06/10/2016

Doutrinados




Ainda hoje há gente que pensa que Jesus é paraense. Ignorando que existem muitas cidades homônimas pelo mundo, e sem sequer conhecer o significado do nome em muitos casos, parecem não se incomodar com o contraste da paisagem desértica citada na bíblia, com a exuberância hídrica e florestal quase sensual que Belém do Pará exibe sem pudores.

Não bastasse isso, ainda ignoram que a bíblia nunca citou as nações indígenas. Os peixes enormes, alguns gigantescos abundantes no Amazonas, simplesmente teriam arrebentado as redes dos pescadores galileus, isso quando não os arrastasse para a morte certa no fundo do rio. Vejam bem, eu disse “rio”, quando o novo testamento cita claramente as águas salgadas de um mar. Os barcos deles jamais ficariam no lugar, esperando pelos peixes, como descrito nos textos, se estivessem em um rio.

Ainda há no nordeste uma comunidade que acredita que passando por uma fenda, por sob uma imensa pedra, seus pecados estariam automaticamente perdoados. As pessoas até se machucam, para passar pela fenda. Como chamam essa fenda? “Jerusalém”. Para eles, aquela pedra no meio do sertão de caatinga é a Jerusalém em que Jesus pregou. Mesmo com a bíblia se referindo a uma cidade próspera, não a um lugarejo com uma pedra. Acontece que o desejo de se livrar das conseqüências de seus actos fala mais alto do que a razão. Eles ficam cegos e afirmam a qualquer um, com firmeza marcial, que aquilo é Jerusalém!

Não saber diferenciar uma pedra de uma cidade, não impede que muitos deles consigam citar qualquer passagem bíblica de cor, mas mesmo assim não se pararem para pensar que as descrições por vezes preciosas, destoam completamente daquilo em que acreditam. Não dá para alegar ignorância, porque o que lêem é completamente diferente do que vêem. Não se trata de um conhecimento acadêmico ou uma notícia de um telejornal da madrugada, é algo que os alphabetizados, e muitos deles demonstram ser, podem conferir e conferem cotidianamente a contradição que ignoram.

Há um fator importante a ser considerado aqui. Não são pessoas que pegaram a bíblia e saíram interpretando como lhes convinha. Elas têm padres e pastores, que muitas vezes seguem como se fossem mensageiros divinos. Não raro lhes atribuindo poderes celestiais. Há uma conivência muito íntima, nem sempre sutil, nesta história. Ou seja, são comunidades que têm uma doutrina, mesmo com seus membros desconhecendo e/ou ignorando conhecimentos tão essenciais, que sem eles o indivíduo mergulha em um mundo de ilusões mais perigosas do que as que Alice enfrentou no País das Maravilhas.

Mesmo sendo ilusões completamente incompatíveis com a realidade, talvez por isso mesmo, eles as defendem como se fossem suas vidas; ou as vidas de suas mães. Rechaçam não raro com violência qualquer contestação, mandam ler a bíblia para aprender, mandam respeitar as obras de Deus, mandam obedecer e ponto final, ameaçam tornar-se inimigos do contestador, enfim, é muito fácil descambarem para um fanatismo similar ao do estado islâmico.

Não são grupos formados só por gente inculta, há muitos, mas muitos diplomados no meio deles, cujos títulos acadêmicos não impedem de incidirem no mesmo erro. Crêem cegamente que aquele caminho repleto de placas de “proibido molhar o lago” é o único, verdadeiro e compulsório para a salvação. Quem não o seguir não fica só fora da glória eterna do Senhor, fica explicitamente ameaçado de sofrer sanções de todo tipo, desde constrangimentos até execução. Sim, são todos pessoas boas, cumpridoras de seus deveres e tementes a Deus, mas “não matarás” fica facilmente relativizado quando alguém parece capaz de ameaçar todas as esperanças e todos os sonhos sobre que se deposita a estrutura de sua vida.

Esquecer que Cristo pregou o amor ao próximo, a fraternidade, a igualdade no trato sem distinções, que acolheu em vez de repreender ladrões e prostitutas, que mandou os discípulos respeitarem as cidades que não queriam se converter, nada disso é visto como contradição, mesmo com as instruções claras deixadas no novo testamento.

Entendem? São coisas básicas, sem as quais nenhum deles sequer poderia se dizer plenamente cristão, porque sem elas fica impossível distinguir uma parábola de uma história. Aliás, para piorar, a maioria das pessoas não sabe o que é uma parábola. Sem isso, não há como saber se o que se passou foi uma lição ou um relato, que têm aplicações muito diferentes na vida de uma pessoa. Mas como já disse, são membros de comunidades, com padres ou pastores os guiando, eles seguem uma doutrina. Mesmo com erros tão crassos, são doutrinados.

Acontece que para muitos “líderes” não importa se a pessoa conhece bem os fundamentos do que estiver seguindo. Na verdade para vários deles é importante que a pessoa não tenha mesmo consciência da barbaridade que está defendendo, basta ela acreditar que está fazendo o bem, que tudo o que fizer é do bem, que não há outro bem possível no mundo e que quem não seguir sua doutrina, é um ignorante ou um canalha; em ambos os casos passível de advertência e até punição.

Se lessem direito, estudando além do que seus líderes mandam, se abrissem seus olhos e corações à possibilidade de decepção para consigo mesmos, e conseqüente misericórdia própria, cairiam fora rapidinho da maioria absoluta das seitas, igrejas e agremiações, porque perceberiam que seus líderes nada querem além de exercer poder e usufruir dele em todas as suas possibilidades. Acontece que o poder, para quem não está e quase ninguém está preparado para ele, é uma droga insensibilizante que exige doses cada vez maiores e mais freqüentes a cada uso.

O seguidor não precisa saber o que realmente está defendendo, basta adorar seu dogma e hostilizar tudo o que estiver fora dele. O efeito manada do grupo ajuda muito a sustentar esse tipo de mentalidade.

Ninguém precisa saber sequer o básico para ser doutrinado, basta acreditar que fora do que estiver fazendo, tudo é mau e condenável.