19/06/2014

Ah, não é trabalho?!


  Professor não trabalha?

  Planejar aulas todos os dias, lidar com turmas muito heterogêneas, ter que absorver traumas e delinquências dos alunos, expor o conteúdo, explicar trocentas vezes, fazer e corrigir exercícios, ficar depois da aula para preencher diários, elaborar e corrigir provas, arcar com protestos e não raro agressões de alunos... Tudo isso não é trabalho?! Quer dizer que perder diariamente fios de cabelos, ganhar rugas precoces, ter a visão definhando rapidamente, não configura desgaste natural por trabalho? E ai do professor se conseguir um carrinho menos velho, né? Virou burguês, reclama de barriga cheia, é coxinha e outras ofensas que viraram moda.

  O que seria trabalho, então? Carregar tijolo e coçar o saco? É só isso? Trabalho é só cansar os músculos e arruinar com a coluna, ganhar uma miséria e sair pelo mundo a torturar a gramática? Tem que ser pobre e ignorante para ser trabalhador, é isso?

  Escritor não trabalha?

  Encontrar um tema para digitar, fazer correções imprevistas no corretor ortográfico, reler tudo de vez em quando, gerencias os leitores beta, procurar por referências, ver se não há trechos passíveis de processo por plágio, revisar o texto inteiro, amarrar cada trecho à trama e aos trechos posteriores, refazer um capítulo inteiro porque deu ou poderá dar algum problema sério, revisar o livro inteiro, registrar, mandar para a editora, ficar em cima para não haver atrasos, se descabelar por causa dos atrasos, revisar exemplares de pré venda, cuidar da distribuição, tentar evitar que não roubem o seu trabalho com pirataria, ser massacrado por quem não entendeu o livro ou simplesmente não gostou dele, ter uma parte da mídia fazendo propaganda contrária para ninguém ler sua obra... Tudo isso não é trabalho? Quer dizer que ter a visão corroída precocemente, não raro precisar se virar para bancar todo o processo, lidar com uma burocracia estúpida, conviver com a probabilidade de o livro ser um fracasso não importa o quanto seja bom, ver unibocitários de classe média passarem na sua frente com xerox da obra, tudo isso não é desgaste trabalhista?! E ai do autor se ele conseguir algum sucesso! Virou burguês, coxinha, vendido e outras acusações que infestam as mídias.

  O que seria trabalho então? Fincar a enxada na terra e se conformar em ser lavrador? Trabalho é só calejar as mãos e viver sem perspectivas, ganhar uma miséria e perpetuar preconceitos por ignorância? Tem que ser pobre e arrogo para ser trabalhador, é isso?

  Artista não trabalha?

  Lidar com a volubilidade da inspiração, acertar o tom, corrigir falhas constantes, lidar com a inveja prévia que ronda todo artista, montar um projecto factível, fazer cortes no original, enxertar elementos necessários e imprevistos, conseguir verba, montar o show, selecionar a equipe, gerenciar a equipe, gerenciar os egos da equipe, ensaiar, lidar com atrasos e faltas, fazer substituições, improvisar na hora do acto, ter que rezar para a bilheteria justificar pelo menos os custos, enfrentar grupos radicais que acusam sua obra de ser uma ameaça a sabe-se lá o que seja, administrar os efeitos de uma crítica negativa, continuar treinando e ensaiando dia e noite apesar de tudo isso... Não é trabalho?! Aturar humilhações, perder a visão e a paciência com burocracias crescentes, se estressar com chiliques de terceiros, chamar o público para seu show, ter a voz por um fio durante toda a temporada, ter que sorrir com TPM, com cólica, com azia, com dor de cabeça, com os nervos em frangalhos não é considerado trabalho? E ai do artista que conseguir sair do anonimato! É fresco, burguesão, vendedor de porcarias capitalistas.

  O que seria trabalho, então? Carregar caixas pesadas o dia inteiro e achar que isso é vida para pobre? Trabalho é só desgastar as juntas e ganhar uma corcunda, recebendo uma miséria e caçoar de quem tem compleição delicada? Tem que ser pobre e segregador para ser trabalhador, é isso?

  Então quem ganha seu dinheiro directo do público que atende, faz seu preço, trabalha mais com o intelecto do que com o corpo, tem sinais de pouca exposição ao sol, dá início a um empreendimento, enfrenta diariamente a máquina estatal, não tem férias nem folgas certas e não tem garantias trabalhistas não é trabalhador? Por quê? Quais os parâmetros? Pelo que já li e ouvi, nos últimos meses, essas pessoas sequer tem o direito de manifestar insatisfação, pela hipótese de gozarem de algum conforto, como se conseguir subir na vida fosse crime!

  Não me venham com essas caras, eu li e ouvi o "quem não se enquadra na minha visão não tem direito algum". Se for um empresário, então, ai dele! Até sofrer latrocínio esses indivíduos acham que merece! Porque empresário é tudo mau! Assim como artista é tudo fresco, escritor é tudo canastrão e professor é tudo vagabundo. Aliás, até eu sou mau caráter! As metralhadoras ideológicas giratórias estão acertando todos os alvos, inclusive os que não estavam na lista. Já que um lado é sempre bom e o outro é sempre mau, não interessa o mal que o bom cause nem o bem que o mau cause, um será sempre coitadinho perseguido e o outro sempre opressor perverso.

  O único parâmetro que me foi apresentado para isso, até o momento, é o ideológico. Às vezes com uma espessa cobertura de discurso prolixo e retórico, mas sempre caindo na simpatia ideológica. Agora passaram a ofender directamente ás pessoas, se fazendo imediatamente vítimas de quem foi ofendido. Todos repetindo fiel e radicalmente os discursos da fonte. Direita e esquerda estão tornando este país um alvo muito, mas muito fácil para qualquer um que queira invadir e tomar o poder. E cuidado, porque se nossos vizinhos pudessem, já o teriam feito há muito tempo. Então há alguém muito mais forte vigiando a região, e pode muito bem ser esse mais forte a tomar a iniciativa.

05/06/2014

Vai pôr o quê no lugar?


  Um psiquiatra experiente e calejado passa pelo consultório de um colega, durante uma de seus momentos peripatéticos. A porta escancarada o permitiu vê-lo mexendo em uma estrutura assaz delicada, quase instável. Ele espera que o outro tire as mãos, bate na porta e entra...

- O que está fazendo com esta personalidade?
- Hein? Oi! Estou retirando alguns elementos perniciosos.
- Quais?
- Alguns sem importância, que só servem de peso morto, mas principalmente a depressão.
- E o que vai colocar no lugar?
- Não sei ainda, mas tenho umas caixas de alegria sobrando.
- Não servem neste caso. Está vendo? A depressão é muito austera, tem formas muito bem definidas e encaixes muito precisos, a alegria se contrai e dilata bastante, logo causaria mais estragos dom que os resolvidos.

  Ele concorda. Pensa um pouco, pega o paquímetro, mede, verifica a rugosidade da superfície e se senta com a mão no queixo. Pede a ajuda do colega mais velho e vai consultar os manuais. Há uma série de combinações que podem substituir a depressão, mas nenhuma peça isolada o faz a contento. Isso o surpreende muito, não imaginava que a maldita se instalasse com tamanha eficiência. Devolve-a à personalidade, após lubrificar um pouco para reduzir o desgaste e vai estudar melhor o assunto.

  Vão à biblioteca, ver se os anais têm algo a dizer a respeito. A surpresa vem com algumas positivas estranhas. Todas relatam casos em que a retirada de uma patologia importante, tornou o paciente dependente de medicamentos para estabilizar seu comportamento. Parece um absurdo, mas a retirada pura e simples da depressão causou males maiores do que os que ela causava. Aprofundam as investigações e descobrem que os pacientes em questão eram bastante específicos, alguns profissionais descreveram que a depressão parecia ter sido cristalizada, tamanha a sua consistência...

- Não é o caso daquela personalidade em que você estava mexendo?
- Sim, é. "Cristalização"... Isso sugere então que aquele desvio ou patologia se tornou um traço da personalidade, já faz parte dela... Que absurdo!
- Por que? Só porque é o oposto de alegria, em princípio?
- A sociabilidade de uma pessoa deprimida fica muito prejudicada!
- A de uma pessoa eufórica também, mas as pessoas associam erroneamente a euforia à felicidade. Vou contar o caso de uma paciente que quase cometeu suicídio, só não o fez porque eu passava no local por acaso e evitei que se jogasse na frente de um trem. Eu acreditava que a tivesse curado, porque não dava mais os sinais claros de depressão que apresentava. Alguns dias depois ela retomou o tratamento, com o tempo eu percebi que esse padrão que adoptamos para definir a felicidade, é tão falso quanto uma nota de cinqüenta centavos. Essa paciente é uma pessoa introspectiva, que gosta muito de momentos de solidão e meditação. A depressão dela, por mais que causasse algumas dores e incomodasse a família, a ajudava a se isolar um pouco de um mundo cheio de gente, mas bem pobre em companhias. Sabe aqueles casos de filhinhos de papai que vivem em farras, boates, haves e estão eternamente insatisfeitos?
- Ô se sei! Já tive uma penca deles no meu divã! Que desperdício de cromossomos!
- Pois é. O que eles fazem por conta própria e na marra, é mais ou menos  que você tentava fazer há pouco, mas com critério científico. Você sabia que eu sou depressivo?
- Sério?! Não parece, você está sempre tão... Desculpe, estou estereotipando de novo!
- Eu entendo. A questão é que mesmo o oxigênio é altamente tóxico, provavelmente há vidas alienígenas que não sobreviveriam na nossa atmosphera. A diferença é que nós precisamos desse gás corrosivo e nos adaptamos pra sobreviver a ele.
- E mesmo assim ele produz radicais livres!
- Pois é, mas dependemos dele! O que fazer então? Cortar o oxigênio? A depressão é também uma defesa do subconsciente de pessoas que prezam os momentos de introspecção. Já ouviu falar daquela frase "Quero a companhia de quem respeita a minha solidão"? A maioria das pessoas não respeita. Se você vai a uma festa, por consideração ao homenageado, ninguém aceita te ver na varanda ou sentado à mesa. Querem te meter no meio da muvuca de qualquer jeito e, o que é pior, querem te ver se arreganhando todo para uma photo que vai parar inevitavelmente em redes sociais.
- Pra todo mundo ver como eles estão felizes.
- É, isso mesmo! Eu aprendi com essa paciente que o excesso de exposição pode desencadear a depressão, e que ela, como diz este artigo, pode se cristalizar em pouco tempo, sem que o paciente e nem mesmo o médico percebam.

  Faz-se uma pausa para meditação a respeito. Quando se dão conta, estão usufruindo justo da introspecção de que fala o artigo. Começam a reler e apontar alguns trechos mais interessantes. O mais velho se lembra de alguns detalhes importantes da paciente citada e dá uma sugestão...

- Que tal colocar uma capa de serenidade na depressão?
- Como? Já é tão justo no lugar onde está!
- Sim, mas serenidade é uma resina, ela seca com o tempo e forma uma película muito fina, que a maioria nem percebe, mas disfarça bem sintomas tidos como indesejáveis, mas que sustentam toda uma estrutura psicológica, como aquela depressão do seu paciente.
- Serenidade demora a formar liga.
- Demora. Demora, mas é eficaz. A depressão deixa de ser um incômodo e passa a ser uma bengala, que o paciente usa quando estiver muito difícil caminhar. Além do mais, já vimos que uma euforia não dá absolutamente nenhuma garantia que que o cidadão não vai estourar seus miolos. Ninguém é perfeito, não se pode exigir que uma pessoa seja alegre e expansiva o tempo todo! Se brincar, muita alegria por mais do que metade do tempo, gera mais depressão e aí sim, o suicídio é questão de um toque mal dado. Pega esse manual de instruções e vai ajustar a depressão daquela personalidade.
- E você?
- Eu? Eu já me acostumei com a minha, sei lidar com ela. Agora com licença, vou voltar à minha introspecção.

  Diz e volta ao caminho do jardim, enquanto o colega vai reestruturar aquela personalidade. E não é que a resina entrou direitinho em todos os cantos?