixar lá (porque ainda há de se dar Justiça), ela entrega as chaves e as senhas dos computadores sem medo. Apesar de já ter sido ameaçada por pais-palhos que agem cegamente contra quem menos parece poder se defender, de ter sido perseguida veladamente por questões políticas e não contar com um contingente mínimo em sua equipe, rege magnificamente os setores que comanda. Ex-alunos lá vão apenas para darem um abraço e dizer que a amam. Ela incorpora o espírito da assistência social. Se agisse em causa própria, seria rica, pois é competente, mas age em prol da causa que abraçou. Tira do próprio bolso para manter sua alçada funcionando. Às vezes exagera, mas é por uma causa nobre.

Uma pessoa que assume um compromisso e veste a camisa, tem menos tempo para pensar e fazer besteiras. Aprende rapidamente os limites que sustentam uma vida social saudável.

Ter compromisso com origami leva ao seu estudo, à prática insistente e rapidamente aos valores ligados á arte das dobraduras. Decerto que deve haver um limite, mas qualquer mãe que se preze prefere ver o pimpolho estudando matemática e japonês a caçando encrenca nas ruas, qualquer pai que se preze prefere ver seu pimpolho alicerçando solidamente seu futuro a caçando encrenca nas ruas. Ele será um cidadão útil e feliz, ao contrário dos que louvam bandidos e fazem apologia à prostituição como "cults".

O mesmo vale para desenho, textos, vídeos, música, miniaturismo, et cétera.

Eu estimulo as pessoas a vestirem boas camisas, porque eu visto várias e não ter me tornado o cafajeste que tentaram me tornar é só um dos benefícios. Escolha as suas e vista, se precisar de um estilista amador para desenhá-la, estou às ordens.

17/10/2009

Vila Trabalho

Vila Trabalho é uma cidade serena, mas não uma cidade pacata. Em suas ruas sempre há gente, sempre há movimento. Quem trabalhou até á tarde serviu quem trabalhará até de madrugada, que agora os serve. O trabalho faz parte da vida do trabalhense. Desde criança vê seus pais chegando exaustos do serviço, mas nunca mau-humorados. Chegam aliviados de poderem descansar, não reclamam de terem se cansado. Uma vez em casa, aproveitam a família, os amigos, as tosqueiras do dia a dia que seus rebentos proporcionam.

É comum haver crianças nos locais de trabalho dos pais. É comum que aprendam com eles uma profissão. É regra já terem seu próprio dinheiro aos dez anos, por pouco que seja. Nenhum conselho tutelar pune quem ensina uma profissão a uma criança, puniria quem a deixasse à esmo na rua, mas um trabalhense não faz isto.

As crianças trabalhenses estudam e o estudo é considerado um trabalho. Quem trabalha com crianças, então, recebe adicional. Professores, enfermeiros, psicólogos, babás e assistentes sociais são uma elite. Porque seu trabalho não tem fim, mesmo quando chegam em casa, no fim do expediente, há amigos e vizinhos que aguçam sua índole laborativa.

A expectativa de vida do trabalhense é elevada. Raramente um se aposenta de acordo com a lei, eles preferem trabalhar até onde derem conta. Quando o corpo já não coopera como deveria, a vida útil e productiva lhes deixa de herança uma mente lúcida, que permite o trabalho intelectual. Aos setenta anos ainda fazem planos para o futuro. Não só planos, como estudos e cálculos para viabilizá-los. Todo trabalhense quer deixar à posteridade o que tem de melhor, o bom exemplo. Gente com mais de cem anos ainda trabalhando não é notícia, a não ser para a imprensa de fora. Músculos, ossos e sistema nervoso sabem agradecer por uma vida de trabalho árduo e regrado.

Quando as abelhas trabalhenses vão se divertir, é hora das corujas trabalharem.
Trabalhenses gostam de dançar e cantar. Bailes informais e de gala fazem parte do cotidiano, são verdadeiros pés-de-valsa. Com o apuro que o senso de prioridade lhes lega, sabem identificar uma boa música e um bom intérprete. Nem tudo o que é sucesso aqui fora tem êxito por lá, e vice-versa. Bares e restaurantes nunca estão lotados, mas sempre com boa ocupação. Todos se tratam pelos nomes, cordialmente. O gari que varreu e recolheu folhas, por falta de lixo nas ruas, durante o dia, é o cavalheiro que conduz sua convidada à noite. O trabalho é valorizado, ser útil é bem visto.

Ser mãe é uma missão respeitada e bem remunerada. Quer alguém mais útil à sociedade que uma boa mãe? São autoridades. As meninas aprendem desde cedo os ossos da maternidade, mesmo que não venham ter filhos o conhecimento terá serventia, mas também a não depender dos outros para se manterem. O treinamento começa com a menina ajudando a cuidar de crianças de colo, ainda que seja apenas segurando a mamadeira ou uma fralda, enquanto a mãe ajeita o rebento. Paralelamente isto evita os ciúmes que os recém-chegados consumam suscitar, pois quem ajuda a cuidar também é cuidado e recebe atenção. Embora mais intensivo para elas, os meninos também têm que ajudar, pois mulheres não engravidam por brotamento.

Na Vila Trabalho há poucos chaveiros, pois há pouco mercado para eles. O que fazem é trocar fechaduras danificadas por mau uso, pelo tempo, substituir chaves perdidas. Fechaduras com segredos e toda a parafernália a que nos acostumamos, lá não existem. Onde o trabalho tem o status que por cá damos à malandragem, criminalidade é notícia vinda de fora.

Foram séculos de trabalho para ser o que é hoje. Conspirou a favor o facto de nunca ter despertado interesse de turistas nem de políticos, de estar em lugar de difícil acesso e ter poucos recursos naturais. Vila Trabalho se fez por si mesma, nem sempre teve papel-moeda suficiente, então as transações se davam com base na confiança, que foi cuidadosamente cultivada pelos seus cidadãos.

Não tente procurar Vila Trabalho em reportagens, no máximo vais encontrá-la em trechos da literatura oficial. Pois não desperta interesse político. Seus vereadores têm pouco o que fazer, além de ajudar o prefeito a administrar, pois um povo civilizado e comprometido com a coletividade não precisa de muitas leis, na verdade mais de três quartos delas foram abolidas com o passar dos anos, pois se tornaram supérfulas e obsoletas.

Poucos viajantes não para Vila Trabalho, bem menor ainda é o turismo, pois a única estrada que lhe dá acesso não passa por lá, vai pra lá. Só vai quem realmente quer ir. Mas a cidade não tem as atrações que a maioria julga imprescindível para um bom turismo, e a cidade não as quer.

Os dois únicos jornais diários não têm ligação com os grandes jornais, as três emissoras com freqüência trabalham em conjunto. Dão poucas informações a respeito do lugar e só quando são solicitadas. Mas há trabalhenses estudando e trabalhando pelo mundo e eles servem de correspondentes. É uma situação confortável, é uma cidade invisível que sabe tudo e da qual quase nada se sabe, senão por photographias de satélite e relatos de viajantes, que poucos se importam em ouvir. Nem a criminalidade reinante no país se interessa, pois não há mercado para uso recreativo de entorpecentes.

Recreação em Vila Trabalho é farta, mas não tem anúncios escandalosos, apelativos, nem são excludentes, são para a família toda. Porque foi na família que Vila Trabalho encontrou o gérmen de seu sucesso. E o sucesso de Vila Trabalho está intimamente ligado à discrição do trabalhense. Discrição não dá ibope. Na verdade, eles não diferenciam trabalho de diversão. Só tratam de ter suas pausas regulares ao longo do dia, para não serem traídos por seu amor ao labor.

Como regra de um bom trabalhense, lá se dá o melhor de si o tempo todo, é ponto de honra. Logo a mente do cidadão está alerta e bem calibrada. É natural encontrar um doutor de alguma área em qualquer lugar, crianças falando vários idiomas com naturalidade nacional, às vezes rodinhas discutindo cada um em um idioma, para ajustar melhor os neurônios. A internet foi uma bênção, pois agora eles podem trabalhar para empresas distantes sem sair de sua amada cidade. Mais uma vez eles sabem do mundo que não sabe deles. Levam a sério o que fazem, mas não a vida que levam. Por isto mesmo poucos programas de televisão vindos de fora têm índices significativos de audiência. Por isto mesmo Vila Trabalho permanece em seu lugar, crescendo sem inchar, sem chamar atenção.

Trabalhense que se preze sabe aproveitar a vida sem depredá-la, para tanto, nada melhor que se sentir útil. Trabalhense útil é trabalhense feliz.

10/10/2009

Fazendo um hedonista

Um dia tudo isto será seu. Você vai ter milhares de empregados, será dono de doze empresas presentes em sessenta países.

Será uma vida de viagens e estresse, mas valerá à pena. Você vai conhecer gente interessante, aprender idiomas naturalmente, se relacionar com líderes e ganhar prestígio.Veja aqueles trabalhadores lá em baixo. Pois é lá que devem ficar. Dêe-lhes um agrado de vez em quando para que não causem problemas. O sindicato será uma pedra no sapato, sempre foi assim. Nós querendo que esses asnos bípedes trabalhem de graça, eles querendo que recebam sem trabalhar. Sabe o que fazer? Suborno. Sempre haverá um traidor ambicioso querendo o lugar do chefe, ele será fácil de identificar. Geralmente é um morto de fome que suou para ter uma vida menos medíocre que os outros, mas acha que merece mais. Mas na primeira crise não hesite, mande uma centena deles embora que logo esquecem dos ganhos e tentam negociar garantis de emprego, é então que você os tem nas mãos sem eles perceberem.Vou te mostrar como comprar políticos. Vai aprender a identificar os que simpatizam com a sua causa própria. De cara você vai ganhar doze deputados e seis senadores que já tenho no bolso. Foram eles que atrasaram algumas leia ambientais e nos deram tempo para desmatar completamente a área para a construção deste hotel.

Uma dica é atrapalhar o desenvolvimento do país. Está cada vez mais difícil e não vai dar para fazer isso por muito mais tempo, mas será o suficiente para você acumular mais alguns bilhões e mandar para o exterior, longe das conquistas sociais que estão acontecendo por aqui, desde o FHC. Temos suporte político para tanto e a mídia muito bem paga para nos acobertar. Só não exagere, senão nem o presidente da república safa a sua cara. Faça tudo muito discretamente e bem feito, para ninguém descobrir antes que seja tarde, ou tenha expirado o crime.

Funcionário público é tudo corrupto, salvo uns poucos que eu consegui neutralizar e acusar de corrupção, para que não me atrapalhassem. Se for mulher então, fica mais fácil ainda, com sexo. Mas mantenha as mãos deles sempre cheias para que não dêem para trás. Quando eu digo "cheias", não é dinheiro de verdade, é uma esmolinha que fazem brilhar os olhos desses pés-rapados, mas não nos faz diferença. Eles ficam molinhos quando ganham um Civic automático, nem sabem o que é um Rolls Royce. A turma do meio ambiente e da vigilância sanitária são nossas maiores dores de cabeça, então merecem presentinhos melhores, desses que não cobrem uma festa na nossa mansão. Pobres patéticos.
Até há um ano tínhamos contacto com piratas somalis, mas os cretinos ficaram muito ambiciosos e tivemos que executar um grupo deles, para que os outros nos deixassem em paz e não nos delatassem. Lembre-se: Ninguém precisa saber como financiamos nossas propriedades, mas todos precisam babar por elas, os acionistas gostam de prosperidade e o Zé povinho simpatiza com gente rica. Bem, vamos agradá-los e enriquecer mais.

Por falar nisso, contractei uma equipe de reportagem para cobrir a sua viagem à Santiago de Compostela. Enquanto os seus amiguinhos vagabundos vão derreter seus poucos neurônios remanescentes em viagens da moda, você vai ganhar a fama de garoto precoce e responsável, preocupado com coisas mais elevadas e relevantes. Só que ninguém precisa saber quais são. Já combinei tudo com a agente daquela modelo que venceu o último reality show. Esnobe ela no primeiro encontro, depois pode puxar conversa.

Assim que a sua mãe voltar do shopping, vamos conhecer um grupo de colaboradores, são marqueteiros e publicitários que divulgam nossas ações sociais, para distrair as atenções enquanto dilapidamos os bestas que trabalham para nós. Ah, se soubessem o quanto lucramos com seus suores fedorentos!Só uma última recomendação. Você provavelmente será a última geração com esta facilidade toda, infelizmente o Brasil está para dizer adeus ao terceiro mundo. mas enquanto o Zé povinho continuar alienado e imbecilizado com futilidades de televisão, brigando por time de futebol ou qualquer outra irrelevância, nós teremos tempo para enriquecer mais sem recorrer a métodos trabalhosos. Além do mais, honestidade é para os fracos.

Chega a esposa cheia de sacolas, aparentemente sem ter se preocupado com os custos, é a benfeitora que dá boa fama à família. O pai vai buscar o Droop Head enquanto ela conversa com o garoto...

E então, ele disse tudo o que eu previ? Foi o que pensei. E como te ensinei, você vai fazer tudo ao contrário, certo? Certo. Você já tem a minha fortuna para se assegurar, no futuro, ganha honestamente, sem o corno do seu pai saber. Vou te ensinar como fiz isso, em Santiago de Compostela. Vamos embora.

03/10/2009

Proibido fazer xixi no poste

Não sei como é nas cidades de vocês, mas em Goiânia bastam algumas gotas para que o sistema público de energia tenha um revertério. Nem precisa haver trovoada, não precisa cair granizo, nem uma tempestade diluviana, basta a água da chuva encontrar um transformador de mau humor e pronto, todo mundo no escuro.
Sim, chuvas causam queda de energia no mundo todo, não é novidade. Mas aqui o caso é grave. Na onda das privatizações, durante os orgasmos neoliberais do Privatizando Henrique Guloso, nosso governador à época quis imitar. Privatizou a melhor parte da Celg, que já não era um primor em seus serviços e pimba! A baixa qualidade dos serviços despencou vertiginosamente.

O maior problema é que o consumo de energia em Goiás cresceu muito, ao que se comparados, os investimentos em infra-estrutura energética mais parecem saques do que depósitos. Já temos indústrias automobilísticas, uma delas de primeira grandeza. Fabricar carros demanda uma rede de outras empresas tal qual o cérebro precisa de um corpo saudável. E os investimentos não acompanharam cousíssima nenhuma.

Nossa rede é arcaica, subdimensionada e não conta com proteção eficiente contra descargas eléctricas. Pagar prejuízos já faz parte da folha de despesas permanentes da Celg. Aliás, quase tivemos um de monta além do material. Medicamentos termolábeis, que precisam ficar em uma faixa muito estreita de temperatura, guardados do frigobar. Caríssimos e, ainda que pudéssemos pagar por eles, o laboratório só vende para pessoas jurídicas. E este medicamento mentém uma pessoa viva. Vocês não imaginam a burocracia que é para se ter uma distribuidora de medicamentos, além de ser extremamente caro de se manter.

Certa feita, quando no curso de mecânica, um professor disse que se todos os tornos do laboratório tivessem uma repenteina reversão ao mesmo tempo, a cidade ficaria às escuras. Bem, não é só por causa da potência dos motores, nem só porque a força contra electro motriz consome o quintuplo da energia da força electro motriz; nossa rede foi pensada para a Goiânia que Pedro Ludovico Teixeira fundou e que hoje não teria mais que sessenta mil habitantes. Somos um milhão e duzentos mil.

Tudo o que se investiu desde então, foi pífio. Tão pífio, que a venda de geradores a combustão teve um crescimento expressivo. Há um ano, no supermercado que freqüento com trema, vi um ou dois geradores estacionários pequenos e caros, suficientes apenas para uma chuveirada ou para a iluminação de uma casa. Hoje, por aquele preço, ele oferece (de uma gama já vasta) um baita gerador que nem nos faria sentir a queda de energia. Ou seja, o negócio prosperou, há muitas lojas que passaram a vender geradores. As que já vendiam estão expandindo.

Do jeito que vão as cousas, em breve a população vai dar um pé nos fundilhos da distribuidora de energia eléctrica e gerar sua própria energia, a um custo ambiental bastante alto. Os geradores quase sempre são equipados com motores antigos, de baixa eficiência e que não estão sujeitos às normas de emissões, que no Brasil já estão jurássicas. Claro, um bom preparador pode resolver o problema, mas a população não sabe disso do mesmo modo que não sabe que se pode construir até três carros por ano, sem precisar de pessoa jurídica. A poluição vai crescer assim como o preço da gasolina, por conta da demanda.

A manutenção da rede, hoje terceirizada, é de assustar. A maioria deles se parece com Homer Simpsom, tanto na aparência quanto na sutileza dos métodos. Vocês podem imaginar o que é isto em sistemas eléctricos? Todo e qualquer conserto dura pouco, pois é feito com o melhor que se pode comprar com o pior que a empresa paga. Mas verba pra publicidade eles têm. E que publicidades optimistas!

Mas o correcto seria mesmo cada casa gerar sua própria energia, mas isto infelizmente ainda é muito caro, se não quisermos queimar combustível. painéis photovoltaicos são caríssimos, praticamente dobrariam os custos de uma construção residencial. Na Europa existe uma política de incentivos, existem fábricas para a demanda, mão de obra para instalação e manutenção. Por aqui eu não penso em ver isto pelos próximos vinte anos, não tenho vocação pra Polyanna.

Outro risco é o contingente de péssimos-motoristas-que-se-acham-azes-do-volante que temos. Postes não são de aço, são de concreto do mais vagabundo, diga-se de passagem. A armação de vergalhões ajuda a atenuar as conseqüências dos acidentes, mas qualquer Fiat Uno vira um Panzer, a mais de cem por hora. E a fiação é toda aérea, tão aérea quanto a cabeça do eleitor. Não se aproveita para implementação de trólebus, prefeitura e empresas de ônibus estão se lixando, é só por ser mais barata de fazer mesmo.

Já soube de um urubu que causou uma queda de energia, por ter fechado o circuito em um poste. Virou um torrão de carvão, mas sozinho fez um estrago enorme.

O grande problema de Goiânia, no entanto, não é só o fornecimento de energia eléctrica. Ela foi toda pensada para um vigésimo da população de hoje. Tudo o que há na cidade tem um ar de precariedade e de improviso que entristece, pois o que foi feito na época de sua fundação é tão bem feito, que dura até hoje. O que foi feito até os anos 1950/60, e a especulação imobiliária (que é a menina dos olhos da prefeitura) não derrubou, atende perfeitamente às necessidades de quem precisa. Mas é só.

Eu gostaria muito de ver o Eixo Anhangüera servido por trólebus articulados. A pista é exclusiva para ônibus e os postes que a ladeiam suportam perfeitamente a fiação necessária. Mas se nem a demanda actual é atendida, imaginem centenas de motores eléctricos com cem ou mais quilowatts de potência funcionando ao mesmo tempo. Teríamos que escolher entre os trólebus andarem, ou a cidade funcionar. Como está, infelizmente não se pode fazer.

Um dia eu falo a respeito de geradores em um texto dedicado, mas é facto que Goiânia está para se tornar o maior mercado proporcional do país.

Enquanto a população ri banguelamente com o asfalto novo (só asfalto, sem alicerce, sem meio-fio, nada) a situação se torna mais precária, pois o Estado já deixou claro que não tem como fazer os investimentos maciços de que o setor necessita, e a iniciativa privada ainda hoje não mostrou a que veio.. Aliás, mostrou, veio chupar o bagaço até secar, porque a cobrança das tarifas tem rapidez de primeiro mundo. Claro que não é culpa só delas, nem só do governo, nem só da alta potência dos trólebus. Boa barte da culpa é do eleitor. Eu, tu, ele, nós, vós, eles. É nossa.