11/03/2023

O explorador tem feições humildes


COMPRA DE MIM, FREAGUÊS, EU SOU IGUAL A VOCÊ


             Uma moça no ônibus conversava com o motorista acerca dos vendedores de comida (alimento é outra coisa) e de seu oportunismo. Ouvi dela de salgados e pão de queijo vendidos a R$ 7,00 à porta do Hospital do Câncer, no Setor Universitário. Não se tratam de quitandas e salgados de qualidade premium, tampouco apresentados em embalagens bonitas e bem pensadas, são vendidos amontoados em vasilhas plásticas e apanhados com um pegador comum directo para a mão do comprador. Para vocês se situarem nos preços de Goiânia, ainda é possível comer uma boa coxinha por R$ 2,00. Ela salientava sua indignação acrescentando que os pacientes daquele hospital são pessoas de poucos recursos, que não podem empenhar em dois pães de queijo o dinheiro de uma refeição, mas os tais vendedores sabem que para pessoas do interior é muito difícil encontrar um bom restaurante em Goiânia. O Hospital do Câncer não é o único do gênero na cidade e não é só nesse tipo que esses espertalhões aparecem. Decerto que para um indivíduo os custos são mais altos, o que justificaria preços maiores, mas não a esse ponto.


            Decerto que nem todos fazem isso, a maioria cobra o preço que remunera seu trabalho, mas os citados pela moça do ônibus têm sua capacidade de sedução, às vezes fazendo o acompanhante humilde do paciente se sentir na obrigação de comprar dele. Parecer-se com o potencial freguês e ao mesmo tempo intimidá-lo, é uma das estratégias; o cidadão olha para os outros, mais bonitinhos e bem arrumados, sente-se deslocado e achando-se não merecedor, vai para as garras do explorador. É como algumas aranhas, que se disfarçam no ambiente para que a presa não hesite em se aproximar dela, só percebendo o perigo quando é tarde demais, às vezes até morrendo sem perceber o bote. Assim o coitado deixa nos bolsos do explorador o dinheiro de uma ou duas boas refeições, levando apenas algumas quitandas. A rigor, nada do que ele fez é ilegal, é como um parlamentar que aumenta o próprio salário; é antiético, e muito, mas não é ilegal.


            É como acontece nas rodoviárias, especialmente nas grandes, que aproveitam-se do temor do passageiro que não per perder o ônibus e prefere arcar com os custos de comer o mais próximo possível, para haver tempo hábil para correr se perder a hora e o ônibus chegar. E convenhamos, a fama dos salgadinhos de rodoviárias nunca foi das melhores. Também por conta dos aluguéis, isso migrou para os aeroportos, que ainda se apoiam na obsoleta imagem de passageiro rico da clientela para pagar numa empadinha todo o fardo de farinha. Eu já fui obrigado a recorrer a isso, e nem era das melhores empadas, mas eu não tinha escolha. Se o Brasil tivesse uma indústria ferroviária de respeito, dela também teríamos histórias assim, algo como salgados assados na fornalha da maria-fumaça e vendidos a preço de bistrô.


            Isso fez-me lembrar de um sujeito, no início dos anos 1990, que tinha uma verduraria no Vera Cruz. Por algum tempo ele era dos poucos no bairro, então se dava o luxo de algumas coisas que para o bom senso cruza a fronteira do absurdo. É comum um estabelecimento dar descontos para alimentos que estão próximos da data de validade, tanto para não desperdiçar quanto para reduzir ou evitar o prejuízo, mas também para fidelizar o consumidor com vantagens do tipo. Bem, esse verdureiro preferia jogar fora a dar descontos. Era na época um bairro de gente pobre, que contava as moedas para pagar uma passagem de ônibus, então cada Cruzado era importante e uma alface feia por um preço mais em conta era bem-vinda. Entretanto, o lixo era o destino de qualquer coisa que ele não pudesse vender pelo preço que queria. Claro, as pessoas então preferiam voltar mais tarde para casa e comprar as coisas em um supermercado do Centro ou de Campinas, carregar aquele peso em uma só mão no ônibus lotado e dar à família uma alimentação razoável pelo preço que aquele verdureiro jamais cogitava oferecer. Sim, ele quebrou, mas infelizmente ainda hoje há pessoas fazendo isso, pobre querendo explorar pobre enquanto as grandes empresas escolhem fidelizar o cliente.


            É uma mentalidade que se repete em todos os lugares onde a população tem poucas opções, o sujeito acha que está fazendo um favor àquelas pessoas e que elas têm obrigação de comprar dele pelo preço que ele determinar. Infelizmente ainda há pessoas que vestem essa carapuça apertada de devedor de quem deveria ser seu serviçal. O pequeno poder de controlar precariamente aquelas pessoas todas, acreditando que aquela posição efêmera vai durar pela vida inteira, é como a cachaça barata que eles vendem a preço de uísque importado. Não raro, pessoas assim fazem-se valer da proximidade com o freguês para garantir a fidelidade, não importam o atendimento ruim e os preços altos, ainda também para tentar sobreviver à chegada de empresas novas na região. Desconto? Não, no máximo um fiado que custará caro a quem pedir. O ponto fraco deles é que as pessoas se mudam e morrem, e quem vem depois vai se sentir mais à vontade nos estabelecimentos novos, que não tem aquela pessoalidade, mas também não tratam o cliente como empregado.


            De pouco adianta apontar o dedo para os engomadinhos de terno e gravata, se no seu cotidiano a pessoa endossa as práticas das quais se queixa, porque os exploradores do seu convívio vão engrossar seu coro, mas farão essencialmente as mesmas coisas de que o executivo bilionário é acusado. Ele se vale da semelhança para desviar as atenções e acusar o outro do que ele mesmo, guardadas as devidas proporções, faz.