27/12/2008

Sim

Amassou a latinha de coca cola como pôde (força bruta não é o seu forte) e jogou na lixeira. Pensou bastante na sua situação, mas não encontrou saída. Que fazer? Cada um a quem contou a história fez festa, não poderia contar com ninguém.
Andou a esmo pelo Setor Aeroporto, sem definir um destino. O sol inclemente não assusta mais do que a visão que se descortina. Nem vê que quase vira recheio de pastel, sob as rodas de um Scânia cheio de carros novos. O xingamento do motorista, seguido de um gracejo grosseiro, nem lhe impressionou os tímpanos.

Tem muito medo. Sempre olhou com desdém para os eventos relacionados, mas agora é consigo e não vê luz no fim do túnel. E se ver, na certa é uma locomotiva na contramão.

No fundo sabe que não é tão terrível assim. Tem uma prima cuja vida foi completamente desgraçada por uma incursão mal sucedida, levou anos para recomeçar a viver, mesmo assim nunca mais foi a mesma. Ficou taciturna, recolhida e demasiadamente sensível. Entretanto, sabe que a maioria supera até razoávelmente bem.

Fácil seguir este raciocínio, quando não é consigo. Facílimo dizê-lo aos outros. Mas agora é consigo. Não percebe que atravessa a Anhangüera e entra no Setor Oeste. Não percebe nem mesmo que está suando mais que kanangô na sauna, pois não teve cabeça para tirar a jaqueta e calças de couro. Não que sua motocicleta seja um bólido, é uma CB 450, mas é uma mulher prevenida, sabe bem que andar de shortinho e regata numa motocicleta pode deixar marcas horríveis por todo o corpo, ao menor esbarrão de um carro, e já sofreu vários. Pois mesmo essa previdência toda não a poupou do drama que vive agora.

Os cabelos estão completamente ensopados de suor e ela nem percebe que entrou no Bosque dos Buritis. Uma larga nuvem piedosa retarda o seu cozimento, mas ela nem se dá conta. Porque agora é com ela. Tem que tomar a decisão hoje.

Mal o corpo esfria e a chuva cai. Para quem conhece Goiânia, é fácil saber que calor em tempo húmido é prenúncio de tempestade e rios instantâneos. O zíper nem está de todo fechado, então o suor dá lugar á água da chuva, ensopando-a ainda mais.

Por um instante chega a se alegrar, mas logo o medo volta e continua a caminhar. O que disser hoje, seja o que for, mudará completamente os rumos de sua vida. Por mais que digam o contrário, não terá a liberdade de agora. Se acostumou a pegar sua CB, sem avisar nem mesmo à sua mãe, e empreender viagens pelo país inteiro, tomar banho de rio pelo caminho, usufruir do seu trabalho, correr nua à noite quando ninguém vê.

As horas não a comovem e não percebe a longa caminhada que faz. Em meio à enxurrada, no que lhe vale o couro da roupa, que apaga a maioria dos carros, ela segue indiferente. Começa a chorar enquanto anda. Mas o que está lhe acontecendo? Do que tem medo? Tudo muda o tempo todo, só os mortos não mudam, por isto apodrecem. Quando chega a hora de mudar, que se mude.

Nunca foi Cinderela, teve sua primeira experiência sexual aos doze anos, com um colega de sala do qual se despediam, pois mudou para Los Ângeles no dia seguinte. A iniciação ficou em segredo até hoje, mesmo porque se vira com seu próprio dinheiro (como entregadora, em sua bicicleta) desde aquela época e acha que não deve satisfações a ninguém. Mas agora deverá.

Estia. Ela não percebe. O sol, bem mais ameno, surge e reinicia o ciclo para a próxima tempestade. Só agora, já no Jardim Goiás, começa a sentir o cansaço. Não foi uma epopéia retilínea, vagou pelos Setores Oeste, Sul, Bueno, Marista, chegou ao Pedro Ludovico e vários outros, em uma caminhada tortuosa e arriscada, por sua desatenção ao caminho.

Com a fadiga vêm as dores dos quase cem quilômetros em condições adversas que cobriu. Agora emerge a mulherzinha que mesmo o maior dos machões tem dentro de si, quanto mais uma moça de compleição delicada, apesar de sua valentia descomunal. Não consegue dar um passo mais, volta a chorar, quer colo. Logo o tem. Alguém a pega nos braços e a leva para dentro da loja, desviando de Mercedes-Benz e Chryslers. Lhe tira a roupa de couro e logo vê um hábito arraigado da mulher, que há mais de quinze anos costuma andar com uma camiseta e mais nada sob as vestes de motoqueira. Aquele corpo o excita muito, pois foi a primeira cousa que lhe chamou atenção há dez anos, quando a conheceu. Procede os primeiros socorros e aguarda que desperte. As colegas de trabalho a reconheceram na hora, da janela da copa, o avisaram e se morderam de inveja; seus namorados/namoridos/maridos nunca as carregaram nos braços, na frente de toda a cidade, fosse qual fosse a situação. Ela começa a acordar e o vê, no que também começa a chorar. Ele nunca a viu chorando, é uma surpresa à qual não sabe responder, senão acolher e esperar.

A concessionária inteira, apesar de deixá-los à sós, espera pelo desfecho do episódio. Deixaram o saco de pancadas, digo, o estagiário espiando por uma fresta que a persiana não cobriu. Quando ela se refaz, ele faz. Alega que o tempo pedido está acabando e pergunta mais uma vez àquela moça agora tão fragilizada "Quer se casar comigo?". Meu D'us! Era tudo quanto mais temia. Aquela pergunta a faz tremer nas bases, mas não consegue sequer raciocinar e deter o "Sim, quero". O estagiário se afasta a uma distância segura e solta o berro, funcionalismo e clientela fazem a festa.

Não doeu. Sinceramente não doeu nem um pouco. Perdeu um pouco da liberdade, mas como é feliz! Ah, como é feliz sendo mãe, esposa e motoqueira!

13/12/2008

Só o trabalho produz

Mais uma crise mundial.


Não pensem os mais jovens e desavisados que a de 1929 foi a única antecessora desta. Ao longo da história, o capitalismo teve várias outras, menos abrangentes e mais fáceis de levar com a barriga. Quem não se lembra da quebra da Nasdac? E da última crise imobiliária japonesa? Pois foi justo o ramo imobiliário, mais propenso à especulação, que disparou o cão desse revólver. Fora outras pequenas crises locais, como pequenos tremores que anunciam o terremoto.


O que todas elas têm em comum? A mentira. Não foram blefes, pois blefa quem tem cacife, foram mentiras tão grandes, que as pessoas estavam comprando uma garagenzinha de minibuggy pelo preço de um sobrado de seis aposentos. Claro que logo alguém se deu conta que a garagenzinha não valia o mesmo que o sobrado. Esse alguém decidiu tirar o dinheiro dali e aconselhou um amigo a fazer o mesmo. Normal, corriqueiro. Mas certas pessoas têm muitos amigos, que têm muitos amigos, que têm muitos parentes. Quando estas pessoas decidiram que não adianta esperar cinqüenta anos (estaria vivo até lá?) para trocar sua garagenzinha por um sobrado, até porque o sobrado estaria custando o que vale um palácio, decidiram tirar o dinheiro e aconselhar os outros a fazerem o mesmo. Resultado: Os bancos imobiliários ficaram sem dinheiro até para pagar os salários internos. Por que? Porque eles apostaram que no futuro (que não existe) haveria dinheiro para pagar todo mundo, sem se preocupar de onde esse dinheiro sairia, típico de capitalistas hedonistas.


Ninguém estava trabalhando para cobrir os valores inflacionados pela especulação, pois quem trabalha com gosto desconfia do dinheiro mágico que eles prometem. Bem, se ninguém estava sustentando de verdade tudo aquilo, como aquilo tomou dimensões tamanhas que gerou tanto estrago? Resposta: Mentiras.


Assim como um publicitário, um vendedor deve convencer seu cliente de que está investindo o resultado de seu trabalho em algo que vale à pena. Fácil quando se trata de uma casa onde a família vai morar com conforto e segurança, ou um carro que dará liberdade e novas possibilidades ao comprador. Mas um especulador não vende producto ou serviços, ele vende dinheiro. É uma loteria mal disfarçada, onde não se vê o producto, mesmo os advogados mais tarimbados têm dificuldades em perceber os defeitos do que é oferecido.


Dinheiro é um documento que atesta que seu portador mereceu poder adquirir o equivalente ao valor representado. Não é a nota ou a moeda em si, mas a contribuição para terceiros que o trabalhador deu, que é convertida em valores materialmente tangíveis. Se fossem tentar converter materialmente tudo o que representa um dia de trabalho honesto, não haveria dinheiro para pagar a uma diarista, então escolheram o que seria o mais próximo possível do justo.


Acontece que a especulação não trabalha para gerar dinheiro, ela simplesmente promete dinheiro em troca de dinheiro; ela promete um moto perpétuo. O sujeito compra uma avestruz, fica em casa coçando as partes baixas e vai todo mês pegar uma parcela, após algum tempo todo o dinheiro investido estaria coberto pelas parcelas recebidas e o que viesse seria lucro. Pelo menos a avestruz bota ovos, troca de penas, et cétera. A especulação financeira nem isso dá.


Lembram daquela famigerada pirâmide financeira, que causou alvoroço nos anos 1980 e 1990? É basicamente o mesmo princípio. O incauto é levado a pensar que sempre haverá mais gente para pagar seus dividendos, sem levar em conta que a população mundial é limitada, e que a população mundial capaz de colaborar é ainda mais limitada, e que a população mundial que cai nessa bobagem é muitíssimo mais limitada, graças à Deus. Mas o entusiasmo do aplicador lhe turva a razão, ele faz planos e mais planos, sem imaginar que se isso realmente funcionasse, não haveria mais ninguém trabalhando, portanto ninguém para lhe prestar serviços nem produzir bens que pudesse comprar. A pirâmide foi, e infelizmente ainda é, uma versão mais primitiva da especulação financeira. Só dá realmente certo com os idealizadores e os poucos que se adiantam, e sempre por pouco tempo.


O mundo acabou. Novembro matou toda a civilização que teve início na Revolução Industrial. O capitalismo, se quer subsistir, deve se basear no trabalho e não no valor corroível do dinheiro fácil. Os valores cobrados deverão ser baseados nos custos e não na paixão despertada, esta uma das estratégias mais usadas para atrair investidores. Mas cedo ou tarde as pessoas perceberiam que o que foi oferecido não valia realmente o que era cobrado, ou os descontos e as liquidações jamais existiriam. Tanto melhor que tenha vindo tão rápido, os danos são menores. Aliás, para quem não sabe, a Inflação é uma das filhas prediletas da especulação financeira, com sua irmã Recessão.


O mundo que temos desde este Dezembro, embora ainda tenha os adereços de outrora, não é o mesmo. É novinho em folha, mas está cercado pela sujeira que o mundo velho deixou. Levaremos décadas para limpar tudo, mas nada de jogar o lixo lá fora, agora sabemos que o "lá fora" de nossa casa é o "aqui dentro" de outras pessoas. "Lá fora" não existe.


Quer investir seu dinheirinho para garantir uma velhice segura? Sem problemas. Mas não invista em dinheiro, invista em resultados. Gráphicos e planilhas não são resultados, mesmo o teu estrato bancário pode não ser um resultado. Quem garante que o banco tem liquidez para te pagar o que demonstra? Quer investir onde? Coca Cola? Chevrolet? Agrale? Sony? a barraquinha de cachorro quente da Marlene? Tanto faz, desde que os resultados exigidos não se limitem ao volume de vendas ou ao faturamento, muito menos à bajulação da imprensa em páginas centrais de revistas e espaços de televisão. Tudo isso pode ser facilmente maquiado. Escolha um grupo ou mesmo uma marca só, e trabalhe por ela. Seja um vendedor de sua imagem, ouça as reclamações e sugestões do consumidor, informe-se e repasse a informação, contribua e exija resultados, vá às sedes administrativas e productivas, faça de teu investimento um compromisso e não uma muleta. Ei, a empresa agora é sua também. Trabalhe por ela.


Da mesma forma as firmas terão que mudar muito. Talvez a noção de concorrência que temos deva ser sepultada, pois a causa mortis já foi descoberta. Deixar a concorrência para o comércio, longe da criação e dos testes pode ser o mais racional. Hoje em dia é normal gastar setenta milhões de dólares para lançar um automóvel totalmente novo. Se o valor for parcialmente rateado por seis grande empresas, digamos, desenvolverem uma estrutura básica flexível o bastante para dar origem a vários modelos diferentes, cada uma investe quinze ou desesseis milhões e te oferece um carro bem melhor e mais barato. O resto, então sim, é com as concessionárias. Cada uma oferece o estilo e as configurações típicas da marca, o consumidor fica com a garantia de que terá peças importantes de reposição a preços mais baixos e muito mais fáceis de encontrar. Isto, em muito menor proporção, já é feito. Fiat e GM do Brasil usam o mesmo motor 1.8, que ficou famoso pelo baixo custo de manutenção, baixo a ponto de compensar o consumo. Por que não rodas, pneus, bancos, suspensão, retrovisores, limpadores, trancas?


Cobrar o justo enriquece, não rápido demais, mas enriquece. Enriquecer rápido demais é o que move os ladrões profissionais. Aliás, dinheiro sujo é facilmente lavado na especulação.


Não devemos confiar no mercado, o mercado não existe. O que existe é o grupo de consumidores, que entram e saem do bando a todo momento, e os bandos são irracionais, agem pelo simples instinto de auto preservação, que muitas vezes lhes precipita a morte. Por isso mesmo o "mercado" não é capaz de se auto regular, por isso mesmo vive pedindo ajuda dos Estados (ou seja, o povo, o que trabalha) para se livrar das enrascadas em que se meteu. Mercado auto regulador é um cavalo comandando o coche.


Deve haver alguém do outro lado do monitor, se perguntando porque eu ilustrei o texto com um Fusca. Eu gosto do Fusca, há uma penca de motivos dos quais cito dois: é um carro honesto e representa melhor do que um trator o trabalho. As propagandas dele jamais mostraram absolutamente nada além dele, e foram mais de vinte milhões de unidades sem nenhuma evolução significativa.

02/12/2008

Vaca digitando

Sou eu. Em termos de internet eu pasto e solto bolotas de esterco, sou uma negação.
Há um tempo a New me ofereceu um tal selo de qualidade, este ao lado. Só que este homo analogicus não sabia o que fazer com ele, não sabia nem publicar imagens no blog. Ainda hoje não entendi essa conversa de htlm, ou seria hmlt? Ah, não sei, só sei que não sei e continuarei a não saber, enquanto não tiver disponibilidade de tempo contínuo para isto.

Há bem menos tempo, a Luna também me ofereceu o tal selo de qualidade. Ainda estava concluindo a última parte do drama em três actos. Demorei para saber o que fazer com aquilo. Salvei no meu computador. Imaginem se tenho pressa de colocar vídeos e sons aqui... uhn!

Bicho, eu ainda não aprendi a colocar link! E vou demorar uma data ainda para tanto. Um bokomoko de estragar o coreto. Sei fazê-lo aqui, destro do texto, mas nas laterais do papel-de-parede ainda me soa misterioso.

Por isso mesmo, patota, peço compreensão. Meu primeiro contacto com computadores foi na época do 8008, quando ainda se usava Cobol purinho, e eu não fiz curso, que na época era caro pra chuchu. Depois fiquei uns anos sem ter acesso á máquina, aprendi já com o Windows 95 em um 486 DX. Depois foram mais uns anos sem acesso à máquina, quando a internet entrou sorrateira pela porta dos fundos. Quando me dei conta, já haviam o Google e o You Tube, os quais eu nem fazia idéia do que eram. O primeiro uso como página inicial, mas o segundo eu raramente acesso até hoje.

Eu ainda tenho minha Olivetti Studio 45 made in México, verde claro. Não conhece? , broto, cê parece que não sei! É uma máquina de escrever portátil, um baratinho que qualquer escritório tinha até meados dos anos 1980. É sumpimpa, só não acessa internet e não permite editar o texto escrito. Mas não dá pau e não tem vírus. Do balacobaco.

Bom, para não delongar e não entregar de graça a minha idade, homenageio a professora Fabiana, o miguxo Flávio e a Ana Chiclete. Só três, que eu peneirei muito. Alguns dos melhores já foram desactivados.

Agora chega. Vou pensar num texto que não seja sobre internet.

27/11/2008

Drama; 3 de 3

Todo fim de tarde, Esther vai à creche, ver no que pode ajudar. Sábado é a manhã inteira, com os filhos e o marido, queiram aqueles ou não. Laura não tem tamanha disponibilidade de tempo, mas sempre que pode está lá também, com Angus. O rapaz se sente meio responsável pelas crianças, embora o corpo esteja debilitado, a voz ainda vibra forte e alerta a qualquer risco. Virou "Tio Angus"...

- Tio? Eu?! Mas nem irmão eu tenho!

O bom humor está intacto. Laura já se reacostumou à sua boa aparência e o filho retribui. São cinco anos de sossego relativo, que Angus aproveitou para aprender hebraico com os novos amigos, o que não só preservou como aumentou sensivelmente sua lucidez.

A lua vai de balsâmica para nova nesta noite. De dentro da Caravan, mãe e filho vêem aquele Maverick fritando pneu assim que a luz verde acende. No som, toca "A Song For You". Rapidamente o bólido entra na Marginal Botafogo e some, D'us sabe a que velocidade.

Angus não acorda. Está quente, respirando, mas é uma respiração fraca. Leandro chega imediatamente, já com uma ambulância e o leva ao hospital. São horas de observação, com a pele empalidecendo e uma mãe se segurando para não desabar outra vez. Os dias correm serelepes e o quadro não melhora, mas Angus consegue acordar. Olhos fundos, voz fraca, mas mente lúcida e consciente do que se passa...

- Pelas barbas de Moisés! Não foi pra casa ainda?

Laura acorda de repente e cerca o filho. São quatro horas da manhã de sábado, na qual uma lua nova priva o mundo de sua luz. Leandro chega o quanto antes e ajuda a convencê-la a ir para casa e descansar...

- Alguma vez menti pra você? Então vai pra casa, toma... Toma um banho e descansa... Prometo que volto também, assim que puder.

Após muita insistência e diplomacia, ela vai, já tendo instruído todo o corpo de enfermagem dos cuidados a serem dispensados ao filho.

Dorme pesadamente. Sonha com uma menina dentro de uma grande caixa de bombons, debaixo da árvore de natal. O sono fez o efeito esperado e ela está nova em folha. Não tem outro pensamento que não o de ir ver Angus. Pelo caminho, vê aquele mesmo Maverick em uma loja de usados, à venda. Sabe o que dar de natal ao filho. Nisto se lembra se sua situação financeira razoavelmente confortável. Imagina o que as mães das crianças da creche passam, quando seus rebentos adoecem e precisam ser humilhadas em filas, guichês e corredores infindáveis de hospitais públicos.

Vê uma multidão no apartamento do filho, logo à frente vê Leandro desolado e se desespera. O pior aconteceu e ela não vê o tempo passar em seus prantos. Karen canta "Ave Maria".

Três anos e só as crianças da creche mantém a sanidade mental de Laura. Precisa delas muito mais que elas de si. Sua nova irmã se chama Esther, cuja fibra e experiência, a despeito da idade, amparam a órfã-de-filho em todos os momentos. É sua convidada constante para um chá, um jantar, às vezes um dia inteiro em uma casa íntegra. Mesmo cambaleando, Laura se mantém andando.

Certo dia, em vez da Caravan (que ficou na garagem desta vez) ela chega dirigindo aquele Maverick. Viu a lua crescente ainda bem cedo e se animou. Era de Maverick que Angus gostava? Então vai estudar tudo o que puder do carro, não pensou duas vezes antes de comprar aquele, cujo bom gosto da customização distanciou quem geralmente gosta de "tunning". A primeira cousa que aprendeu foi não subestimar um V8, principalmente com a preparação de seus 450cv já a 5000rpm. É carro manso, para as ruas, nem por isto menos perigoso em mãos leigas, como as dela. Os amigos gostam da novidade, sinal de que ela está superando.

Esther, uma cabalista que não se rendeu ao "show da cabala das estrelas de Hollywood", com seu modismo que mais detrata do que promove as tradições de seus ancestrais, chama Laura após as felicitações pelo carro novo...

- Ele te disse que voltaria? Você viu uma menina numa caixa de bombom? D'us é misericordioso ao infinito. Apareceu uma recém-nascida numa caixa em forma de coração, hoje cedo, à nossa porta.

Ela vai ver. Angus nunca mentiu, não foi desta vez que faltou com a palavra. A mesma garra que teve para cuidar de Angus, usa agora para adoptar Ceridween. Ela fez por merecer.

E a vida continua, sempre.

21/11/2008

Drama; 2 de 3


Angus espera a mãe na sala de espera. Até imagina o que ela tanto conversa com o médico, mas fica agoniado com o passar de quase uma hora. A bengala já é sua companheira de todas as horas. Não tem mais tremores, mas a coordenação motora tornou-se pífia. Consegue se alimentar, tomar banho, arrumar a própria cama, mas a caligraphia bonita e bem desenhada é saudade. Mal consegue escrever.

Laura sai do consultório com o semblante duro, pesado, chama o filho e diz para não fazer perguntas. Na verdade está segurando o choro. Deixa-o com a fisioterapeuta e vai ao pátio interno, desabafar. Uma vizinha com a qual pouco fala a reconhece. Nota claramente a dor no rosto da viúva, que aos poucos chora, passando de lágrimas furtivas ao choro mudo e desesperado. Esther sabe que Angus tem problemas de saúde, mas nunca teve grandes intimidades com aquela mulher em especial, só soube pela amiga em comum Mirtes. Deixa as crianças com as outras voluntárias e vai ter, seu coração de mãe judia tem certeza de que foi algo que o médico disse. Médicos deveriam ter bônus e ônus duplos, para o céu ou para o inferno, pensa. A fortaleza aparente de Laura desmorona rapidamente, ela nem percebe que está sendo amparada, só repetindo quase aphônicamente "vou perder meu filho". Esther também começa a chorar.

Passado o aguaceiro, Esther traz o médico pelo colarinho, literalmente. Deu um sopapo na secretária e em um segurança, mas é cousa à qual está acostumada a fazer pelos próprios filhos. O faz ver o que sua frieza "profissional" causou. "Lamento, mas é quase certo que ele vai morrer logo" é trocado por palavras mais amenas, ainda que na marra, enquanto Leandro é avisado do erro crasso do colega, e quase põe o hospital abaixo. Concorda com a judia que filho é assunto a ser tratado com luvas de pelica, principalmente em casos tão graves. A própria trata de preparar a outra mãe zelosa como acha que deve ser...

- Ouça, talvez o seu anjo tenha que voltar para o céu mais cedo. Aquele paspalho irresponsável não deixou claro que isto é uma possibilidade, não uma certeza. (suspiro) Cuide dele, que nosso bom D'us não pede mais do que isso, mas evite ficar triste e desarrumada. Ele vai ficar tão ou mais triste do que você, vai achar que está atrapalhando e que é o culpado pela sua tristeza. Tô vendo que você é mãe de verdade, que coloca o seu filho à frente de tudo, então faça mais isto por ele. Eu já te vi em épocas em que se arrumava, perdoe a indiscrição, volte a fazê-lo. Ele vai ficar feliz. Ele não merece isso?

Laura confirma com a cabeça. Mas por agora continua precisando do amparo, após o quê é auxiliada na melhoria da aparência. Já que está cor de rosa de tanto chorar e soluçar, lhe empresta uma fita branca para colocar na cabeça, prendendo só os cabelos rentes ao couro, dá um laço muito discreto, um baton cereja-claro e ajeita-lhe a camisa. Agradece e vai buscar Angus, que já é hora. Esther estava certa, os olhos do garoto brilham ao ver a mãe mais leve e bem arrumada.

A lua mingua para balsâmica, neste início de noite, mas desta vez a televisão foi desligada. Laura acompanha o filho àquele treco esquisito com o qual nunca teve intimidades, o computador, manipulando aquela cousa estrambólica com a qual nunca simpatizou, a internet. Só os usa (ou usava até agora) para assuntos sérios, estritamente profissionais ou casos de urgência. Ele lhe mostra seu espaço pessoal na rede, dedicado aos Carpenters. Nunca soube que ele tinha esse gosto para música, sempre esteve ocupada demais tentando dar-lhe um futuro melhor. Na rádio virtual que montou, toca "Crescent Noon". Vê também que ele tem muitos amigos virtuais com espaços isotemáticos. Confessa-lhe...

- Pois o seu pai, no nosso aniversário de namoro, me levou pra ver eles, quando estiveram no Brasil. Conheci os dois. Não sabia que ainda havia gente que gosta deles, faz tanto tempo!

Vai ao seu quarto, pega uma caixa sobre o maleiro e leva ao filho. Lhe dá de presente. Ele abre e o coração dispara, o que poderia ser perigoso se estivesse só. Laura Smaradigma, sua mãe, em várias photografias com seus ídolos. Sabe que é sua mãe, mas não reconhece aquela Laura risonha e marota que mostra língua ao namorado photógrapho, ao lado de Karen Anne, que também faz a careta. Os golpes da vida e a falha dos que deveriam ajudá-la, a encrudeceram pouco a pouco, quase sem perceber. Escaneia imediatamente, publica várias das muitas poses e dá à mãe a senha e os macetes da página. As imagens fazem sucesso rapidamente e ela fica famosa entre os fãs dos irmãos. Muito bonita é o adjetivo mais brando que Laura recebe dos internautas.

Com a aparência restaurada, os galanteadores de cinqüenta centavos logo começam a receber sopapos da mulher, que passa a ajudar Esther e seus filhos no voluntariado, na creche do hospital. Não só pela mudança de atitude, mas a lida com aqueles rebentos a rejuvenesce. Angus ajuda com sua serenidade, pois fisicamente já está incapacitado para tanto.

Continua...

13/11/2008

Drama; 1 de 3

Laura leva o filho para casa. O garoto se cansou muito, no meio do recreio já não agüentava dar um passo e os professores acharam por bem que não voltasse a pé. A lua cheia já começa a minguar em último quarto, neste fim de tarde, quando a boa Caravan entra na garagem. Para quê trocar de carro, se seu mecânico de confiança conseguiu enfiar uma injeção electrônica no GM151? Não vai gastar a poupança à toa.

Angus volta a se cansar, desta vez com mais intensidade, e desta vez desmaia. Acorda à noite, no hospital, com suspeitas de esclerose...

- Meu filho tem sete anos!

- É só uma especulação, mas o eletroencefalograma não deixa muita margem, e pegamos os sintomas em plena actividade.

O neurologista se esmera em explicar que não existe doença exclusivista, que ele mesmo já teve câncer de mama.

Uma semana depois, Angus tem um ataque, consegue gritar pela mãe, mas cai e se fere no meio-fio de granito. O diagnóstico é confirmado por dois outros médicos.

Laura é uma mulher forte, viu o pai ser levado, sem acusação formal, pela repressão e nunca mais o viu. Sustentou a mãe e a irmã caçula até se ver sozinha no mundo. Depois pela segunda vez, quando viu o marido esmagado entre um ônibus e um poste. O motorista fugiu e nunca foi encontrado. Suportou tudo para criar o filho, o fez aprender as lidas domésticas desde cedo, disciplina-o como acha que deve. Ela agüenta a notícia, explica ao menino da forma mais diplomática que pode e avisa que terá que estudar em casa, de agora em diante. Sorte? Não. Laura nunca lhe passou a mão na cabeça e se mostra uma professora rigorosa.

Vai um ano sem novos incidentes, com remédios relativamente caros. Angus monta um Maverick de papel, que pegou na internet. Modificou a pintura original para fazer um bólido. Diz que pegará uma carcaça no ferro-velho e montará um igual, quando crescer.

Angus acorda de um mês de coma. O dono da drogaria já está preso, por venda de medicamento falsificado, mas as seqüelas no sistema nervoso são irreversíveis. O garoto perdeu quase um terço da visão e aquele décimo oitavo Maverick foi o último que ele conseguiu montar sem ajuda. Precisará de uma bengala, de vez em quando. Laura se mostra firme. Impressiona a todos pela fortaleza e pela serenidade, mas por dentro se contorce de preocupação. Seu filho não terá uma adolescência normal. Receitam mais medicamentos. No caminho de volta, Angus vê um Maverick 302 exactamente igual ao último que fez. Chama a atenção da mãe para o que viu, consegue assim distraí-la de seu mundo denso. Ela sabe dispensar carinho, mas só o faz para quem julga que realmente precisa. Seu filho, no entanto, se comporta como um homem, ao menos aparentemente.

Segue mais um ano sem qualquer ocorrência. A única anomalia é Angus estar dois anos adiantado em relação à antiga turma, que se compadece...

- E a gente pensando que cê tava de boa, mano!

- "Boa" o cacete! Eu estudo o dia todo, faço exercícios o dia todo, levo bronca o dia todo. Fora que ela nunca mais me deixou comer bobagem.

Eles o confortam. Infância sem comer bobagem, para eles, não é infância. Findada a visita, Laura o põe para estudar tudo o que as horas de lazer inesperadas não permitiram. Quer mantê-lo o mais lúcido possível pelo maior tempo possível. Seu neurologista afirmou que todos os pacientes que lêem e estudam respondem melhor ao tratamento. No rádio toca "Era Bello Il Mio Ragazzo". Desliga-o na hora, já começava a marejar os olhos.

Aos poucos se torna comum ver o filho usando a bengala, aos poucos se torna comum ele não conseguir andar mais que devagar, logo o médico desconfia da gravidade dessa doença e pede exames novos, com tecnologias novas e se põe a estudar descobertas novas. Viu aquele menino nascer e a última cousa que quer é enterrá-lo. Laura aceita de bom grado a solidariedade dos próximos, mas rejeita até com rispidez as manifestações de piedade. O rádio de alguém, no Vaca Brava, toca "Lady Laura". Aperta mais a mão do filho, mas não muito, ele ficou sensível à dor.

A polícia interfere para que Laura não mate um dos médicos que deram o diagnóstico. Descobriram violações no tomógrapho que aumentam muito as chances de acusar doenças graves, estranharam ele ter trocado de carro tão depressa. Um fiscal da Vigilância Sanitária diz que é comum, como o caso, médicos receberem comissão pela receita de drogas controladas...

- Seu Sérgio, meu filho tomou medicamento para esclerose por dois anos! Será que tem jeito de reverter o quadro dele, se parar de tomar aquilo?

O pharmacêutico de formação pensa um pouco, lembra do trabalho de formatura e conclui, com o médico da família, que foi justo isto que degenerou a situação do rapazote e, lamentam, pode ser irreversível. Dias depois uma nova tomographia revela os danos graves. Mas ela não vai ficar parada, vendo a banda passar. Manda um e-mail para a irmã, hoje em Berlim, para que informe de qualquer novidade na área, e recebe uma reprimenda. A caçula a espinafra por ter escondido o caso, soube por jornais do escândalo do médico, mas nunca pensou que o sobrinho estivesse doente. Manda no dia seguinte artigos que são entregues ao único médico em quem Laura confia. A luta dá frutos e o quadro estabiliza.

Os estudos? Os amigos de Angus voltam a consolar o garoto...

- Putz quiparalho! Tua mãe é lôca, mano!

- Isso é coisa pra gente ver no vestiba!

Laura surge por trás, com o lanche e sugere que, em vez de resmungar, que aproveitem o adiantamento do amigo para se darem bem na escola. Eles acatam a idéia. Na manhã seguinte, Leandro dá uma notícia preocupante. Nem ele, nem nenhum dos colegas do mundo inteiro que consultou, sabe o que Angus tem. A medicação errada fez uma confusão de sintoma tão grande, que ninguém mais arrisca dizer que tratamento deve ser seguido. Além de áreas internas e importantes demais estarem envolvidas na lesão. Por enquanto, continuarão com a medicação e as actividades de praxe, mas alerta para que não subestime o menor sintoma, qualquer tremedeira, a mínima formigação, e mantenha Angus longe de lâminas e pontas.

Graças à mãe firme e disciplinadora, consegue chegar à puberdade sem maiores revezes, contando até com a presença da tia que nunca tinha visto na vida. A coleção de Mavericks de papel impressiona, não pela quantidade, mas pela personalização e pela qualidade da montagem, hoje com co-autoria da mãe. Aliás, se perguntam se um bom padrasto não seria de ajuda para ela cuidar do filho...

- Mas que idéia mais estapafúrdia!
- Por que? Se eu te levo comigo pra Alemanha, tu não fica solteira nem que queira! Já se olhou no espelho? Já viu o pitéu que tu és?
Não se acha. Nem se veste como uma mulher bonita, na verdade nem quer ser, quer manter os homens longe para se dedicar ao filho sem ser perturbada.
Continua...

25/10/2008

Nova balzaquiana

Beleza aos vinte é um presente, aos quarenta é mérito próprio.
Mulher madura, com uma vida inteira ainda pela frente. Reescalonarei Balzac, que na época admirava as mulheres que chegavam à maturidade com (pelo menos) um pouco do viço de sua juventude. Pois hoje ele elegeria a mulher de quarenta a cinqüenta anos.

Uma mulher assim é uma obra de arte biológica, uma ode à criação divina. Qualquer uma que chega aos quarenta anos sem ter se azedado, é uma vencedora, porque o machismo misógino ainda impõe a burrice de que se deve destruir o que se ama. Uma mulher que chega aos quarenta anos e é reconhecida de pronto por uma amiga de adolescência, é uma gloriosa, porque muitas se entregam cedo aos excessos que se convertem rapidamente em vícios, apagando os traços mais sutis de sua juventude, que ainda não deveria ter terminado.

Uma mulher que chega aos quarenta anos com a leveza que tem as de vinte e cinco, ah, esta é uma diva, uma deidade que deve ser venerada e respeitada, para quem o trânsito deve parar imediatamente, ainda que o sinal esteja verde.

Acreditem, há muitas assim. Não citarei Nicole Kidman, que é covardia. Desculpem, já citei, mas ela é um exemplo escancarado de uma multidão anônima que as câmeras ignoram. Tenho olhos já treinados e refinados, vejo muitas balzaquianas de quarenta pelas ruas, entretidas em suas leituras dentro dos ônibus, ignoradas por conta de seus trajes discretos e insuspeitos. Pois as observo com a devida reverência e discrição. São verdadeiras beldades que ainda têm o bônus da bagagem de vida, do conteúdo de suas palavras, da sabedoria para agir ou não agir, ainda assim conservando os traços e a fluidez da flor de suas eras. As quarentonas de hoje são brotos exalando perfumes primaveris.

As garotas de trinta agora são isto mesmo: garotas. Algumas ainda têm espinhas, seus rostos ainda são abaulados e seus olhos ainda são arredondados. Inconteste prova da evolução da espécie... pelo menos física. As de vinte acabaram de sair da adolescência para a emancipação recém-adquirida.

A mulher de quarenta exubera sua beleza, mas já não tem o desespero de cumprir sua quota de beijos em estranhos da noite. Arrasta o ar por onde passa, em seus passos firmes e elegantes, sem os requebrados forçados e trotados das adolescentes mais atrevidas. Sabe rir, sabe gargalhar, sabe quando e o quanto cabe um e outro.

Já viram o corpo de uma quarentona dos dias vigentes? A mulher que hoje tem de quarenta e cinqüenta anos teve que ralar na vida, não teve essas facilidades excessivas de "delivery", controle remoto para abrir o armário, fast-fat-food e toda uma quinquilharia que, na sua tenra juventude, simplesmente não existia. Elas iam da cozinha à sala para atender ao telephone, subiam escadas, giravam manivelas para descer o vidro do carro, iam ao restaurante para comer sem esquentar a barriga. A mulher de quarenta foi lapidada, sua beleza não é uma dádiva da idade nem um presente da indústria cosmética, que na época era só cosmética mesmo. Sua beleza é um mérito. É muito comum encontrar mães em muito melhor forma física do que suas filhas e, pasmem os homens desatentos que só enxergam partes, é muito comum ver mulheres maduras muito mais belas e bem conservadas que seus jovens rebentos. Os excessos de sua juventude são nada, se comparados à destruição suicida que a garotada venera e chama de "atitude"... Aham, tá. Vamos ver que atitude têm no primeiro acidente grave de trânsito.

Rendamos honras às musas que ora povoam, incógnitas, um mundo carente de inspiração. Beijemos suas mãos e as convidemos para uma noite, não apenas para uma cama, que elas são muito mais do que isto.

Há anos venho insistindo para o meu alfaiate começar a fazer roupas femininas, alego que vestidos são basicamente camisas esticadas, e saias são basicamente calças de uma perna só. pois nesta semana foi uma nova-balzaquiana, que com um modelito pronto para copiar, o convenceu a fazê-lo. Uma mulher de baixa estatura, mas bela, charmosa, elegante em seu estilo sessentista, que ainda tinha uma programação para resolver os negócios da família. Rugas? Sim, havia, eu disse que não deveria haver? A vantagem nesta bela senhora, é que as poucas e discretas rugas, em vez de estragar, emolduram seus traços e deixam ver perfeitamente a menina que ela já foi, e pelo visto ainda habita-lhe a alma.

17/10/2008

Tristeza assumida




Caminhava à luz da Lua Cheia, sem preocupações e sem ansiedades. Feliz. Um pouco triste, é certo, mas tristeza não é sinônimo de infelicidade.


Durante a infância foi uma criança alegre e despreocupada com a vida, afinal só teria sua formação cerebral (e portanto sua ligação com o corpo) completa pelos seis ou sete anos. brincava, corria, caia, se machucava, levantava e corria de novo. Foi uma criança normal. Se é que uma criança pode ser chamada de normal.


Com o passar dos anos foi tomando uma sobriedade intensa, muito maior do que os adultos achavam salutar para a sua idade. Se há algo que detesta até hoje, é compararem com qualquer outra pessoa, ainda que para a melhor.


Levaram a criança triste (como ficou conhecida na rua) para um psiquiatra com mais títulos e congressos do que células no corpo. De pronto diagnosticou esquizofrenia, sem nem ter tido muita conversa com a parte mais interessada. Passou medicamentos e aconselhou uma vigília rígida sobre seu comportamento.


As drogas acabaram dando, pois toda droga dá, efeitos colaterais. Até hoje tem os cabelos fragilizados por isso.


A vigilância foi um factor de irritação profunda, principalmente quando descobriu uma câmera escondida no banheiro. Em poucos meses viram suas imagens em um site de pedofilia. Os técnicos que instalaram a parafernália ganharam bem pelas imagens de sua mais privativa intimidade.


Um dia decidiu vestir a fantasia de adolescente. Seriam só seis anos. Seis anos e poderia sair de casa, sem dar satisfações, passar a agir à sua maneira e não ter que agüentar as cobranças para que exibisse alegria.


Ainda não era aquela cousa caricata dos adolescentes, mas já parecia á família, mais normal. Quanto sofrimento! Logo percebeu que ninguém notava a diferença entre um sorriso e uma exibição de dentes.


O passar dos anos foi penoso. Toda aquela gente superficial e vazia lhe dava náuseas. Todo aquele discursos pseudointelectual fazia um corte nos pulsos parecer razoável. Não se poderia esperar demais de gente com a sua idade, mas esperava muito mais do que isto de sua própria pessoa.


Conheceu cantores e grupos de antes de seu nascimento. Músicas tristes, melancólicas até, mas alguma muito animadas. Passou a saborear as obras ás escondidas, para não ter mais que dar satisfações a um psiquiatra com cara de tarado. Uma de suas preferidas passou a ser "Israel" nos vocais do Bee Gees. Aos poucos as músicas célticas, medievais, as antigas de Roberto e Erasmo, et cétera. Sentia-se bem. Ficava triste, sim, mas sentia-se muitíssimo bem. Conseguia se equilibrar e colocar as idéias em ordem.


Enquanto os "amigos" se casavam cedo, não raro à contragosto, se envolviam em barbáries jamais vistas por seus pais, se desencaminhavam completamente, sua tristeza lhe garantia a serenidade necessária aos seus propósitos. De campeonato de transa por noite a campanha pela obrigatoriedade da castidade, seus "amigos" se enveredaram por todo tipo de caminho, mas sempre em alas muito radicais, quase sempre irracionalmente radicais.


Decidiu estudar psicologia por conta própria, para saber se o que tinha era realmente nocivo. Acabou se envolvendo mais do que imaginava, logo passou a tomar "drogas" mais pesadas, como philosophia, arquetipismo, línguas mortas e outras.


Sua conclusão foi tão simples que se surpreendeu. A tristeza não é de todo ruim. em níveis baixos, como o seu, pode ser chamada de introspecção. Essa introspecção protegia sua sensibilidade aguçada de um mundo que lhe parecia ser muito grosseiro e agressivo, lhe permitiu viver até então sem se molestar, mantendo o respeito próprio.


Os estudos voluntários acabaram por ter um efeito colateral, pois toda "droga" tem. Não viu a passagem dos anos. Os seis anos se foram como se tivessem sido seis meses. Apesar da sobriedade intensa, da imensa antipatia para com quase tudo o que as pessoas louvam nesta época, era feliz. Na véspera de completar dezoito anos, foi à costureira buscar o vestido longuete azul marinho que encomendara, vestiu-o e chamou os pais para uma conversa séria. Não parecia uma jovem, parecia ser mãe da própria mãe. Primeiro avisou que, apesar de nem pensar em se converter, estava estudando a fundo e simpatizando muito com o judaísmo, então não os acompanharia mais às missas cheias de gente engomada que dão cheques de cinco reais à paróquia. Pelo menos não se sentia mais obrigada a fazê-lo, então que não contassem com sua presença. Agora avisa que não vestiria mais a máscara de jovem rebelde-sem-causa-mas-socialmente-aceita que vestia até agora. Nada tendo contra a juventude descompromissada, não fazia e nunca fez parte dela. Não queria ir á balada, não queria beber até cair para ver como é, não queria experimentar o que sabia que faria mal só para "saber" se gosta, enfim, sua cabecinha era muito diferente.


O ultimato amedrontou seus pais de sobremaneira, amanhã poderia ou não haver uma festa de dezoito anos, se a respeitassem do jeito que é. Caso contrário, já tinha para onde ir logo nas primeiras horas do primeiro dia de sua maturidade. Os fez lembrar das fortunas e dos prantos que nunca precisaram gastar por sua causa, dos filhos inesperados que não arranjou e dos cafagestes que nunca trouxera para dentro de casa.


Não foi preciso sair de casa, o recado foi bem dado. É uma moça feliz, muito feliz. Quem disse que precisa ser escancarada? Quase todos os sorrisos que vê exalam desespero, não que não hajam os sinceros, mas dentes brancos não são garantia de felicidade. E está feliz, muito feliz do jeito que é. A tristeza assumida e sob controle a faz parecer uma rainha.

04/10/2008

Aeromoça

A turbulência é grande, a nave estremece como se fosse se dissolver no ar. E é o que acontece. A aeromoça (como faz questão de ser chamada) consegue atar o último passageiro e as chapas do teto se desprendem, o vácuo a suga antes que se dê conta do que aconteceu.

Leva algum tempo para perceber o que está realmente acontecendo, está iniciando uma queda de quase três mil pés. A princípio chora, se desespera como se alguém fosse socorrê-la, como se o avião fosse dar meia-volta para tentar salvar sua vida. Mas ele se afasta a seiscentos quilômetros por hora, buscando altitudes menores, com o comando se esgoelando para pedir auxílio à torre. As comissárias de bordo não fazem questão de avisar da tragédia.

Cai em si. Ninguém vai salvar uma simples funcionária, para a qual existem milhares de candidatas para preencher a vaga que deixou. Ainda mais uma chata de caroço que insistia em ser chamada de aeromoça. Que merda! A gente não pode ser educada com os passageiros? Só porque não fazia careta quando me pediam uma caneta à bordo? Tá, eu nunca fui baladeira e companheira de manguaça, essas coisas. Isso deve pesar contra mim.

Vai pensando, meditando e praguejando enquanto a velocidade aumenta a 9,806 m/s². Sabe que estaria à salvo, na cabine da tripulação, se não tivesse se lembrado daquele bocó que levou uma revista pornô para o banheiro. Ele teria se lascado, acha que teria sido bem feito ao fedelho mal criado, mas seu senso de dever falou mais alto. Exactamente como lhe ensinara a sua mãe. Ah, droga! Agora ela chora desatadamente. Como ficará a sua mãe quando souber? Foi por causa dela que ingressou na carreira. Vanda era aeromoça, nos anos 1960, 1970 e 1980. Mas naquela época as cousas eram diferentes, se lembra bem de uma viagem que fez com ela e o pai à Lisboa, em 1978. Todas sorridentes, como enfermeiras que precisavam transmitir algo de bom aos pacientes. Aeromoça era algo glamouroso, conheceu várias pelo mundo, com uniformes que copiou e colocou em suas bonecas. Estão até hoje na estante, a mais nova tem o uniforme que usa agora. Droga! Droga! Droga! Droga! Droga! Droga!!!!!! Ela não queria ficar rica com isso, não queria viver imensos amores em cada país, nem mesmo escrever um livro quando se aposentasse. Só queria ser aeromoça. Conhecia a fundo as demandas da profissão, quando iniciou sua carreira, há menos de um ano. Mas que surpresa desagradável teve. Se sentiu uma arquiteta com doutorado, trabalhando com peões que não sabem fazer uma parede que não seja de tijolos furados.

Se pergunta o porquê de isto estar acontecendo. Sempre foi honesta até o talo, se dedicava aos passageiros como se realmente fosse uma enfermeira. Enfermagem, aliás, faz parte de sua formação, tal qual sua mãe, a melhor aeromoça que a antiga companhia aérea já teve. Sua mãe é seu ídolo, trabalhava com tpm, cólicas, joanetes, o que fosse. Ainda que com o semblante mais sóbrio, sempre tinha um sorriso para os olhos suplicantes de seus passageiros. Ser aeromoça demandava classe, elegância e boa educação. Seguiu todos os seus exemplos, tudo mesmo, à risca. Mas os tempos não são aqueles e a impessoalidade dominou quase tudo. Numa época em que a fedelhagem dos fóruns de internet rechaça quem demonstre cordialidade e camaradagem a todos os participantes, em que os carros rígidos e bem ajustados são chamados de resistentes, em que memórias sórdidas de uma prostituta (que se fez sem necessidade) são best-selers, em que ninguém mais sabe fazer piada sem palavrões e ofensas, em que uma brincadeira com um amigo pode render processos por alguma entidade neurótica, as suas qualificações não tinham mesmo o espaço de outrora.

Agora eu me pergunto, por quê? Por que eu me preparei tanto, se transar com o comandante é a única forma de subir naquela birosca, aquela garagem de paus-de-arara aéreos? Bem feito pra mim! Bem feito! Fiz tudo certo, deu nisto: vou me espatifar no chão daqui a pouco, vou virar ração em pasta pra cachorro. Eu sou burra, bur-ra... Mas não me arrependo de nada.

Começa a parar com as lamentações, pois o fim é inexorável. Se lembra do beijo que recebeu de uma criança autista, ao fim de uma viagem. Os pais da menina ficaram pasmos, completamente atônitos com aquilo, a psicóloga dela exigiu três testemunhas para acreditar. Acha que não fez nada de mais. Foi atenciosa, respeitou o mundinho daquela pequerrucha e conseguiu seu respeito. Volta a chorar, mas agora de alívio, pois esta lembrança honrosa traz outras, e outras, e mais outras. Não é ela a burra, são os chefes que não enxergavam e não remuneravam a contento a jóia que tinham em seu quadro.

Mas agora se lascaram! Ah, ah, ah, ah, ah, ah! Minha mãe vai poder comprar o condomínio inteiro com a indenização! Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah! Vai poder mandar todos aqueles xaropes pra fora e encher os apartamentos com nossos parentes. Irra! A Paula vai ter casa própria quando casar! Até que morrer não é tão ruim assim. Mas será que dói? E por que tá demorando tanto?

Aproveita a demora para, em um lampejo, pegar seu celular. Liga-o. A recepção está extraordinariamente boa. Pela primeira vez não amaldiçoa o inventor daquele aparelho. Liga para a mãe. Avisa que aconteceu um imprevisto e que não chegará em casa a tempo para o noivado da Paula. Se puder mandará mensagem (por um médium, quem sabe) e diz que ficará bem. Se despede da forma mais amorosa que consegue e desliga. Agora sim, chora copiosamente. Pela gente que deixará e, se o alfaiate Zé estiver certo, não verá por muitos anos. Se lembra de tudo o que fez de bom na vida, percebe que supera de longe suas traquinagens.

Começa a rezar para, não pedir, mas agradece pelo que pôde fazer de bom no pouco tempo de vida que teve, por não ter se rendido aos ataques dos colegas radicais de extremo rancor contra passageiros, por não ter deixado de fazer o que realmente queria e por ter sido uma aeromoça. A-e-ro-mo-ça. Foi para isso que se esmerou.

Olha para baixo, agora o chão está próximo. Que conveniente, bem o fundo do Instituto Médico Legal. Faz uma manobra para não ver e não sofrer ainda mais. Ajeita o broche na lapela, a echarpe azul e branca, coloca a boina contra o peito e acabou.
Nem doeu. Agora vai embora, que não precisa mais de nada daquilo.

23/08/2008

Onirautas VI; A roupa sumiu!

Bem-vindos a mais uma onirisséia. Oferecimento: Audrey Beathan; Seja feliz, pague mico você também.

Um tipo de sonho recorrente é a nudez, parcial ou total, voluntária ou não. A maioria gosta de ouvir e imaginar, mas quem conta raramente compartilha da opinião. Lembremos que Elvis e um elefante cor de rosa não cabem no porta-malas de um Fusca, lá mal cabem malas! A natureza não é estúpida de produzir um fenômeno só para repassar as cenas do dia, os neurônios não precisam desse desgaste para se organizar, bastam testes rápidos quando o sujeito adormece, gastam menos energia.

Nudez é exposição. Numa sociedade que exige que todos sejam extrovertidos, seguros, bem resolvidos e pemanentemente bem-humorados, asseguro que noventa por cento da população têm algum grau de timidez, os outros dez têm algum problema que ignora. Por isso mesmo as pessoas se incomodam quando sonham que estão nuas.


  • Primeiro porque a nudez acontece de surpresa, quando menos se espera: Pum! A roupa some. Se há deformidades no corpo, ou uma parte com proporções e/ou beleza acima da média, é aquela que será destacada. Aí o maior fanfarrão do mundo fica rubro.

  • Segundo porque nunca estamos sozinhos, nesta situação. Mas nunca mesmo. Assim que baixamos as calças para mandar o barroso, as paredes somem e uma multidão se aglomera para nos observar.

  • Terceiro porque acontece quando mais precisamos, no sonho, nos concentrar. Como em uma reunião, quando o chefe te diz "Que mordida é esta no teu mamilo, Márcia?". Então a mesa inteira some, a cadeira some e te obriga a ficar de pé e pelada. Terrível, não?

  • Quarto e último, porque nudez ainda é tabu. Imaginem uma carola sonhar que está ajudarndo na missa e, quando vê, está pelada e maquiada na frente de toda a comunidade. Ela vai querer morrer, vai meter a cabeça na parede e se penitenciar, quando acordar.

Claro que, quando acordamos, podemos até cair na risada, de alívio, pra depois tomar como piada e, quem sabe, rodar uma comédia fadada ao sucesso; se não for a carola, é claro. Mas na hora a areia mais fofa vira concreto e não temos onde nos esconder.

Isso tudo é insegurança. Como isto aqui não é horóscopo de jornal, que é o mesmo que consultar um oftalmologista por telephone, não farei interpretações genéricas para vender auto-estorvo. O que eu disse acima, se lido direito, pode ajudar cada um a identificar qual o seu problema e relatar ao profissional de saúde mental, que é a pessoa qualificada para elucidar cada caso.

Ajuda seguir as dicas da primeira onirisséia, como não ver tevê com menos de uma hora de antecedência ao sono, não beber refrigerante após o jantar, não comer qualcousa pesada á noite, não ouvir músicas(?) de baixo calão, et cétera. Mas, uma vez que a peladice está evidenciada, respire oniricamente três vezes e continue a fazer o que estava fazendo. Tenhas certeza de que se tu não deres importância, os outros também não darão. Mas isto só vale para os sonhos, se tu tiras a roupa em praça pública e me responsabiliza pelas conseqüências, vou aí e te dou um cascudo. Não fiquem pelados fora dos sonhos se o ambiente não for propício, a hipocrisia ainda predomina e quase ninguém sabe lidar com o próprio corpo, imaginem com o corpo alheio. Se lhes der na tete, unam-se, comprem um bairro, murem-no e deixem as aves soltas, perus e periquitas certamente vão gostar, mas só dentro dos muros deste bairro, como em sonhos.

16/08/2008

A morte merecida

Seis anos. Não foram seis horas ou seis dias, mas seis anos. Seis anos agüentando alimentação parenteral, sondas em lugares pudentos, fora as piadinhas levianas dos médicos, pensando que estava desacordado. Enfia droga, tira tecido, enfia sonda, tira sangue, enfia agulha, tira saliva... Isso doía. Tanto no corpo quanto nos brios. O tratamento era pior do que o dado às cobaias. Primeiro porque cobaia é criada para ser cobaia, segundo porque o Peta e o Green Peace estão em cima para coibir abusos, terceiro porque cobaias não pagam para serem humilhados. Aquele tratamento era caro! muito caro.
Trabalhou duro a vida inteira, sem murmurar, educou os filhos como lhe foi possível e agora é tratado como um objecto de laboratório. Já se cansou de ouvir "A pipa do vovô não sobe mais" cada vez que alguém examinava seu pênis. Como nenhum aparelho acusa reações significativas, salvo espasmos a cada choque eléctrico, simplesmente decretaram e tomaram como verdade absoluta que não sabe absolutamente nada do que se passa ao seu redor, apesar de já terem estudado casos que desmentiram a sentença.


Claro que não enxerga, ou daria sentido à expressão "Se olhar matasse", nem consegue se expressar, ou já teria mandado todo mundo enfiar nos próprios aqueles aparelhos volumosos que lhe enfiam regularmente no ânus. Sem dó, como se fosse uma cousa.


Aliás, já ouviu claramente médicos comentando que, embora não precisasse, o laboratório pagou uma boa comissão para incluir nos soros uma droga nova, caríssima, e que lhe estava dando azia. Sim, azia, há mais de dois anos que lhe enfiam aquilo no soro, sabendo que não é necessário e não tem a mínima chance de reverter o quadro.


Lhe dói imaginar como a esposa está arcando com tudo aquilo. Enquanto estava lúcido, soube que os filhos estavam raspando suas poupanças para custear um tratamento que, hoje sabe pelos próprios açougueiros, não trará seu controle de volta. Não teve tempo para demovê-los, na mesma noite a droga ultra-higth-tech-nanomolecular foi adicionada ao soro e a pituitária faliu, seguida pela metade do córtex. O repouso que um médico ayurvedista recomendou? Crendice! Ninguém jamais comprovou em testes artificiais de laboratório, então não funciona e que vá para a fogueira quem acreditar.


A esta hora seu neto, ou sua neta, deve estar aprendendo a ler. Chora por dentro porque não conseguiu acompanhar a gestação da filha mais velha, nem a formatura do caçula, nem festejou as bodas de prata. Bastaria ter passado longas férias em Blumenau, como lhe fora indicado primeiro, mas tinham que convencê-lo a ver um "médico sério". Um açougueiro, isto sim! Um balconistazinho de drogaria que não vende crac porque seria pêgo.


Três filhos criados, uma casa paga com muito sacrifício, e agora está reduzido a um organismo para treinamento de novos açougueiros. Pior, sua família está pagando para isso, acreditando que estão é tentando salvá-lo. Na verdade é um exemplar perfeito para os testes que lhes rendem fábulas, fora os honorários. Já testaram cinco drogas clandestinamente, todas arrebentaram com seu sistema imunológico, mas como está incapacitado e não podem interferir, não haverá processos nem perda de registros de medicina.


Mas uma certeza lhe consola, quando a morte vier, ahá! Quando ela vier, a festa acaba. Sofreu demais na vida, seu organismo já estava debilitado há muito tempo, não vai agüentar muito mais tempo, então as máscaras caem. A necropsia vai mostrar as falcatruas e sua família terá que ser ressarcida.
Um dia, não mais que derrepente, começa a abrir os olhos. Vê com uma clareza imensa. Uma mulher muito refinada se aproxima, imagina que seja a nova médica, apesar dos trajes de festa..
- Boa noite, Valter. É hora de te dar alta.
- Graças à Deus! Eu não agüentava mais, doutora!
- Nós sabemos. Levante-se.
Consegue se levantar com muita facilidade, mais do que quando deu entrada no hospital...
- E os outros médicos?
- Não são mais problema para você.
Valter olha em volta e vê seu corpo. Tem um início de confusão, pois está respirando, ouvindo, sente o calor e tudo mais. A dama o acolhe e explica a situação, que suas preces foram atendidas e que ele não precisava passar por aquilo. Mostra-lhe um fio que estremece e se solta de sua nuca. A aparelhagem começa a apitar infernalmente, no que uma equipe enorme invade a UTI e faz de tudo para evitar o que já aconteceu...
- Então eu morri? Mas e a Mirtes? E os meninos?
- Serão amparados. E terão de volta tudo o que investiram aqui.
- Então você é a morte? Mas te pintavam tão feia!
- rs, rs, rs... Se prefere ver assim, sou a tua morte. Cada um tem a que faz por merecer e nenhuma fortuna pode comprar outra diferente. Vê aqueles monstros? São as deles, e não tardam a reclamar sua paga.
Enquanto os doutores de colunas sociais e palestras em Harvard se desesperam, tentando não perder a galinha dos ovos de ouro que já perderam, Valter sai com sua condutora, seus pais o esperam.

09/08/2008

Não merecemos!


Quando o Itamar quis o Fusca retomar, uma multidão aguardava ansiosa pelo 1303, sua versão mais modernosa. Mais espaço, mais conforto, estabilidade e tudo mais. Preço também mais salgado, mas não importava, pois o Fusca já tinha passado da idade de ser carro de entrada, merecia ser modernizado.

Mas que decepção quando vimos a falta de respeito, em 1993, ele ser reapresentado daquele jeito. A mesma carroceria de 1967, retocada, mas no tempo parada. Alegaram que ficaria caro, mas pergunto se pobre tira carro da loja, a não ser como motorista. Basta ver as ruas abarrotadas de Fuscas com injeção electrônica, turbo, rodas de liga, bancos de couro e outros quetais, que renderiam à concessionária cinqüenta mil ou mais reais.

Hoje, a maioria não sabe, mas o Santana ainda é fabricado, tanto na versão quadradinha (bem baratinha) quanto na redondinha, com chassi alongado e melhor equipado. Onde? Desesperai-vos, taxistas, é na China que eles conduzem as visitas. Aliás, dois dos poucos carros chineses que não desmancham quando batem. Sei bem o quanto vocês gostavam do Santanão robusto e espaçoso, mas creio que importar seria muito oneroso.

Vocês me perguntarão o motivo de estes três modelos não recebermos. Bem, é que não merecemos. Nos acomodamos ao que querem nos dar, pelo preço que querem cobrar e compramos sem reclamar. Desde que as importações declinaram, as novidades também minguaram. Nos deram um Astra para substituir o Vectra, este muito superior em estabilidade e aerodinâmica; maquiaram o 206 e adicionaram 1; fabricam por cá o Mercedes Classe C, mas é só para exportar, quem quiser comprar tem que raspar a poupança e as taxas de importação pagar.

Estas são apenas algumas das atrocidades que cometem com a nossa permissão. Sabe-se lá a que situações os empregados de firmas terceirizadas são submetidos para reduzir os custos, mas nem sempre os preços.

Alguns vão gritar contra, dizer que tudo está mais moderno e avançado. Balela. Nos dão restos do banquete que dão no hemisphério norte, só mandam projecto cansado. Acham que melhor não merecemos.

Gosto de modelos antigos, confesso. Tenho simpatia de ver o Uno, Palio e Punto juntos em uma mesma revenda de carros novos. Para quem não sabe, o Punto substituiu o Palio, que substituiu o Uno, na itália. Talvez seja a única montadora que não me decepcionou efetivamente, até agora. Mas também poderia estar fazendo melhor.

Voltando ao 1303. Quando lançaram a Brasília (para mim é uma perua, ponto final), ficou claro que a população estava disposta a pagar mais por um Fusca melhorado, e o 1303 ainda estava findando a produção. Dificuldade técnica? nenhuma. Só política interna mesmo. Pois sabemos que um bom propagandista vende o que quiser, sabendo apresentar. Aliás, a Kombi, nesta época, quando foi remodelada, passou a dispor de uma suspensão que a fez ficar muito mais estável, foi inclusive aplicada na Variant II, mas o que queríamos ficou de fora.
A Chamonix conseguiu resolver o problema de emissões, nada que qualquer boa oficina não possa, ficou claro. Não com investimentos bilionários, só com competência e vontade. A mesma que faria a alegria dos taxistas. Imaginem o que eles não fariam com os recursos de uma multinacional.
Mas nós não merecemos. Desde carros até programas de televisão, passando por biscoitos e achocolatados, pioram a qualidade de tudo sem nos consultar e sem sequerer reduzir os preços. E nós aceitamos. Podem melhorar a qualidade da montagem, com isso o carro dura uns anos mais, mas se estragar, pode jogar fora. Nem tente abrir o capô, não vais conseguir nem checar as velas, tarefa antes banal até para leigos. Pifou? Joga fora, o conserto vai custar caro.
Poderíamos ter carros com a frente toda basculante, mas não merecemos. Afinal nem do que gostamos tomamos partido. Nem reclamamos quando tiraram o Opala Coupé de linha, e ele respondia pela maior partes das vendas do modelo. Então toda a linha Opala saiu de linha por "quedas acentuadas nas vendas".
O que eu faço quanto a isto? Boicoto. Mas é um boicote solítário de alguém que não costuma fazer compras vultuosas, então fica sem força. Ainda que reconheçam que eu tenho razão no que reclamo, e quem se deu ao trabalho de me ouvir reconheceu, eu faço tanta pressão quanto uma placa de isopôr no mar morto. Eu sei que eu mereço, mas como indivíduo. Quanto à coletividade, nós não merecemos! Não mesmo.
Agosto está quase virando e logo a Simone começa com "Então é nataaaaaaaal!..." Pensem no que cada um de vocês realmente merece, antes de gastar seu suado dinheirinho, ou a mesada que papai e mamãe dão com tanto carinho. Muito provavelmente, se for um carro, um modelo fora de linha vai agradar muito mais.

30/07/2008

Ética prática



Todo mundo fala em ética. Todo mundo exige ética... dos outros. Pois todo mundo diz que ninguém é ético e quem não seguir a correnteza é trouxa.


Eu poderia me perder em divagações redundantes sobre a origem da palavra, o conceito primitivo e toda uma etimologia completamente supérfula. Seria até divertido, teria o aval dos catedráticos, mas não seria ético. Eu estaria pleiteando glórias em detrimento da missão que me foi confiada. Vão cinco regrinhas pragmáticas que qualquer um pode praticar.


Primeira regra - Faça consigo o que gostarias de fazer ao próximo. Que foi, bem? Achaste que eu iria dar a velha e surrada regrinha de "Faça ao próximo o que gostarias que lhe fizessem"? Não, primeiro experimente o teu remédio, depois dê para que experimentem. Se te der vontade de esganar alguém, siga estas instruções: Peque uma gravata ou encharpe longa, dê uma volta no pescoço, segure firme as duas pontas e estique fortemente os braços para os lados, agora tente respirar. Viu como foi didático? E ainda pudeste se livrar da agonia para colocar a lição em prática. Decerto que nem tudo precisa chegar a este termo, mas com a prática as idéias homicidas desaparecem, chegará o momento em que a dor do outro vai repercutir em ti, então já estaremos conversados.


Segunda regra - Não faça com o outro o que ele não quer que seja feito, mesmo que gostarias que fizessem contigo. Pensa bem, filhote, tu gostas de rock da pura, de balada da mais fina categoria, falou que é de turma lá estarás tu. Mas há gente que gosta da solidão. Eu sou assim. Muito mais gente do que imaginas é assim. Aquilo que te faz falta, pode ser justo o que o outro tem em excesso e do que queira se livrar. Se queres agradar, então se informe a respeito dos gostos e necessidades do próximo. Quase sempre a presença amiga é suficiente, pois há pessoas que não gostam de receber presentes, o que não é o meu caso, mas conheço alguém. Por mais que te dê espasmos, alguém no mundo gosta de musiquinhas melosas e diabéticas dos anos 1920/30, e desde que não invada o teu espaço, deves respeitar.


Terceira regra - É teu? Não? Então não ponha a mão. Parece tão óbvio! Mas quase ninguém acha que só uma olhadinha com a mão trará problema. Mas traz. Há gente metódica, que tem na organização de seu ambiente um elo com a sanidade, e pessoas realmente metódicas percebem alterações milimétricas em tudo o que têm. Não se enganes, não é frescura, e se for não é da tua conta. Também há cousas que parecem com as do cotidiano, mas podem ser instrumentos específicos e difíceis de se conseguir, ninguém conhece todas as artes e ciências. Vale o ditado dos antigomobilistas: Carro antigo é como mulher de amigo, tu admiras, mas não põe a mão.


Quarta regra - Dê o exemplo. É aqui que a porca torce o rabo! É seguramente a mais difícil de todas. Pense na cena: Uma mulher com roupas caras, óculos caros, batom que compraria todo o estoque de uma boutique popular, sapatos de couro de Dragão de Komodo albino, laquê artesanal montado molécula por molécula por um laboratório exclusivo, jóias confeccionadas para a Rainha Claópatra, et cétera. Um nojo de chique. Agora imagine essa senhora abrindo uma embalagem de chiquete, começando a mastigar feito ums ruminante e jogando o papel no chão, sem nem olhar. Tem muita gente pobre que guarda seu lixinho no bolso até encontrar uma lixeira pública. Vale o mesmo para o trânsito e tudo mais; se sabes que mereceste a multa, pague. É teu direito recorrer, mas pagando e não reincidindo, vais ensinar ao teu filho que nem tudo o que é permitido é lícito. Se ele aprender esta lição contigo, em vez de aprender na escola chata e depredada, vai querer imitar e até ensinar aos amigos. Tua ação tão simples pode dar mais frutos do que imaginas.


Quinta regra - Não confunda tolerância com indiferença. Muita gente que chega do exterior fala da tolerância que existe no "primeiro mundo"... Dá licencinha... RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ, RÁ... Voltemos ao caso. Muita gente que imigrou do "primeiro mundo" me conta outra história, diz que se alguém morrer na rua, só removem o cadáver quando começa a incomdar a coletividade com o mau cheiro. Eles não toleram a diversidade e a liberdade individual, eles simplesmente não se importam com o próximo, mesmo que o outro esteja à beira de um suicídio. Campanhas internacionais, tudo bem, pois estão agindo em prol de uma causa, mas danem-se as pessoas. Longe de aconselhar que alguém bedelhe a vida alheia, se importar com a situação do outro não é invasão de privacidade. Não penses que se interessando por um drama familiar, serás mal visto, salvo se o sujeito for um cafageste que espanca esposa e filhos. Pergunte como vai, se disponibilize para uma eventual ajuda e isso será o suficiente para o outro não se sentir totalmente sozinho. Será um potencial suicida a menos, ou um potencial surto psicótico a menos. Com o tempo, infelizmente pode levar muitos anos (talvez décadas), os frutos virão, tanto para os outros quanto para ti.


Isto não é tudo, mas é o mínimo básico sem qualquer opcional, nem rádio AM-FM. Mas é o bastante para começar. Se ao menos tentares, mesmo sabendo que vais falhar muito, já estarás melhorando o teu mundo. Se mais alguém vai seguir, é problema deles, a tua parte já está sendo feita.